ISSN 2447-746X
DOI: 10.20888/ridpher.v7i00.16016
1
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 7, p. 1-8, e021016, 2021.
Ridphe_R
RESENHA
FONSECA, André Dioney; COSTA, Lorena Lopes da (Orgs.). Reflexões e existência:
universidade pública e a formação de professores de história no interior da Amazônia.
Uberlândia: Navegando Publicações, 2021, 198p. Disponível em:
https://www.editoranavegando.com/livro-reflexoes. Acesso em: 20 dez. 2021.
1
PENSAR E EXISTIR, EM TEMPOS DE RESISTIR
Daniela Molina
Universidade de São Paulo, Faculdade de Educação, Brasil
dmolina@usp.br
Os outros lugares são espelhos em negativo. O viajante reconhece o pouco que
é seu descobrindo o muito que não teve e o que não terá. (CALVINO, 2003,
p. 15)
O grande historiador Michel de Certeau apontava que o exercício da escrita da História
seria uma forma de se lidar com a alteridade, de um “outro” ausente, que nos escapou e se
perdeu, de modo que em cada relato histórico se estabelece uma espécie de “jogo da vida com
a morte” (CERTEAU, 2002, p. 57). Lacunas, apagamentos e esquecimentos certamente são
questões que envolvem a prática historiadora, mas, talvez, no caso dos estudos históricos
dedicados à região amazônica e às suas populações, essas ausências sejam ainda mais
constantes, em função de uma tradição historiográfica comprometida com projetos políticos e
sociais que, na maior parte do tempo, buscou construir uma história nacional identificada com
as sociedades europeias, anulando o protagonismo dos sujeitos históricos regionais.
Diante disso, o livro “Reflexões e existência: universidade pública e a formação de
professores de história no interior da Amazônia”, organizado pelos professores André Dioney
Fonseca e Lorena Lopes da Costa, e publicado eletronicamente pela Navegando Publicações
em 2021, é um esforço coletivo na contramão dos apagamentos e silenciamentos, ao registrar
as experiências, dificuldades e desafios enfrentados por docentes e estudantes do curso de
História da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa).
Nesse livro, o leitor vai encontrar a produção de um olhar crítico de vários docentes
sobre suas próprias práticas e as experiências de sala de aula, salas estas compostas por muitos
1
A versão impressa encontra-se no prelo pela mesma editora.
ISSN 2447-746X
DOI: 10.20888/ridpher.v7i00.16016
2
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 7, p. 1-8, e021016, 2021.
Ridphe_R
sujeitos historicamente invisibilizados: indígenas, quilombolas, afrodescendentes, ribeirinhos.
Seus autores, todos professores do curso de Licenciatura em História da Ufopa, alguns
originários da própria terra, outros para atraídos, elegem a sala de aula como o centro de suas
reflexões para, a partir delas, reconfigurarem suas próprias práticas docentes e a própria relação
com o conhecimento histórico. Os organizadores, também autores de dois dos textos, tiveram
o cuidado de dividir a obra em três seções: uma dedicada às reflexões sobre a formação docente,
outra voltada às experiências no ensino de História e a última orientada às reflexões teóricas na
sala de aula, num movimento que parte de uma dimensão mais geral (as grandes questões
políticas nacionais) para uma outra mais particular (as questões regionais e locais e o próprio
pequeno universo da sala de aula), muito embora se possa observar que essas dimensões estejam
em constante diálogo na obra como um todo. A distribuição dos textos ao longo das seções se
de maneira desigual: a primeira é composta por três textos, a segunda, a mais extensa, por
cinco e a terceira reúne apenas dois.
O primeiro texto da parte I da obra (Política e Formação Docente), intitula-se: “O
ensino de história do Brasil republicano em um contexto de crise”, de autoria de André Dioney
Fonseca, também um dos organizadores da obra. Balizando sua reflexão sobre a própria prática
docente na Ufopa a partir do recém percurso da história política brasileira e os processos
espúrios que culminaram na ascensão da extrema direita no Brasil, o autor tece considerações
de como esse quadro crítico do cenário político e social brasileiro o levou a reconsiderar seu
papel enquanto docente de um curso de formação de professores de história no interior da
Amazônia. Dentre tantos desafios que tal empreitada lhe impôs, o docente discorre sobre
algumas de suas práticas na imperiosa desconstrução da imagem técnico-burocrática do
professor, ainda presente na formação docente, para se pensar numa trajetória formativa que
possa cada vez mais abrir espaço para a emergência do professor como um “intelectual reflexivo
e transformador”.
