ISSN 2447-746X DOI: doi.org/10.20888/ridpher.v8i00.16120
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APRESENTAÇÃO
ANARQUISMO INTERNACIONAL: EDUCAÇÃO, CULTURA E LUTAS SOCIAIS
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Pere Solà Gussinyer
Universitat Autonoma de Barcelona
pere.sola@uab.cat
Doris Accioly e Silva
Universidade de São Paulo
daccioly@usp.br
Luciana Eliza dos Santos
Universidade de São Paulo
lucianaeliz@gmail.com
Utopia! Dizem os que esquecem ser a utopia de hoje a realidade de amanhã. Ao escravo
sucedeu o servo, ao servo o salariado e basta que os homens queiram as condições são já favoráveis,
o terreno está preparado para que ao salariado, ao prisioneiro de uma terra monopolizada, suceda,
não o funcionário, combinação do salariado com o servo, mas o indivíduo autônomo e solidário, o
homem livre sobre a Terra Livre!
A Plebe, São Paulo
2
.
INTRODUÇÃO
A presença anarquista na cena internacional, sua significação e seus desdobramentos
nas lutas sociais e na vida cultural constitui um cosmos que ainda está longe de ser
suficientemente conhecido. As leituras dos clássicos anarquistas, a produção de um pensamento
libertário e a continuidade da formação de militantes é um processo permanente, apesar da
intermitente repressão política, social e cultural. O conjunto de estudos e experiências reunidos
neste dossiê evidencia não apenas a importância histórica do anarquismo, mas também a sua
atualidade. Os anarquistas sempre recusaram os limites dos nacionalismos, portanto, o
anarquismo internacional é quase redundância. O internacionalismo está no âmago do
anarquismo. O que diferencia as práticas libertárias das demais lutas políticas é que aquelas
visam a mudança nas estruturas sociais e não a mera tomada do poder político, substituindo-o
por outro. A recusa do Estado é também a recusa da exploração, uma vez que são dimensões
interdependentes. Para os anarquistas, a luta contra o capital é inseparável da luta contra o
Estado. A política institucional compõe a sociedade estabelecida e o seu desenho de classes
sociais, sem exigir uma mudança estrutural. O anarquismo é uma das principais formas de
1
A organização deste dossiê agradece a todos e todas que enviaram seus trabalhos e, especialmente, a contribuição
generosa de Lily Litvak e Hector Vicente Garcia Wiedemann.
2
LEUENROTH, Edgard. Roteiro da Libertação Social. Rio de Janeiro: Mundo Livre, 1963, p. 14.
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identificação e de luta das classes sociais despossuídas, ao longo da formação da sociedade
capitalista. A origem social do anarquismo se configurou com o trabalhador industrial e o
artesão, no processo de constituição dos Estados Nacionais contemporâneos e na formação e
transformação das classes sociais, a partir do final do século XVIII. Bakunin (1814-1876), em
seu célebre opúsculo Deus e o Estado, lembra que o que caracteriza a humanidade não é apenas
a faculdade de pensar, mas a necessidade de se rebelar (1976, p. 34)
3
:
Estas dos facultades, combinando su acción progresiva en la historia,
representan propriamente el ‘factor’, el aspecto, la potencia negativa en el
desenvolvimiento positivo de la animalidad humana y crean, por
conseguiente, todo lo que constituye la humanidad en los hombres [...] Tres
elementos o, si quereis, tres principios fundamentales, constituyen las
condiciones esenciales de todo desenvolvimiento humano, tanto colectivo
como individual, en la historia: 1º la animalidad humana; 2º el pensamento, y
la rebeldia. A la primera corresponde propriamente la economia social y
privada, a la segunda, la ciência, y a la terceira, la libertad. (idem, p. 34-37).
A crítica implacável de Bakunin à ideia de Deus e do Estado, para ele, inseparáveis,
confere às suas ideias de educação e luta social uma potência muito particular; não é por acaso
que na Primeira Internacional, em 1864, ele defendeu a abolição imediata do Estado no processo
da revolução. Esta concepção vai marcar profundamente a visão de mundo anarquista, levando
à valorização radical da educação e da criação cultural fora da religião e do Estado. As mais
referidas experiências anarquistas de educação iniciaram-se a partir de 1876, com a dissolução
do conselho geral da Associação Internacional dos Trabalhadores e a volta de Piort Kropotkin
(1842-1921) à Europa Ocidental. Um pouco depois da morte de Bakunin, em 1876, no
Congresso Anarquista ocorrido no Vale do Jura, na Suíça, surgiram as propostas de educação
anarquista que foram levadas à prática. Desde sua fundação, a liga jurassiana desempenhou
papel importante nas atividades intelectuais e organizacionais do anarquismo europeu,
irradiando-se para outros continentes. Depois de longas discussões, das quais participaram
Elisée Reclus (1830-1905), Errico Malatesta (1853-1932), Carlo Cafiero (1846-1892) e o
próprio Kropotkhin, a federação do Jura passou a chamar-se comunista-libertária e/ou anarco-
comunista. Essas denominações não são meramente formais, mas indicam as discussões sobre
a distribuição da riqueza gerada pelo trabalho em uma sociedade anarquista. As vicissitudes
sofridas com a derrota da Comuna, a perseguição constante e o refluxo das lutas sociais foram
determinantes na mudança de métodos de combate social no anarquismo, substituindo aos
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Nota Introdutória de Max Nettlau e prefácio a primeira edição francesa de Carlo Cafiero e Elisée Reclus.
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poucos as táticas da propaganda por meio da ação direta pela divulgação das ideias e
transformação das consciências pela educação e pela vida cultural. Um dos aspectos mais
fecundos da educação ácrata é o desenvolvimento intenso de criações teatrais, imprensa,
literatura, centros de cultura, todos eles veículos pedagógicos por excelência, voltados à
formação dos trabalhadores e à difusão do ideário anarquista. Lily Litvak, autora de importante
e vasta pesquisa sobre a vida cultural do anarquismo espanhol entre final do século XIX e início
do século XX, escreve, em sua obra Musa Libertária (2001), sobre o entusiasmo apaixonado
com que se educavam mutuamente os militantes, sempre lendo algo e discutindo em grupos.
Afirma a importância dada pelos libertários à educação e à cultura, frisando que “nunca,
nenhum movimento outorgou à cultura tanto valor como os anarquistas” (2001, p. 275). Daí
decorria a ênfase dada ao livre arbítrio e sua confiança na inteligência e sensibilidade humanas,
bem como à dimensão educativa e cultural, grande responsável pela transformação social. Para
os libertários, educação, cultura e revolução são indissociáveis, como afirma Lily Litvak:
Los anarquistas consideraron, en efecto, al arte y a la literatura como
fundamentalmente sociales, constituyentes de una causa, y por lo mismo, con
un papel definido en el trabajo revolucionario. Sus creaciones pueden
considerarse de ‘protesta’, y ésta se refiere exclusivamente a aspectos sociales
e ideologicos de formas especificas de vida: instituciones, condiciones o
circunstancias concretas de caráter social, económico y ético. Nada tiene que
ver con la protesta metafísica contra la condición o el destino humanos. Si el
anarquismo es, en sí, un tema complejo, no lo es menos el de la estética y de
la cultura anarquistas [...]. (2001, p. 41).
