Banner Portal
[ENCERRADA] Prorrogação Dossiê “Nutrir, crescer, se misturar: potencialidades e experiências na relação entre seres humanos, vegetais e outros que humanos”,

 

Na etnologia contemporânea, as relações entre seres humanos e outros que humanos têm ocupado parte relevante dos esforços teórico-etnográficos das/os pesquisadoras/es. Por um lado, essa produção se desdobra da evidenciação e da crítica conceitual em torno da falsa universalidade das divisões ontológicas entre natureza e cultura (Gísli Pálsson, Marilyn Strathern e Philippe Descola, entre outros). Por outro, ela diz respeito ao recalibramento das amplitudes relacionais no campo do americanismo, fundado, entre outras coisas, no multinaturalismo das ontologias ameríndias (Eduardo Viveiros de Castro, Tânia Stolze Lima, entre outros). Neste contexto, argumentou-se, por exemplo, o quanto o análogo ameríndio do socius se estende à esfera daquilo que, em outras paragens, é tido como da esfera do associal, do natural ou do sobrenatural. Isto implicou destituir a sociedade e encarar a socialidade como um elemento distribuído no cosmos, incluindo uma miríade de pessoas outras que humanas, promotoras de ações, agentes de relações e partícipes da política.

No realinhamento das estratégias descritivas dos socius ameríndios em que se erije o perspectivismo, as etnografias colocaram grande ênfase nas relações com os animais, em detrimento de outras relações possíveis, com distintas classes de seres. Neste contexto, seja no âmbito do ritual ou da mitologia, seja no âmbito da caça ou da chefia, do xamanismo ou do profetismo, as relações e imagens animais se proliferaram nas estratégias reflexivas das etnografias americanista. 

No que diz respeito às relações vegetais, elas foram tratadas como recursos materiais e imagens conceituais atreladas ao âmbito da consanguinidade e, nesta seara, inscritas ao problema da convivialidade. Ao mesmo tempo, podemos observar que, apesar dos vegetais participarem de engendramento de multiplicidades em suas relações entre corpos, cosmos e substâncias, a noção de uma agencialidade aparente nem sempre está dada, pois há situações em que o processo de autocriação se faz presente. Uma certa equação de fundo parece, ainda, persistir: aquela que alinha homem, caça e mobilidade em oposição a mulher, fixação e agricultura. No entanto, etnografias recentes borram e saturam esses divisores, fazendo deslocar o olhar etnográfico para o poder de agenciamento de seres vegetais, assim como dos demais seres outros que humanos, em cosmologias personificantes altamente complexas. Isso provoca novos questionamentos e libera um certo conjunto de imagens reflexivas do mecanismo das oposições de gênero, este que é um dos grandes instrumentos conceituais produzidos pelo euroamericanismo para significar a si mesmo. 

Há de se reconhecer, neste processo de redimensionamento do campo, a influência do pensamento feminista e de sua transformação a partir do material ameríndio. Por um lado, temos a complexificação metodológica trazida pelas noções de companheirismo (Donna Haraway), pelas intra-relações (Karen Barad) e pelas etnografias multiespécies (Anna Tsing), agora lidas e discutidas por parte significativa do americanismo. Por outro, temos o esforço de um conjunto importante de etnógrafas, que produziram torções relevantes em torno desse debate, seja no americanismo, seja no campo do pensamento feminista, a partir de pesquisas contundentes junto aos povos ameríndios (Ana Gabriela Morim de Lima, Fabiana Maizza, Joana Cabral de Oliveira, Karen Shiratori, Marta Amoroso e Priscila Matta, entre outras). De certo modo, essas pesquisadoras aprofundam e complexificam as imagens vegetais trazidas por outras, desde a década de oitenta, pelo menos (Cecília McCallum, Els Lagrou, Manuela Carneiro da Cunha, Nádia Farage, Vanessa Lea, entre outras).

Em certa medida, o movimento ao qual nos referimos corresponde a um processo de diversificação das imagens que a etnografia americanista produz ao redor dos estilos criativos dos povos ameríndios, perseguindo implicações filosóficas que, mais do que uma chave de novos conteúdos etnológicos, podem indicar uma virada de perspectiva. Refere-se às implicações conceituais, metodológicas e filosóficas que se produzem quando se passa a ver as socialidades ameríndias através das lentes de suas relações vegetais. Se assim for, etnografar relações vegetais não implicaria simplesmente uma mudança de ênfase no interior do americanismo, mas uma transformação do que significa descrever e proliferar socialidades ameríndias. A partir desse entendimento, a proposta do Dossiê “Nutrir, crescer, se misturar: potencialidades e experiências na relação entre seres humanos, vegetais e outros que humanos”, da Maloca – Revista de Estudos Indígenas, é estabelecer um diálogo com trabalhos que apresentem relações entre humanos, vegetais e demais seres outros que humanos que privilegiem as consequências teóricas, etnográficas e práticas dessas relações, dando-se, ainda, em diferentes frentes: na crítica feminista, nos estudos sobre parentesco, modos de conhecimento, xamanismo vegetal, agrobiodiversidade e ecologia cultural.