Em “Avaliação formativa: experiências na formação em história”, segundo texto da
seção, Douglas Mota Xavier de Lima, propõe uma reflexão sobre a efetividade dos processos
avaliativos tradicionais na formação profissional dos alunos como professores. Norteando as
discussões sobre os processos avaliativos no ensino superior e seu papel na formação do
professor, a partir da contribuição de diversos autores que se dedicaram a essa questão, o autor
traz um relato de suas experiências em torno das mudanças promovidas no processo avaliativo
em sua disciplina do curso de História da Ufopa, a fim de superar práticas tradicionais e
promover uma formação mais significativa aos futuros professores e uma vivência mais
próxima dos estudantes de graduação com a realidade escolar.
ISSN 2447-746X
DOI: 10.20888/ridpher.v7i00.16016
3
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 7, p. 1-8, e021016, 2021.
Ridphe_R
Que conexões a Ufopa, em seus 10 anos de existência estabeleceu com os povos
indígenas da região amazônica? Essa é a indagação que orienta as reflexões das professoras
Wania Alexandrino Viana e Elenise Pinto de Arruda, no terceiro e último texto (da primeira
parte da obra) intitulado: “Políticas de ações afirmativas e os estudantes indígenas do Instituto
de Ciências da Educação (Iced): vivências e desafios nos 10 anos da Universidade Federal do
Oeste do Pará (Ufopa)”. A discussão proposta pelas autoras se estabelece em torno de dois
enfoques: o das políticas afirmativas encampadas pela instituição ao longo de seus 10 anos de
existência e o do próprio cenário de impasses e dificuldades no qual os estudantes indígenas
encontram-se submetidos ao ingressarem na universidade. Reconhecendo a importância das
ações afirmativas da Ufopa, as autoras apontam para a necessidade de que as conexões entre as
universidades e os grupos atendidos por meio dessas ações sejam cada vez mais estreitadas para
que esses grupos, de fato, possam se firmar do ponto de vista étnico e político.
O texto de abertura da parte II da obra (Experiências de Ensino de História) é: “A
história regional e o Baixo Amazonas: reflexões sobre ensino e pesquisa”, de Vanice Siqueira
de Melo. Nele, a autora relata sua experiência docente na organização e implementação da
disciplina de História da Amazônia I, para os alunos do curso de graduação de História da
Ufopa. A preocupação com a inclusão das discussões historiográficas sobre a região do Baixo
Amazonas revela a baixa produção acadêmica, de dimensão histórica, em torno desse recorte
regional. Recorrendo a algumas fontes do Arquivo Público do Estado do Pará, a autora traça
um panorama da historiografia da Amazônia colonial. A constituição do espaço geográfico
como elemento central de sua trajetória de pesquisa ocupa a centralidade de suas reflexões.
Em “O ‘lugar’ da história da África e das africanidades no curso de história da
Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa): entrecruzamentos e sensibilidades”, segundo
texto da seção, o autor Gustavo Pinto de Sousa parte da seguinte indagação: Qual o lugar da
história da África e das africanidades no curso de História da Ufopa? A preocupação com essa
questão permeia toda a discussão do autor que aponta a necessidade de se pensar o ensino da
história da África e das africanidades muito além do cumprimento de dispositivos legais e
acadêmicos, mas, sobretudo, a partir de uma perspectiva não hierarquizada do conhecimento
histórico. Nesse sentido, o autor analisa a forma de estruturação do Projeto Político Pedagógico
do curso de licenciatura em História da Ufopa, e das ementas das disciplinas que compõem o
curso, a partir de reflexões conduzidas pelo exercício constante da sensibilidade, da identidade
e da alteridade na conexão entre os mais diversos saberes.
“Passos e descompassos entre o saber acadêmico e o saber escolar: as experiências do
programa institucional de bolsa de iniciação à docência de História (PIBID-HISTÓRIA) da
ISSN 2447-746X
DOI: 10.20888/ridpher.v7i00.16016
4
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 7, p. 1-8, e021016, 2021.