Nesse âmbito, compreendemos que foram fundamentais as obras de Elisée Reclus
Evolução, Revolução e Ideal Anarquista e Ajuda Mútua de Piort Kropotkhin. Na primeira,
acompanha-se os processos evolutivos e revolucionários como integrantes da vida social e
natural. Não pode haver revolução sem evolução. E, nesse processo, a socialização do
conhecimento desempenha um papel fundamental. Elisée Reclus fez críticas radicais à forma
como a sociedade moderna promove, por meio do Estado, do governo e das leis, as verdades
que sustentam a ciência e a história: “queremos saber; não admitamos que a ciência seja um
privilégio (2002, p. 23)”, defende o geógrafo. A crítica se direciona às acepções costumeiras
das palavras evolução, revolução e progresso, presentes nos discursos oficiais. Os conceitos de
evolução e revolução, comumente empregados como oposição (evolução como
desenvolvimento gradual de ideias e costumes, e revolução como mudança brusca, geralmente
antagônica, da e na sociedade) são tomados por Reclus como fenômenos mutuamente
relacionados e complementares:
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A evolução é o movimento infinito de tudo o que existe, a transformação
incessante do Universo e de todas as suas partes desde as origens eternas e
durante o infinito dos tempos. As vias lácteas que surgem nos espaços sem
limites, que se condensam e se dissolvem durante os milhões e os bilhões de
séculos, as estrelas, os astros que nascem, que se agregam e morrem, nosso
turbilhão solar com seu astro central, seus planetas e suas luas, e nos limites
estreitos de nosso pequeno globo terráqueo as montanhas que surgem e
desaparecem de novo, os oceanos que se formam para em seguida secar, os
rios que se formar nos vales, depois secar como o orvalho da manhã, as
gerações das plantas, dos animais e dos homens que se sucedem [...]. Em
comparação com este fato primordial da evolução e da vida universal, o que
são todos estes pequenos acontecimentos denominados revoluções:
astronômicas, geológicas ou políticas? Vibrações quase insensíveis,
aparências, poder-se-ia dizer. É por miríades e miríades que as revoluções se
sucedem na evolução universal; mas por mínimas que sejam, elas fazem parte
deste movimento infinito (idem, p. 23).
Ao explicitar a forma pela qual este movimento infinito se engendra, Reclus procura
referir-se à relação recursiva dos fenômenos de evolução e revolução, como movimentos
pertencentes às transformações da vida, da natureza e do homem:
Pode-se dizer, assim, que a evolução e a revolução são dois atos sucessivos de
um mesmo fenômeno, a evolução precedendo a revolução, e esta precedendo
uma nova evolução, mãe de revoluções futuras. Pode acontecer uma mudança
sem provocar repentinos deslocamentos de equilíbrio da vida? A Revolução
não deve necessariamente suceder à evolução, assim como o ato sucede à
vontade de agir? Uma e outra diferem pela época de seu aparecimento.
Quando um deslizamento obstrui um rio, as águas acumulam-se pouco a
pouco até o alto do obstáculo, e um lago se forma por uma lenta evolução; em
seguida, repentinamente, produz-se uma infiltração no dique, e a queda de
uma pedra provocará o cataclismo: a barragem será violentamente arrastada e
o lago esvaziado voltará a ser rio. Assim ocorrerá uma lenta evolução terrestre.
(idem, p. 25).
O pensamento de Reclus supõe que a educação pode ser apreendida sob o ponto de vista
da evolução, sendo também permeada de eventos revolucionários; um e outro fenômeno como
processos complementares. Reclus estabelece esta valiosa leitura relacionada à vida em seus
estágios mais diversos, naturais e sociais; e considera que “o movimento geral da vida, em cada
ser, em particular, e em cada série de seres não nos mostra em lugar nenhum uma continuidade
direta, mas sempre uma sucessão indireta, revolucionária” (idem, p. 27). Evolução e revolução
representam movimentos naturais da vida, que estão presentes no âmbito das relações sociais e
suas transformações, lentas ou repentinas. Semelhante análise é remetida por Reclus ao uso
capitalista da palavra progresso, que não representa para ele uma ação de mudança real, mas
aparente, que promove a reacomodação das instituições em suas velhas estruturas. Para Reclus,
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o progresso real implica a elevação moral da sociedade, resultado da recursividade natureza-
cultura.
O anarquismo é parte de uma luta dos séculos XIX e XX. Mas, remete a luta da
humanidade pela sua emancipação, em vários momentos históricos. A luta contra a dominação
pode ser localizada em múltiplas formas de vida social, onde quer que exista a desigualdade e
a opressão. Ao mesmo tempo, pode-se dizer que a ausência do Estado indica ausência da
desigualdade, como analisou Pierre Clastres. O anarquismo contemporâneo se modifica à
medida que novos sujeitos compõem a cena social, modificando a fisionomia do trabalho, a
partir de novas categorias que surgem com as modificações do capitalismo. Nos dias de hoje
ocorre, inclusive, a proletarização de vários segmentos sociais ao lado do desaparecimento de
muitas profissões. Esse fenômeno provocou transformações no modo de viver, de sentir e nas
representações do proletariado internacional. Uma delas, pode-se encontrar no movimento
punk, que, inclusive, se mundializou, como muitas tendências anarquistas. O dossiê procurou
dar expressão aos muitos rostos nos quais o anarquismo se desenha hoje. Transfigurações do
anarquismo e seus agentes sociais, que não são idênticos àqueles do século XIX, uma vez que
ocorreram imensas transformações no capitalismo, atingindo todos os sujeitos sociais e o
anarquismo acompanha isso. É importante buscar compreender os traços que delineiam a
historicidade do anarquismo e ao mesmo tempo representam as marcas sociológicas das figuras
ácratas.
UMA REVISÃO DO ANARQUISMO NO ESPAÇO LATINO E AMERICANO
Apresentamos aqui um conjunto de contribuições acadêmicas que representam uma
importante revisão do espaço anarquista mundial, latino e americano em particular, ibérico e
brasileiro, sobretudo. Quando a editora desta revista digital nos propôs um dossiê sobre
anarquismo e cultura, sentimos a necessidade de repensar o que nos ligou pessoalmente ao
anarquismo. Que interesse sustenta o anarquismo como corrente social, cultural e política de
longa data? Quais são, em nossa perspectiva, as principais características do anarquismo? Que
viabilidade política e econômica vemos no anarquismo do século XXI? Que respostas o
anarquismo pode dar aos graves problemas que a humanidade enfrenta hoje: a sobrevivência
da espécie diante da mudança climática ou da crise atômica, a ameaça populista totalitária, o
desprezo pelos direitos humanos por causa das guerras, etc.? Qual foi e é a projeção educacional
do anarquismo em nossa era das últimas tecnologias? Finalmente, quais fontes prioritárias
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foram e são usadas para documentar o riquíssimo movimento anarquista? Que referências, no
campo dos estudos e análises, devem ser conhecidas e priorizadas?
Ninguém pode duvidar do interesse intelectual dos postulados libertários, embora às
vezes isso não pareça evidente à primeira vista. Estes postulados têm continuado a inspirar
experiências e projetos artísticos, culturais e educativos, como mostra este dossiê. O
anarquismo, como o marxismo, ambos filhos do socialismo - como resposta à chamada "questão
social"- em sentido amplo, teve uma relevância extraordinária nos campos da política, da
cultura, da arte e da cultura no século XIX. Ao se configurar como pensamento e prática social
antagônicas ao estado e outras formas de governo, o anarquismo sustenta amplo espectro de
ação condutora de políticas e culturas sociais combatentes das instituições sociais modernas e
tradicionais, mas também contemporâneas, como o capitalismo. Este dossiê buscou dar espaço
para trabalhos de pesquisadores e militantes que possibilitaram a demonstração da
potencialidade teórica e histórica anarquista, reiterando sua importância na formação acadêmica
e nos currículos universitários.
De início, damos relevo às homenagens destinadas a importantes anarquistas e
pesquisadores do anarquismo, como a valiosa entrevista com José Luis Garcia Rua, concedida
por Lily Litvak, pesquisadora cujos trabalhos contribuem de forma monumental com os estudos
sobre anarquismo e, sobretudo, cultura anarquista na Espanha. A entrevista com José Luis
García Rúa, feita por Lily Litvak em 1990, faz parte de uma série de setenta entrevistas com
anarquistas que vivenciaram a Guerra Civil na Espanha. Essas entrevistas foram efetuadas por
Litvak entre 1989 e 1991, em rias cidades da Espanha e aentão não teriam sido publicadas,
o que reforça a importância do trabalho inédito da autora aos estudos sobre anarquismo. Da
mesma forma, outras duas homenagens veiculadas por este dossiê lhe conferem inestimável
significado: uma dedicada ao professor Maurício Tragtenberg, feita por Doris Accioly e Silva
e outra destinada ao professor Antônio Arnoni Prado, por Ricardo Gaiotto Moraes e Carolina
Severo Figueiredo. A necessária presença de Maurício Tragtenberg neste dossiê tem o papel de
demonstrar o significado de seu trabalho acadêmico e militante, reverberante na educação
popular, na universidade e entre os trabalhadores, sendo responsável pela presença de Francisco
Ferrer, na década de 1970, na importante Revista Educação e Sociedade. Maurício Tragtenberg
foi um intelectual autodidata de inigualável trajetória e contribuição para os estudos de
sociologia, história e anarquismo, sendo o relato de Doris Accioly e Silva singular, uma vez
que elaborado a partir de sua trajetória de formação intelectual e pessoal junto a Maurício
Tragtenberg. E, por fim, Antônio Arnoni Prado, cuja homenagem tem especial lugar por ocasião
de seu falecimento, neste ano de 2022. Arnoni Prado foi um importante intelectual da área de
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literatura brasileira, orientado por Antoni Candido, de excelente contribuição para o estudo do
anarquismo no campo da literatura e da linguagem, com trabalho inspirado nos estudos de
estética anarquista efetuados por Litvak, como se nota na importante obra Contos Anarquistas,
publicada por Arnoni Prado e Francisco Foot Hardman, na década de 1980.
