Resumo
Uma mesma canção, calcada no binômio letra e música, admite distintas leituras associadas a diversas constelações de sentido. Ela não é um objeto inerte, congelado no tempo e no espaço, cristalizado a ponto de mostrar-se impermeável a flutuações e a migrações de significado. Conforme as performances vocais, instrumentais, visuais que informam e conformam as canções, elas, em determinadas circunstâncias, podem vir a significar algo sequer imaginado pelos seus autores, configurando uma dança dos sentidos. Isso se aplica igualmente à análise de realidades históricas específicas. Um mesmo objeto – no caso, as relações entretecidas entre o “Estado Novo” e a área da música popular – é passível de ser apreendido sob diferentes prismas analíticos, na dependência, em grande medida, dos aportes teóricos e dos métodos de investigação a que nos agarramos como âncoras para levar adiante nossas pesquisas. Sob essa perspectiva, hábitos monológicos não são, nem de longe, bússolas confiáveis quando procuramos dar conta do caráter dialético das relações políticas e dos artefatos musicais. É disso que trata este texto ao pisar e repisar, uma vez mais, o chão muito batido da ditadura estado-novista para surpreender a existência de práticas discursivas que colocam em xeque certos pressupostos tradicionais da historiografia largamente disseminada sobre o período. Afinal, para além de colecionarem silêncios e/ou de se recolherem ao papel de câmaras de eco da “palavra estatal”, outras vozes, destoantes ou dissonantes, se fizeram ouvir também na época, apesar da censura que pesava sobre elas, asfixiando-as.
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