Ridphe_R
Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa)” é o terceiro texto da parte II da obra. Seus
autores, Diego Marinho de Gois e Lademe Correia de Sousa, partindo da consideração do
protagonismo da escola no processo de ensino-aprendizagem e no reconhecimento de uma
cultura que lhe é própria, procuram, em suas análises, redimensionar o papel da universidade
em relação ao saber escolar. Nesse sentido, os autores enfatizam a importância da história local
como meio de construção do conhecimento histórico pelos alunos na escola básica, a partir do
relato de um projeto do PIBID
2
- História da Ufopa, desenvolvido em três escolas da rede
pública de ensino da região de Santarém. Para além do saber acadêmico como referência na
constituição do saber escolar, os autores problematizam a importância de se levar em conta as
práticas e demandas da cultura escolar na constituição de um ensino mais significativo.
Em “Reflexões sobre ensino e pesquisa em história indígena no Pará e em Minas
Gerais”, quarto texto da seção, Gefferson Ramos Rodrigues traz um relato de sua trajetória de
pesquisa a respeito da presença indígena em vários movimentos contestatórios no Brasil
colonial, a fim de reafirmar a importância de uma história interdisciplinar (etno-história) nas
abordagens realizadas em torno da questão indígena. Contrastando o sertão amazônico e o
sertão do São Francisco, em relação à ocupação indígena nesses territórios, o autor apresenta
algumas reflexões que o fizeram repensar sua própria prática docente e suas atividades de
pesquisa, diante de uma realidade bastante diferente em relação às suas experiências anteriores,
como a de trabalhar com alunos originários das mais variadas culturas indígenas da região.
Fechando a parte II, a obra apresenta o texto intitulado: “A história econômica da
Amazônia oitocentista em sala de aula: um proveitoso percurso de análise e ensino”, de Luiz
Carlos Laurindo Junior. Nele, o autor tece considerações sobre as potencialidades e os limites
das principais produções historiográficas que investigam a economia da Amazônia no século
XIX. Propondo um novo percurso de análise que leve em conta a diversidade e o dinamismo
que caracterizaram a economia da região e, sobretudo, as especificidades da inserção dessa
região dentro da lógica do sistema capitalista mundial, o autor redimensiona o papel que a
Amazônia exerceu no cenário econômico oitocentista.
O texto “A pergunta sobre o ‘nós’, de Augusto B. de Carvalho Dias Leite e Erick
Araujo abre a terceira e última seção da obra. Nele, os autores partem da seguinte indagação:
como criar as condições em sala de aula para que alunos, professores e os sujeitos que
abstratamente nos relacionamos possam se dizer “nós”? Essa indagação perpassa toda a
discussão proposta pelos autores que apontam a necessidade de fugirmos do isolamento e da
2
Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência.
ISSN 2447-746X
DOI: 10.20888/ridpher.v7i00.16016
5
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 7, p. 1-8, e021016, 2021.
Ridphe_R
homogeneização em busca de nossa conexão com o outro, seja o outro do presente, ou do
passado, do aqui ou do acolá. As experiências relatadas pelos autores, ao longo do texto,
colocam em evidência a condição primeira da atividade do historiador: o encontro com o outro.
O que uma peça grega antiga como Oresteia de Ésquilo teria a nos dizer sobre a ideia
de justiça no mundo atual? Que similitudes as redes de intriga do presente guardam das histórias
encenadas no teatro grego antigo? Em “Piranhas que bebem sangue: tragédia grega e
permanência em nossos sertões”, a autora e organizadora da obra, Lorena Lopes da Costa,
encerra a terceira e última parte da coletânea. No texto, a autora faz um relato dos desafios e da
experiência em sala de aula ao conectar conceitos como vingança e justiça no mundo grego e,
por extensão, conectar a própria obra Oresteia (oferecida como documento de análise numa
disciplina optativa por ela ministrada), tão distante no tempo e no espaço, à realidade vivida por
seus alunos, sujeitos do sertão amazônico, ressignificando a ideia de permanência na história.
O aspecto singular de todas as reflexões contidas na obra assinala a importância e a
emergência da multiculturalidade e das particularidades regionais na formação dos professores
de História. A diversidade cultural, linguística e étnica que caracteriza o corpo discente da
Ufopa trouxe como desafio aos seus professores um novo olhar sobre a experiência docente,
suas práticas e o alcance de suas ações, seus objetos de pesquisa e sobre as questões e problemas
específicos da região e de seus habitantes. A ampliação dessas reflexões para além dos espaços
regionais muito consagrados pela historiografia, sobretudo por uma historiografia
produzida fora dos grandes eixos urbanos, denota um movimento significativo de muitos desses
professores/pesquisadores em se romper com a ideia de identidades únicas, tão ao gosto de
alguns grupos políticos atuantes no cenário nacional, em direção a uma concepção múltipla das
identidades, entendidas como processos marcados por diferenças, que se constituem cultural e
historicamente.