A diversidade de textos presentes neste dossiê desenvolve tanto abordagens verticais,
como panorâmicas, de modo que a colaboração de trabalhos como o artigo de Rodrigo Rosa da
Silva, intitulado Pelas trilhas da educação anarquista: um balanço panorâmico das pesquisas,
elabora um levantamento de estudos importantes para a construção teórico-prática do
anarquismo no Brasil e em relação a outros contextos territoriais e históricos que elaboram
atualmente a prática e o ideário anarquista. A pesquisa panorâmica tem o significado de
priorizar trajetórias intelectuais para além do espaço da universidade, característica inerente ao
anarquismo, que não se restringe às instituições de poder e à institucionalização do saber para
a construção e difusão do conhecimento. Destacamos neste artigo iniciativas como o Projeto de
Pesquisa e Extensão “A Escola Moderna no Brasil (1900-1930): Anarquismo, Sindicalismo e
Racionalismo Pedagógico”, sob coordenação de Rodrigo Rosa, a partir do qual se tem
aprofundado os estudos sobre as Escolas Modernas no Brasil, uma vez que, como demonstra o
autor:
O desafio das pesquisas históricas repousa, em grande parte, na tentativa de
compreender a recepção e circulação das ideias, em identificar escolas e
sujeitos vinculados a tais propostas e apresentar suas biografias e relatos sobre
suas práticas educativas e atuação política e sindical. Esses são alguns dos
objetivos por nós também perseguidos.
os trabalhos verticalizados e particularizados nas temáticas, contextos e trajetórias do
ambiente anarquista permitem a gradativa construção do olhar panorâmico do movimento e de
sua construção histórica. Tais especificidades podem ser situadas a partir dos temas abordados
neste dossiê, como guerra civil espanhola, arte anarquista, mulheres anarquistas e feminismo,
antiespecismo e luta animal, espaços anarquistas como Centro de Cultural Social e Biblioteca
Terra Livre, em São Paulo, e Fundação Ferrer y Guardia, em Barcelona, poesia anarquista,
anarquismo e homossexualidade, anarquismo e organização documental, anarquismo e
comunalismo. A representatividade espacial se desloca entre Brasil, Portugal, México, Estados
Unidos, Itália, Alemanha, Uruguai, Argentina, Espanha e Catalunha.
Muitos dos temas desenvolvidos neste dossiê elaboram a percepção sobre continuidades
históricas, como a questão do pacifismo, por exemplo, que poderia ser uma continuação
daqueles que visavam acabar com as guerras imperialistas mais de um século. Fernando
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Bomfim Mariana, em sua contribuição sobre a importância dos movimentos sociais libertários
para uma educação antimilitarista e uma cultura política de luta pela paz, sublinha
o indissociável sentido político das lutas sociais que promovem a paz a partir
da justiça social, da igualdade, da liberdade e de outros valores que podem nos
proporcionar um reencontro com a arte de viver e o respeito radical ao ser
humano e à vida na terra. [...] a cadeia produtiva da violência
transnacionalizada em larga escala e incorporada economicamente às
condições gerais de produção dos principais estados capitalistas”
independentemente do capitalismo liberal (Estados Unidos, Europa e outros),
independentemente do capitalismo de Estado (Rússia, China e outros).
E ressalta a singularidade do pacifismo anarquista. Obviamente, as posições antes da
guerra nem sempre foram as mesmas, na prática, na frente libertária, como deixou claro a
divisão e até a confusão libertária na Primeira Guerra Mundial. Houve e há debate sobre isso
4
.
Historicamente, os anarquistas distinguiram entre guerras nacionais (entre estados) e guerras de
classes, guerras civis. Referente básico: a desobediência civil no sentido exposto por Henry
Thoreau em meados do século XIX. Repúdio ao militarismo que decididamente nos ultraja: de
suas ditaduras militares aos exércitos humanitários e suas “operações especiais”, da violência
sexista aos caprichos disciplinares e uniformes sangrentos. Guerras são crimes contra a
humanidade. Mariana distingue entre milícias privadas (capitalistas) e milícias populares que
se organizam para promover direitos coletivos e individuais e a favor da igualdade social, como
o Exército Zapatista de Libertação Nacional ou a luta das mulheres em Rojava, no Curdistão.
Devemos denunciar o militarismo do Estado, contrário à autonomia social dos povos. Lutar
pela paz é o oposto da apatia e da passividade
jamais concebemos a paz enquanto algo neutro, mas sim como uma práxis
determinada por significado político. Em “Pacifismo e equilíbrio do terror”,
Maurício Tragtenberg exalta a importância do movimento pacifista mundial
na contramão daquilo que denomina “equilíbrio do terror”, seja o equilíbrio
estabelecido pelas indústrias armamentistas estadunidense e soviética.
A amostra de um ponto de vista radicalmente a favor da educação para a paz viria a ser
um exemplo contemporâneo da validade política dos postulados libertários. Mas não se pode
negar que permanece uma espécie de modéstia ou resistência quando se trata de reconhecer a
contribuição da perspectiva anarquista para o pensamento contemporâneo. Esta é a tese da
4
Gilbert Merlio (2011). “Le pacifisme en Allemagne et en France entre les deux guerres mondiales”. Les cahiers
Irice (n.8): 39-59. Jorge Fontenis (2014). Os anarquistas antes da Primeira Guerra Mundial. O "erro" de
Kropotkin. https://revistapolemica.org/2014/02/13
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filósofa francesa Catherine Malabou em (2021/2022) Au voleur! Anarchisme et philosophie
(Paris: PUF)
5
, citado por Pere Solà. Talvez seja por isso que ocorre a circunstância de, no campo
acadêmico do ensino superior, o anarquismo ter desaparecido completamente. Daí o interesse
da contribuição de Edson Passetti sobre uma experiência de sociabilidade libertária na
universidade brasileira, por exemplo, por meio do Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária)
da PUC-SP (www.nu-sol.org). Passetti refere-se aos anos oitenta do século passado, quando o
Centro Acadêmico de Ciências Sociais da PUC-SP entrou em regime de autogestão de
professores e alunos (1987):
A coordenação do curso formou a comissão de professores e abriu aos
estudantes que quisessem participar. Durante um ano conversamos e
discutimos sobre o imprescindível no atual currículo e o que poderia ser
contemplado, tendo em vista as múltiplas discussões que ocorriam extrassala
de aula, no país e no planeta. Nesta comissão ficou claro, entre muitas coisas,
a introdução dos anarquismos.
Passetti explica que, finalmente, o anarquismo como “prática histórica e pensamento
crítico” foi atualmente introduzido no currículo como uma nova disciplina:
Noutras universidades como Unicamp, Universidade Federal da Bahia e de
Santa Catarina, cursos de pós-graduação, cursos livres, eventos regulares e,
principalmente, núcleos de pesquisa levaram adiante os estudos e análises
sobre os anarquismos na perspectiva libertária, escanteando, lentamente, as
pesquisas científicas marxistas sobre o anarquismo que serviam para reiterar
posições político-partidárias e o alpinismo acadêmico, por meio de titulações
burocráticas.
Redes e centros libertários desconfiam de instituições estatais oficiais. Não recebem
auxílio do Estado, e são por ele perseguidos, como aconteceu com o Centro de Cultura Social
de São Paulo, expressão da "história e memória do movimento anarquista" desta capital, atuante
desde 1933, tendo sofrido repressão durante a Era Vargas e a Ditadura Militar. Essa instituição
conectou gerações de libertários em seus quase noventa anos de vida, nos quais “o Centro de
5
Como bem raciocina Cathérine Malabou, discípula del filósofo Derrida, enquanto não elucidarmos a questão dos
vínculos entre anarquia e poder, esta questão não deixará de atormentar o anarquismo, como uma espécie de
recriminação contínua, muito embaraçosa, que não pode ser silenciada de qualquer maneira. A filósofa francesa
tem toda a razão quando nos lembra que liquidar o Estado ou o governo não equivale em nada a liquidar o poder,
os poderes. Um poder austero e imprudente capaz de subjugar o Estado, como quando o milionário presidente
Trump obrigou agentes do FBI ou da CIA a gastar milhões em seus hotéis durante a pandemia. A grande questão
é, então, o que o anarquismo tem a ver e o que precisa fazer com seu próprio poder? Responder implica em
“desconstruir” o anarquismo.
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Cultura Social se reinventa e continua sendo referência no movimento anarquista brasileiro”,
como ressalta Lucia Parra:
Na primeira fase, os organizadores e frequentadores do CCS eram, em sua
maioria, operários. Atualmente, parte significativa de seus organizadores, teve
seus primeiros contatos com o CCS nas décadas de 1980 e 1990, foram
integrantes do movimento Punk e tem formação universitária. Entre os
frequentadores, a maior parte tem formação superior ou é universitário.
Em várias partes da Europa e da América, centros semelhantes atuaram e atuam no
mesmo sentido. É o caso da Biblioteca Terra Livre em São Paulo, apresentado pelo texto de
Vitor Ahagon, que faz um relato ocular da trajetória da biblioteca na atualidade. A presença de
uma militância anarquista ativa envolvida com a intensa edição de livros libertários clássicos,
muitos deles com novas traduções, reedições, textos analíticos, atividades como feiras de livros
e a Feira Anarquista de São Paulo representam algumas das ações efetuadas pela Biblioteca
Terra Livre que configuram um espaço anarquista ativo e importante, como notamos no texto
em destaque neste dossiê. Em Barcelona, damos relevo ao Centro de Documentação Histórica
e Social Ateneu Enciclopédico Popular da cidade de Barcelona. Temos o testemunho de um
dos representantes desta instituição, Manel Aisa Pàmpols. Nos refere que em 1973
trabajaba en la Construcción muy cerca de la térmica del Besòs y después de
la muerte de un obrero de aquella fábrica por un enfrentamiento con la policía,
participé en algunas asambleas y manifestaciones, que se propiciaron por la
zona con algunos enfrentamientos con la policía franquista. [En la Trancisión
al actual régimen monárquico, tras la muerte de Franco] existían en Barcelona
una serie de revistas como Ajoblanco, Star, y en el barrio, aquel que
buscábamos otros compañeros para salir a la calle, poco a poco nos
interrelacionaremos y formaremos el Colectivo Libertario Sant Antoni/ Barri
Xinès…; debía ser principios del 76, ya había muerto el dictador, y poco a
poco la mayoría de los componentes del colectivo entrábamos a formar parte
de los respectivos sindicatos de la CNT, yo que entonces trabajaba en la
construcción entré a formar parte del primer núcleo del sindicato de la
construcción. [...] Después, con el Centro de Documentación Histórico Social,
y el sindicato, llegamos a conocer y tratar a una serie de militantes libertarios
de los años treinta que regresaban del exilio o del mismo exilio interior.
Entendí, su lucha, su historia, y de alguna manera me la hice mía. Estoy
hablando o pensando por ejemplo con Antonio Turón, Diego Camacho,
Liberto Sarrau, Luis Andrés Edo, Germà Riera, Torreñito, Josep Piqueras,
Severino Campos, Ramón Liarte, Ramón Sentis Biarnau, Concha Liaño,
Pepita Carpena, Sara Berenguer, Joaquina Dorado, Libert Forti, Jacobo
Maguid, Concha Pérez, y otros que ya no recuerdo su nombre. [...]
Principalmente nos hemos educado con todos los textos que referenciando la
revolución española , en ciudades como Barcelona, pero también hemos
mirado atrás históricamente buscando las referencias que hemos entendido
adecuadas, desde la experiencia de Ferrer y Guardia a la Escuela Moderna , o
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revista como "Estudios", "Ética" y los referentes clásicos del momento,
Proudhon, Bakunin, Malatesta, Kropotkin, Rafael Barret, Ricardo Mella,
Albert Camus, hasta los actuales, como por ejemplo Hakim Bey, Michel
Albert, Guy Debord, Serge Latouche, Max- Neef, Tomás Ibáñez, Carlos
Taibo, John Zerzen, Murray Bookchin y otros.
Mas, o público realmente sabe o que é anarquismo? Conforme Valéria Giacomoni “todo
el mundo sabe lo que los anarquistas no quieren. Sin embargo, sólo una minoría sabe lo que los
anarquistas proponen”. Para esta historiadora e educadora italiana, o "mundo melhor" a que
aspira o anarquismo passa a
volver a apropiarse de la política como parte de las elecciones cotidianas de
cada uno, de búsqueda de una coherencia. Y que el “mundo mejor” al que
muchos aspiramos tiene que empezar en nuestro día a día, donde la utopía en
lugar de ser algo idealizado e imposible, sea el motor que mueve nuestros
pasos”. Según ella, “llevar a cabo el mundo que imaginamos, al menos por lo
que atañe a nuestra cotidianidad es algo que resulta viable, concreto; en las
pequeñas cosas podemos cuestionar las costumbres de una sociedad
individualista y competitiva.
Ainda sobre percepções acerca do conceito de anarquismo, o artigo de Gilson Leandro
Queluz reflete sobre a obra Les Pacifiques de Han Ryner, publicada em 1914, enfatizando as
intersecções entre utopias literárias antiautoritárias e anarquismo individualista. Esta obra se
contrapõe ao ambiente da primeira guerra mundial, como reflexão irônica aos padrões
civilizatórios europeus, o que aprofunda as possibilidades de compreensão da palavra
anarquismo como utopia.
O interessante artigo de Eduard Masjuan efetua importante contribuição ao debate sobre
a experiência anarquista diante do estado, ao tratar da atuação do educador racionalista
anarquista Albano Rosell, residente em Montevidéu, catalão separatista, motivado pelo intuito
da “separação política e cultural da Catalunha da Espanha para conseguir um novo país europeu
sem Estado e sem Exército nacional. Após esta experiência, Rosell evoluiu para o federalismo
recluso e para o iberismo anarquista”. O artigo expressa a circulação de ideias anarquista na
América do sul a partir da trajetória Albano Rosell, com postulados kropoktinianos e
reclusianos, calcados em sua experiência de vida:
Cabe recordar que Rosell provenía de una familia de Sabadell republicana
federal e internacionalista. Desde su juventud había sido lector de las obras de
sus siempre admirados Francisco Pi Margall y de Joaquín Costa. Rosell, en
sus años de pedagogo en las escuelas integrales anarquistas siempre tomó de
E. Reclus su forma de enseñar la geografía física y humana a los niños.
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A questão da educação aparece relacionando lugares, experiências e trajetórias,
demonstrando a abrangência das ações ocorridas no movimento anarquista a partir das escolas
racionalistas. O artigo de Kaithy das Chagas Oliveira se debruça sobre a Revista La Escuela
Popular (1912-1914), órgão de difusão da Liga de Educación Racionalista argentina, criada no
ano de 1912, seguindo o modelo da Liga Internacional pela Educação Racional da Infância
(1908), criada pelo catalão Francisco Ferrer y Guardia e outros educadores, como Paul Robin.
Este ponto de comunica com o artigo de Luciana Eliza dos Santos, que, ao apresentar aspectos
da educação no cenário anarquista, trata de elementos da Liga para a Educación Racional de la
Infância, conforme proposta de Pere Solà, como documento imprescindível para este dossiê.