Tais reflexões retiram os sujeitos do esquecimento: os alunos, pelo reconhecimento de
suas origens, seus saberes e suas histórias, e os próprios docentes, por serem autores de
produções acadêmicas tão relevantes, sinalizando em suas produções a diversidade e a
complexidade das culturas do sertão amazônico, tão pouco conhecidas e reconhecidas pelos
tradicionais centros de pesquisa do país.
Cabe aqui uma observação em relação ao prefácio da obra, escrito por Elizabeth dos
Santos Braga, professora e pesquisadora da Faculdade de Educação/USP. Nele, a autora ressalta
a dimensão política que a obra adquire, sobretudo no contexto atual em que as falsas palavras
(numa referência a Paulo Freire) restringem cada vez mais o diálogo com o mundo. Diante de
um processo cada vez mais contundente de cerceamento de direitos historicamente
ISSN 2447-746X
DOI: 10.20888/ridpher.v7i00.16016
6
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 7, p. 1-8, e021016, 2021.
Ridphe_R
conquistados, em decorrência da atuação de grupos políticos ultraconservadores, o texto do
prefácio nos lembra que as universidades públicas se encontram sob ataque. As razões das
constantes investidas contra essas instituições encontram como justificativa a associação das
universidades a lugares contaminados por um “viés ideológico de esquerda”, invertendo assim
a própria lógica de existência dessas instituições, qual seja a de justamente fomentar uma
cultura acadêmica pautada pelos princípios da pluralidade de ideias, da liberdade de expressão
e da diversidade cultural. Esses ataques vêm provocando um forte impacto nas atividades de
ensino e pesquisa, sobretudo, nos cursos da área de humanidades, os quais, na visão dos
referidos grupos, não produziriam um “retorno imediato” à sociedade, num claro desprezo em
relação à relevância e à diversidade de conhecimento produzido dentro dessas instituições.
Nesse sentido, o texto do prefácio levanta a importância da obra em pronunciar as experiências
como forma de (re)conhecimento dos relatos ali presentes, mas também como forma de luta
contra o esquecimento e contra o silenciamento e, no limite, como forma de luta por uma
existência mais humana.
A obra, portanto, coloca em foco a potência de práticas docentes na área de História
sertão afora. Sua força está em mostrar em detalhes o trabalho dos professores: seus limites,
conquistas, dores e desafios, reafirmando a máxima freiriana de que, definitivamente, não existe
ensinar sem aprender (FREIRE, 2001).
As experiências relatadas asseveram o reconhecimento dos vários modos de ser e de
estar no mundo, o (re)conhecimento de um “outro”, que existe em sua concretude ou
abstratamente. Esse “outro” nos coloca diante de nós mesmos, nos convida a olhar além, a olhar
junto; mais do que a diferença, o que encontramos é um lado de nós mesmos, até então
desconhecido. Para além dos limites geográficos, poderíamos pensar o outro como tudo o que
nos circunda, cujo estranhamento alicerça as bases do reconhecer-se, seja esse outro aquele do
recôndito sertão amazônico, seja o outro ali da esquina.
É certo que ninguém escapa da história; mais certo ainda é que a história é um
constante processo de refazer-se, e cada nova experiência partilhada, tais como as relatadas na
obra, aponta em direção a um futuro em aberto, na medida em que as experiências carregam
consigo o potencial de iluminar o entendimento do vivido e inspirar a construção do novo. As
experiências dos outros quando olhadas num espelho negativo, conforme sugere Calvino,
refletem a nós mesmos, mas também aquilo que ainda não havíamos visto, aquilo que
permanece oculto, ainda futuro e que está por ser construído. É por isso que cada experiência
relatada na obra nos enche de esperança de que toda resistência não será em vão.
ISSN 2447-746X
DOI: 10.20888/ridpher.v7i00.16016
7
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 7, p. 1-8, e021016, 2021.
Ridphe_R
REFERÊNCIAS
CALVINO, Ítalo. As Cidades Invisíveis. Rio de Janeiro: Biblioteca Folha de S. Paulo, 2003.
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2002.
FREIRE, Paulo. Carta de Paulo Freire aos professores, Revista de Estudos Avançados, 15
(42), ago. de 2001, Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-40142001000200013.
Acesso em: 05/07/2021.
Recebido em: 20 de dezembro de 2021
Aceito em: 20 de dezembro de 2021