Esta Liga, vivida por muitos educadores racionalistas e libertários, merece um grande destaque
como ambiente de debate, produção de análises e conhecimento sobre educação do ponto de
vista da sua real mudança e transformação, o que se contrapõe às perspectivas ideais e
teorizantes. A prática educacional anarquista se quer revolucionária e não reformadora da
realidade social, por isso ocorre no âmbito da construção real e não ideal. O entendimento sobre
o conceito de anarquismo e sua relação com experiências de sociabilidade humanas pode ser
aprofundado por casos como o de Célestin Freinet, renomado educador que expressa a Escola
Nova como vanguarda educacional, com contatos diversos com o anarquismo, como o texto de
Mônica Yumi Jinzenji, Junia Boroni, Mariana Gonçalves André permite compreender.
A historiografia do movimento anarquista internacional continua a ser enriquecida, em
parte, com base nas contribuições das últimas décadas, como as de Francisco (Paco) Madrid.
Este pesquisador oferece um valioso estudo sobre as manifestações culturais dos anarquistas
espanhóis desde a Primeira Internacional até o fim da guerra civil (1869-1939). Madrid segue
explicitamente os passos da professora Lily Litvak para compor um conselho de cultura
anarquista hispânica, argumentando que os anarquistas, sempre contrários à política
parlamentar, construíram um autêntico "parlamento popular" como frente revolucionária, onde
foi primordial a luta educativa e cultural, em seu sentido mais amplo:
literatura en general, incluyendo el ensayo, arte en su expresión más amplia y
la difusión de las ideas anarquistas a través de los periódicos y revistas, cuya
profusión en sus primeros setenta años de vida fue espectacular. No
olvidamos, desde luego, la pasión por el teatro, donde los anarquistas
expresaron con mayor vehemencia las ideas que defendían.
Em algum momento, deve-se perguntar por que os postulados e práticas anarquistas de
um século atrás não tiveram réplicas modernas fortes”, como a CNT dos anos 1930. Este
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dossiê algumas chaves para o caso espanhol ou alemão. Em sua contribuição, Pere Solà
concentra sua reflexão no caso catalão.
Na Alemanha, uma parte da oposição à ditadura comunista da RDA, nos anos 1980,
veio de um anarquismo marcado pelo sindicalismo livre e de estética punk, embora esta tenha
sido silenciada, segundo a notícia de Maurice Schuhmann, para quem naquele importante (na
Alemanha do socialismo real) movimento de oposição libertária não conseguiu se firmar e se
institucionalizar nesses momentos de mudança, perdendo assim seu “potencial revolucionário”.
Esse movimento foi inspirado por Erich Mühsam e outros anarcocomunistas clássicos na busca
de uma “terceira via”.
Muito mais importante é o resíduo que o anarquismo deixou na Península Ibérica. A
preciosa e longa entrevista de 1990 da pesquisadora Lily Litvak
6
com o asturiano José Luis
García Rúa, secretário-geral da CNT (1923-2017) coloca em evidência, como foi
demonstrado. Em si, esta entrevista é um esboço completo da biografia do personagem, que
terminará como professor emérito da Universidade de Granada. Ele havia estudado quando
criança no Colégio Neutro Graduado, onde teve como professor Eleuterio Quintanilla. Durante
a guerra civil, refugiou-se em Olot, na Catalunha, e pouco depois foi para Lorgues, na França,
onde foi confinado em uma colônia para jovens, mulheres e idosos. A entrevista mostra a
trajetória do anarquista resistente dentro do sistema franquista, desde a juventude. Foi co-
fundador do CRAS: Comunas Revolucionárias de Ação Socialista, que veio à tona em 1969
com o objetivo de
re-despertar el movimiento obrero en Asturias…”, “y ese Comité de
Solidaridad tuvo mucha importancia. Prácticamente el Partido Comunista no
podía dar un paso en Asturias sin que nosotros estuviéramos, prendiéndoles el
terreno.
Ingressou na CNT em 1969. Em 1976 ingressou na Universidade de Granada, onde foi
professor de História da Filosofia. Colaborou ativamente na reconstrução da CNT, tendo sido
secretário-geral da Comissão Nacional entre 1986 e 1990. O valor humano da entrevista se alia
ao interesse expositivo do pensamento de um militante anarquista que faz uma radiografia do
capitalismo do final do século XX. Um capitalismo controlador, uma imagem viva do “irmão
mais velho” de George Orwell em 1984. Formalmente liberal, o que o diferencia dos regimes
totalitários é que
6
Lily Litvak é autora, entre uma infinidade de publicações, de Musa libertária: arte, literatura e vida cultural do
anarquismo espanhol (1981) e O conto anarquista (1982). Professora Emérita da Universidade do Texas, Austin.
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aquí, en vez de darte el bofetón abiertamente, el bofetón consiste en que a lo
mejor dentro de tres meses te quedaste sin trabajo sin saber por qué, y es
porque estás apuntado en una lista de no sé qué y de no sé cuánto. Entonces,
esa democracia se va totalitarizando progresivamente.
Revendo a história, vemos que o anarquismo avançou muitos valores e demandas a
serviço do bem-estar e da qualidade de vida dos indivíduos e das sociedades. Por outro lado, a
contribuição das abordagens libertárias no campo educacional é muito importante. Vejamos
mais de perto esses aspectos: vanguarda no campo dos direitos humanos, sensibilidade
ambiental e proteção animal, por um lado. E a pedagogia emancipatória, de outro. A questão
do anarcofeminismo é o foco do artigo de Margareth Rago sobre o movimento Mujeres Libres
na revolução espanhola de 1936-1939. A autora questiona se e como o anarcofeminismo
praticado por elas “criou um modo de existência específico, mais integrado e humanizado” e
de que forma “pode servir para atualizar o imaginário político e cultural do nosso tempo”.
Sabemos que o grupo Mulheres Livres defendia o fim das hierarquias sexuais e sociais,
o amor livre, a maternidade consciente, o direito ao aborto, além dos direitos de acesso à cultura,
ao trabalho e à educação.
Segundo a autora, a relevância das abordagens feministas do grupo é
inquestionavelmente categórica, a partir do fato de que para Mujeres Libres “a liberdade
feminina era condição sine qua non para a mudança revolucionária da sociedade”. críticas
contundentes aos homens anarquistas, que, segundo Rago, se consideram “o umbigo do
mundo”. Os membros do grupo
enquanto defendiam a igualdade de direitos entre mulheres e homens, também
questionavam a maternidade como função essencial da mulher: “que a mulher
cuja vocação não for doméstica e sua ampla realização, a maternidade, tenha
as mesmas facilidades que o homem para buscar e obter outras oportunidades
que lhe permitam conseguir sua liberação econômica.”
Na perspectiva de uma mulher extremamente central à história do anarquismo, o artigo
de Larissa Guedes Tokunaga, Sandra Regina Chaves Nunes e Doris Accioly e Silva, por sua
vez, elabora uma valiosa reflexão a partir da trajetória de Emma Goldman. Intitulado Emma
Goldman e a poética radical: intelectualidade e proletariado no anarquismo, o texto analisa
como a anarquista relaciona proletários e intelectuais, “resgatando elementos da literatura
romântica e realista para ser intérprete internacionalista da emancipação de uma individualidade
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humana”. Trata-se de uma excelente leitura que alia literatura, cultura e anarquismo, sob a ótica
de uma mulher transgressora, como Emma Goldman.
o artigo “A libertação animal na obra de Maria Lacerda de Moura” Patrícia Lessa
oferece-nos uma reflexão a partir das obras desta escritora e professora anarquista, como
Civilização Tronco de Escravos, publicada em 1931 e Amai e... não vos multipliqueis,
publicada em 1932. O artigo de Patrícia Lessa, ao tratar de vegetarianismo e
antivivisseccionismo, aborda a vida da educadora libertária Maria Lacerda de Moura (Minas
Gerais, 1897 - Rio de Janeiro, 1945), que pensou uma nova forma de fazer ciência baseada na
relação entre humanos e outras espécies animais, antecipando assim "algumas das questões
ecológicas e lutas ecofeministas que emergirão muitas décadas depois”.
As narrativas de “resistência feminista” de Lacerda já colocavam em xeque “a ideia de
progresso prometido no processo de constituição e difusão em massa da ciência e da
tecnologia”. A sensibilidade animal de Lessa conecta diretamente a análise de Maria Lacerda
de Moura com os grandes problemas colocados pelo consumo de massa no capitalismo
patriarcal. Responsabiliza-o "pela pandemia e todas as outras doenças suscitadas nos grandes
ganhadores de dólares e sangue da indústria da carne" e adverte que o respeito às pessoas não
humanas pode ser o início de uma transformação na vida planetária, na relação humanidade-
animalidade-plantas, para avançarmos em direção aos modos de existência mais afetivos e
criativos.
Por sua vez, Flávia Lucchesi enfrenta uma questão nada fácil, a do tratamento da
homossexualidade no anarquismo e no movimento queer. Em 1929, a revista anarquista
valenciana Estudios La ambisexualidad”, de Johannes Rutgers, artigo reproduzido na
Anarqueer em 2013. O médico libertário Rutgers foi contra a tendência predominante na mídia
libertária da época, que “condenava essas práticas afetivo-sexuais”. Ele não era o único indo
contra a corrente. Emma Goldman também lutou contra a criminalização de "qualquer ato
sexual realizado livre e consensualmente", opondo-se em suas palavras ao "ostracismo social
invertido".
Ao longo dos dois últimos séculos, anarquistas mostraram coragem ao encarar
assuntos intocados por demais socialistas. As formas de lidar com a questão
da chamada homossexualidade explicitam diferenças entre libertárixs que não
podem ser encaixadas nos tradicionais escaninhos binários de individualistas
ou coletivistas. É uma questão própria dos costumes e modos de vida, que
expõe até que ponto eram e são revolvidos, conservados ou revestidos nas
relações anarquistas. As diversas forças ácratas que anunciavam esses
combates no final do século XIX e início do XX evidenciam essas nuances e
divergências mais claramente. Indicam como as liberdades se expandiam e se
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contraíam, reduzindo-se ao se misturarem e reproduzirem os discursos da
ordem e as condutas majoritárias.
Expõe como as
discussões acaloradas na imprensa libertária sobre amor livre também
apresentam as diversas maneiras de anarquistas lidarem com as suas relações
amorosas, entre amigxs, camaradas amorosxs, como amor plural, repercutindo
também na educação das crianças. O enfrentamento ou adequação à moral
burguesa e religiosa trazem uma outra tensão entre a expansão da anarquia e
sua redução, por vezes chegando a tangenciar proposições autoritárias,
reproduzir o discurso jurídico e os castigos, tentar governar o amor livre.
Muita água correu desde então. Dos anos sessenta do século passado aos estudos queer
dos anos noventa, uma nova sensibilidade, também entre aqueles que compartilham abordagens
libertárias, abriu caminho:
Afirmava-se na luta contra a sociedade e o próprio movimento de gays e
lésbicas que almejava assimilação a esta mesma ordem, implicando sua
impreterível redução ao mesmo. O que irrompeu nos Estados Unidos com o
nome de queer e radicalizou-se como anarcoqueer e em experimentações
como a Bash Back!, ressoa em outros cantos do planeta. Manadas queer que
tiveram e têm outros nomes, outras línguas; existências únicas que propagam
a revolta e um modo de vida queer libertário. Desde a virada do século até o
presente, pulsam com intensidades múltiplas e, muitas vezes, despercebidas.
Ou são propositalmente deixadas no ostracismo também entre anarquistas,
que em sua maioria, declaram-se contrários a homo-lésbo-transfobia, por
vezes até apoiando causas democráticas reivindicadas pela maioria entre essas
minorias. De modo que acabam por sustentar a continuidade dos direitos e
suas intrínsecas penalizações. Não se dispõem a se transformarem
radicalmente, a lutarem contra si mesmxs, nem a questionarem ao que estão
sendo levadxs a servir. No agora, as nuances e forças em luta são mais difíceis
de se cartografar. A pergunta que abre este texto permanece sem uma resposta
fechada. Mas aqui se apresentam pistas, alertas, outros tons e sons que
emergem das batalhas dessas forças. Outras histórias, experimentações,
existências; uma constelação para outro singrar livre. Estamos vivxs!
Este dossiê inclui um artigo da Fundación Ferrer Guardia de Barcelona sobre o
arquivo/biblioteca desta instituição, escrito por Miguel Guarau, texto muito elucidativo do
ponto de vista histórico e arquivístico, para que se conheça o significado da trajetória de Ferrer
e o trabalho de guarda documental feito pela Fundação. O trabalho de guarda documental é uma
prática muito presente entre anarquistas, em seus meios militantes desde sempre, de maneira
que a Fundação Ferrer i Guardia permite a resistência dessa história em um contexto que não
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se submete a interesses institucionais estatais de guarda documental, por exemplo, mas da
memória social. Diante de seus objetivos, observam que:
Uno de los principios fundamentales que guían la actuación de la Fundación
Ferrer Guardia es preservar la memoria del pedagogo catalán. El archivo y
biblioteca no es sólo un lugar de consulta para investigadores sino un espacio
de encuentro, en el que se realizan presentaciones de obras relacionadas con
Ferrer y/o el tiempo histórico que le tocó vivir.
Na trilha de Ferrer, notamos a presença da educação em diversos artigos apontados
neste texto, entre os quais damos relevo às pesquisas com fontes efetuadas no Brasil. É o caso
da trajetória de João Penteado, professor anarquista paulista investigado por diversos estudos
na atualidade. É nessa perspectiva que a semente educacional do anarquismo é percebida na
contribuição de Daniel da Silva Barbosa, que traça os fatores biográficos e intelectuais que
acompanharam "a formação de João Penteado como professor e sua inserção na epistemologia
anarquista", a partir da análise de fontes impressas como jornais locais -como Commercio do
Jahu e Correio do Jahu- e jornais libertários da capital paulista -como A Lanterna, A Guerra
Social e A Terra Livre-, além da obra de João Penteado Pioneiros do Enseñanza Primaria. Este
artigo apresenta um percurso muito significativo sobre João Penteado com base em
documentações presentes na cidade natal do anarquista, Jaú, o que difere do artigo de Carmen
Sylvia Vidigal Moraes, Ângela Rabello e Tatiana Calsavara, pesquisa efetuada diretamente
sobre fontes organizadas no Arquivo João Penteado, sobre a custódia do Centro de Memória da
Educação, FEUSP. O Arquivo João Penteado é um conjunto documental que ainda hoje requer
muita pesquisa e apontamos a importância do acesso e conservação de documentações como
essas a investigadores, militância e demais interessados que muito podem contribuir para sua
compreensão. Daniel destaca que:
entre las experiencias didácticas de Penteado como estudiante y sus elecciones
como maestro libertario enseñando en una escuela aislada en la zona rural de
Jaú [...] O ponto de inflexão da intelectualidade e experiência de vida de João
Penteado que motivou sua escolha pelo anarquismo como filosofia de
interpretação da sociedade e da pedagogia racionalista como sua prática
docente.
A semente da educação libertária (“o caminho da liberdade é a liberdade”, Bakunin)
sobreviveu no Brasil até hoje. Eduardo José Fernandes Nunes/ Igor Rodrigues Sant'Anna fazem
uma crônica sobre o Instituto Socioambiental Valéria (ISVA), que descrevem como "vontade e
prática da educação libertária em Salvador-BA", experiência desenvolvida em Valéria,
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subdistrito de Salvador, que em 2010 abrigava aproximadamente 26.210 habitantes, “que
careciam, e carecem ainda hoje, de várias necessidades fundamentais, em educação, saúde,
habitação, áreas de lazer e saneamento”. Em si, o artigo é uma homenagem à alma do projeto,
Antonio Fernandes Mendes (1936-2015).
A crônica utiliza experiências próprias, registros do blog do ISVA, materiais impressos,
fotos, vídeos, documentários e entrevistas, etc. “Nos dez anos de ISVA aprendemos que
construir diálogos intergeracionais sem hierarquias e unir diversão e responsabilidade em uma
construção coletiva”. Esta experiência educacional original utilizou práticas ecoprodutivas e foi
orientada para a pedagogia ambiental "como proposta de preservação do meio ambiente
formado pelas matas da Mata Atlântica" numa perspectiva de economia solidária e autogestão
social e, por meio de um projeto de formação de leitores , promoveu diversas atividades lúdicas
para crianças e adolescentes do bairro, numa ética de educação não formal baseada em
“diálogos sem hierarquias, diversão e responsabilidade, construção coletiva”:
ISVA dejó un legado importante para todos los que estuvieron allí y
contribuyeron. En los últimos años, aparecieron las dificultades y poco
después, con la enfermedad y la muerte del socio Antônio Fernandes Mendes,
se cerraron las actividades en ISVA. El espacio fue vendido por la familia y
una empresa ocupó el área, destetando el espacio natural preservado por el
compañero durante gran parte de su vida, desde la década de 1970.
Mas na atual encruzilhada complexa e dramática, o que o anarquismo pode contribuir?
Para Manel Aísa Pàmpols, a "construção da solidariedade e do apoio mútuo" é modulada a
partir da naturismo, ecologismo, vegetarianismo, nudismo, animalismo, anarcosindicalismo,
mutualismo, cooperativismo, individualismo, Primero la Tierra, Defensa de los árboles, etc.”.
Na época, em um momento de agudo conflito social
el anarquismo, que entroncaba directamente con el pueblo, con las clases
sociales obreras y menos favorecidas del país, con el llamado lumpen
proletariado tuvo la capacidad de construir una sociedad desde abajo, sin
remilgos y con las cosas muy claras y sus defectos naturalmente.
Depois do “curto verão da anarquia”
7
, marcado pela autogestão em numerosos setores
industriais e agrícolas durante vários meses entre julho de 1936 e 1937, veio a repressão de
Franco, que dizimou a resistência anarquista interna. Também em Portugal, segundo José Maria
7
Der kurze Sommer der Anarchie. Buenaventura Durrutis Leben und Tod (El corto verano de la anarquía. Vida y
muerte de Buenaventura Durruti) de Hans Magnus Enzensberger (1972).
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Carvalho Ferreira, "o anarquismo e o anarco-sindicalismo portugueses tiveram o seu momento
áureo nas três primeiras décadas do século XX" (criação da FAI em 1927 e da CGT em 1919 e
do jornal A Batalha). O anarco-sindicalismo foi imposto em um contexto onde, segundo este
autor, os valores judaico-cristãos prevalecentes não possibilitavam o surgimento de qualquer
margem de manobra que indicasse o caminho da autonomia no sentido da criatividade e
liberdade cultural, educacional e sexual.
Com a clandestinidade forçada e as perseguições durante a ditadura de Salazar, os
postulados libertários foram relegados pelas propostas comunistas do PCP, que
tinha adquirido grande capacidade em desenvolver a sua militância na
clandestinidade, na media em que obedecia a um modelo ideológico
imperativo e que era basicamente financiado pela Internacional Comunista
sedeada em Moscovo.
Então, segundo Carvalho Ferreira, o anarco-sindicalismo português que não soube
interpretar, nem antes nem depois do 25 de abril, as novas necessidades coletivas da classe
trabalhadora, nem a “evolução do capitalismo e o Estado”:
Quando o anarquismo português depois de 1926 confronta as mudanças das
diferentes contemporaneidades históricas sofre uma desintegração
progressiva ao ponto de, aquando da revolução portuguesa, em 25 de Abril de
1974, estar reduzida um punhado de figuras militantes simbólicas que a sua
grande maioria antes faziam parte do Comité Confederal da CGT na
clandestinidade. As configurações modelares da luta de classes, por outro
lado, deram azo à hegemonia revolucionária do comunismo, do socialismo e
do capitalismo. O anarquismo como modelo de sociedade esvaziou-se de
sentido revolucionário em relação aos objetivos do operariado do século XX
após as revoluções da Rússia, em 1917, da China em 1949 e Cuba em 1959.
E de Portugal fomos para o Brasil. Rodrigues sustenta que o jornal A Terra Livre (1905-
1910)
tenía una relación muy estrecha con los principios anarcocomunistas, tal como
aparece en las obras de Piot Kropotkin, Errico Malatesta y Élisée Reclus, y
que la posición a favor de las luchas sindicales sostenida por sus editores no
era anarcosindicalista, sino una concepción anarquista organizativa del
sindicalismo revolucionario”. (…) “A Terra Livre atuou como um importante
difusor do modelo sindicalista revolucionário. O jornal procurou trazer textos
que confrontavam os modelos sindicais em diversas partes do mundo com o
sindicalismo que surgiu com a CGT francesa.
O autor critica as interpretações historiográficas dos anos oitenta
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que buscaram analisar o anarquismo em São Paulo e acabaram por classificar
A Terra Livre como um jornal anarcossindicalista, que fazia uma
contraposição à perspectiva dos anarco-comunistas do jornal La Battaglia...”.
Según él “não sentido em colocar A Terra Livre como contrário ao anarco-
comunismo, mas sim como um adepto dessa causa.
E do Brasil ao México. O artigo de Benjamín Maldonado Alvarado sobre o movimento
anarquista mexicano apresenta uma contribuição fundamental ao dossiê por situar o conceito
de comunalismo, problematizando a aguda percepção do anarquista Ricardo Flores Magón
acerca da organização indígena mexicana preexistente e a possível relação com elementos do
anarquismo. Maldonado pontua tal percepção magonista que “encontrou no modo de vida
indígena a experiência histórica coletiva que levaria à organização da sociedade libertária e
autogestionária após o triunfo da revolução contra o Estado”. E sustenta que
a comunalidade ou modo de vida comunal das comunidades indígenas
mesoamericanas ainda está amplamente viva em lugares como Oaxaca, razão
pela qual continua sendo a base para a organização de um mundo livre e seus
jovens são cada vez mais treinados para recuperá-la em seus sentidos de
resistência, rumo à libertação.
O detalhamento sobre a noção de comunalismo como prática social e apoio mútuo que
engendra o artigo de Maldonado se comunica com o trabalho de João Francisco Migliari
Branco, que atualiza as tradições comunais mexicanas com o movimento de professores diante
do governo de Oaxaca, ocorrido em 2006. O artigo evidencia a ação da população, marcada
pelo apoio mútuo e formas de organização coletiva, que destaca a experiência da Comuna en
Oaxaca:
O cenário de cidade ocupada exigiu a conformação de uma estrutura política
que desse conta desse arranjo popular que reconfigurou a administração da
capital. E essa foi a Comuna: difícil definir se foi uma insurreição, uma
revolução, os dois, qual seria seu destino se o curso da História não tivesse
novamente caído à repressão. O fato é que a Comuna durou cerca de seis
meses, e a forma mais precisa para compreender o seu arranjo político foi o
de Sérgio Sánchez: um movimento de movimentos. Os insurrecionistas se
viram com o desafio de organizar uma cidade que enfim expulsou o poder por
meio da aliança de diversas organizações populares contra hegemônicas:
movimentos indígenas, sindicatos, estudantes, trabalhadores rurais,
movimentos feministas e a APPO: Asamblea Popular de los Pueblos de
Oaxaca.
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A partir desta discussão, o artigo se sustenta em importantes referências que afirmam a
linhas teórico-práticas anarquistas, desde Kropotkin a David Graeber e Case Angatú,
focalizando sob o olhar das ciências humanas, como a sociologia, a antropologia e a história, a
esfera anarquista e a percepção indígena, combatentes do capitalismo na atualidade.
No que diz respeito à questão artístico-cultural, já muito bem representada neste dossiê
pela presença de Lily Litvak, cabe dizer que a criação estética do movimento anarquista é
inesgotável. “Distantes das salas de concerto e dos museus, a arte da vida anarquista”, a longa
e consistente obra de Gustavo Simões, mostra isso claramente, apontando que, ao longo do
século XX, diferentes artistas anarquistas lutaram contra a institucionalização da arte em
concerto salões, museus ou galerias, postulando outras formas de existir, outras formas
artísticas de viver, “muitas vezes quase imperceptíveis”. Centra-se particularmente em Peter
Lamborn Wilson (“Hakim Bey”), recentemente falecido (maio de 2022) e nas suas receitas de
“terrorismo poético” e “sabotage art”, defensor da “art disappearing” ou Vanishing Art. A
vitalidade militante da arte tem precedentes ilustres: de Pierre-Joseph Proudhon (1865), Oscar
Wilde (1891), Liev Tolstoy (1897) ou Emma Goldman a John Cage -que substituiu Marcel
Duchamp- em meados do século XX, The Living Theatre ou performances anarquistas da
“geração beat”. Cage foi o teórico e praticante da “anti-representação” como forma de “ação
direta”, imortalizada por “433” em 1952. Ele seguiu seus passos em 1966 na cidade lombarda
de Milão The Living Theatre, quando os atores do grupo ocuparam o espaço da performance
imóveis o tempo todo e sem falar. A teoria da “harmonia anárquica” de Cage (por volta dos
anos noventa) veio atualizar a mensagem de Duchamp. A tese hiperbólica de Cage segundo a
qual a maioria dos edifícios culturais (museus, salas de concerto ou... escolas!) de
"desaparecimento", e de, nas palavras do romancista Enrique Vila Matas: aparecer, mais
adiante, onde menos se espera, junto da vida no dia-a-dia. A todo instante, ocorre uma
transformação radical. Para alguns anarquistas, em outras palavras, isto é, arte.
O culminar do dossiê é colocado pelo criador Claudio Rodríguez Fer (Universidade de
Santiago de Compostela, Galiza), que aborda o anarquista a partir da criação poética na língua
galego-portuguesa através de composições vibrantes (como De ADN do infinito, Santiago de
Compostela, Andavira, 2021) que esbanjam compromisso com a memória libertária e
sensibilidade erótica com fundo surreal
“ADN DO AMOR E DO PRACER. O ADN do amor/ consiste na eternidade
namorada,/ superadora do tempo/ nun espazo corpo: non é xenético, pero si
xenesíaco./ Eu non busco pero encontro e encóntranme/ e non sei cal é a escala
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do código químico, / pois non distingo o cromosoma dunha ollada/ nin a
secuencia dun orgasmo azul/ no núcleo do xenoma da erótica astrofísica”.
Claudio Rodríguez Fer, que nos comove, por exemplo no livro Ámote vermella (Te amo
Roja) publicado em Vigo em 2009, ao apontar diretamente para a repressão fascista contra as
mulheres assassinadas na Galiza desde julho de 1936:
ÁMOTE, ANARQUISTA. Con abraio crían ás veces/ que chegaría a existir/
a utopía libertaria/ e ás veces crían que non,/ aínda con máis abraio.../ Era
entón a Galicia anarquista/ unhas cantas vivendas obreiras/ como mapoulas
moi abertas / nos barrios proletarios das Atochas,/ unha casoupa clandestina
en Cea/ sobre as raíces do fento dentabrún,/ unhas humildes moradas
campesiñas / con liques de Badiña ou de Marselle,/ onde non había moito que
comer,/ mais tampouco poder. [...]. / Ocultáronnos ás mulleres máis libres/ e,
non obstante, fórano ata a fin./ Din que algunhas morreron por amor/ aos
anarquistas que agachaban,/ o que é morrer tamén muller e ácrata./ Borráronas
da historia e malia todo/ setenta anos despois hai quen as ama./ Sardiñas para
elas e unha libra de cereixas/ vermellas como a súa primavera libertaria/ e para
sempre ámote anarquista ou nada.
Com as belas palavras de Rodríguez Fer encerramos nossos comentários acerca dos
textos presentes neste dossiê, o que não esgota a profundidade e abrangência trazida à tona por
seus escritores.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao encerrar as reflexões acerca dos textos que compõem este dossiê, convidamos os
leitores para sua apreciação como obra que objetiva expor a atualidade do ideário anarquista
em perspectiva diacrônica, expressando o transcorrer histórico da luta internacional anarquista,
e sincrônica, galgando possibilidades de interpretações anarquistas da sociedade coetânea em
diálogo com momentos diversos do passado. Assim, a partir da amplitude de estudos aqui
presentes, apontamos duas ações candentes que podem se reverberar de maneira salutar: o
levantamento e sistematização de estudos acadêmicos e militantes sobre anarquismo, que, como
demonstra este dossiê, são muitos e diversos, e o fortalecimento de redes de estudos anarquistas
e sobre anarquismo, que sobreponham barreiras territoriais e acadêmicas. Como se sabe, as
práticas culturais e políticas anarquistas estão vivas de maneira ininterrupta entre os meios
sociais e militantes autônomos e antiestatais desde sua formação. Mas, é importante
problematizar a presença/ausência da perspectiva científica e dos estudos anarquistas na
universidade contemporânea; um exemplo interessante de relação com a escola, com a
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universidade e com a produção de conhecimento é a trajetória e grandiosa obra de Élisée Reclus.
Como é possível estudar a história da luta social dos trabalhadores e o combate ao capitalismo
e ao fascismo sem falar de anarquismo? O modelo para esta historiografia silenciosa já temos,
mas temos também aberto o caminho nada simples para desconstruí-la e extravasar suas lacunas
e meandros. Dessa forma, a constante reconstrução de um estado de arte sobre o anarquismo é
um objetivo que se anuncia após a finalização deste trabalho, que somente se colocou em curso
mediante a contribuição dos diversos pesquisadores e militantes anarquistas com seus artigos,
documentos e homenagens aqui apresentados. Reiteramos a importância de um minucioso
levantamento de pesquisas e ações presentes em contextos que compartilham academia e
espaços de militância. A circulação de pessoas, textos, práticas anarquistas seguem em curso,
como evidencia este dossiê, em pleno diálogo com a trajetória histórica do ideário. E para além
das marcas das territorialidades e dos nacionalismos, o ideário anarquista segue abrangendo
espaços e culturas, dialogando com insurgências e resistências que figuram na sociedade de
maneira independente das categorizações acadêmicas. A resistência das lutas sociais expressas
neste dossiê demonstra o quanto a universidade precisa da vida social latente para que se renove
e compreenda a formação humana. Além disso, considerando o percurso do dossiê, apontamos
aqui a importância de maior conexão com autores da América do Sul, investigadores de
contextos históricos e atuais do anarquismo que trazem, por exemplo, a intenção de transbordar
o "nacionalismo metodológico”, como destaca a interessante pesquisadora argentina Ivanna
Margarucci (2020), ao assinalar que “apesar do internacionalismo do movimento libertário, seu
passado foi sempre estudado dentro dos limites político-territoriais do Estado-nação”.
Colocamos em relevo o objetivo de firmar diálogos com trajetórias históricas do anarquismo
em territórios como Peru, Bolívia, Equador, Cuba, Costa Rica, Chile, e demais contextos
americanos com trajetórias de luta social e cultural diante da dominação capitalista, englobando
uma realidade transcendente das fronteiras e barreiras epistemológicas. Como matriz cultural
do anarquismo, a heterodoxia, o internacionalismo e a conexão entre povos e lugares
combatentes de uma sociedade cada vez mais complexa, ilusória, tecnológica e vigilante se
configuram e reafirmam, portanto, como permanente metodologia ácrata de luta social e
cultural revolucionárias.
REFERÊNCIAS
BAKUNIN, M. Dios y el Estado. Madrid: Biblioteca Júcar, 1976.
ISSN 2447-746X DOI: doi.org/10.20888/ridpher.v8i00.16120
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Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 8, p. 1-24, e022001, 2023.
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LEUENROTH, E. Roteiro de Libertação social. Río de Janeiro: Mundo Livre, 1963.
LITVAK, L. Musa Libertaria: Arte, Literatura y Vida Cultural del Anarquismo Español.
Madrid: Fundación Anselmo Lorenzo, 2001.
MARGARUCCI, I. Repensando el anarquismo en América Latina. ¿Del nacionalismo
metodológico a un giro transnacional incompleto? Prohistoria, Año XXIII, núm. 34, dic. 2020.
MARGARUCCI, I., GODOY SEPÚLVEDA, E. Anarquistas ‘en movimiento’. Redes de
circulación e intercambio en el Norte Grande, 1900-1930. Diálogo Andino, Revista de Historia,
Geografía y Cultura Andina, 2020.
RECLUS, E. Evolución, revolución e ideal anarquista. São Paulo: Imaginario, 2002.
RECLUS, E. El hombre y la tierra (6 tomos). Barcelona: Maucci, 1906/1909.
Recebido em: 26 de dezembro de 2022
Aceito em: 29 de dezembro de 2022