ISSN 2447-746X
DOI: https://doi.org/10.20888/ridpher.v9i00.18588
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Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 9, p. 1-5, e023023, 2023.
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RESENHA
DÖRRE, Klaus. Teorema da Expropriação Capitalista. São Paulo: Boitempo, 2022.
Angelita Matos Souza
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Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Brasil
matos.souza@unesp.br
POR QUE O REGIME DE EXPROPRIAÇÃO NEOLIBERAL SOBREVIVE?
Na obra Teorema da Expropriação Capitalista, Klaus Dörre (2022) procura caracterizar
o regime de expropriação vigente, configurado a partir do final dos anos 1970. Trata-se de uma
abordagem na linha do estudo de Harvey, O novo imperialismo, que igualmente retoma Rosa
Luxemburgo (A acumulação de capital). Na edição da Boitempo, o termo alemão Landnahme
foi traduzido como “regime de expropriação capitalista”, para indicar o sentido geral da
expropriação como inerente à história do capitalismo
Basicamente, a ideia central é a de que o capitalismo precisa de um exterior para seguir
em frente, tese ancorada na acepção da acumulação primitiva como um processo contínuo, não
restrito à pré-história do capitalismo. Neste terreno, vale ler a crítica de Scholz (2019) ao
enfoque da colonização
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, considerado anacrônico pela autora, pois preso a uma época histórica
passada, ao conceber a expropriação em sentido transhistórico para analisar fenômenos novos,
sob o capitalismo neoliberal.
É o caso do teorema da expropriação de Dörre, cujo cerne é a dialética do dentro-fora,
ou interno-externo, isto é, o entendimento de que o capitalismo é um sistema incapaz de se
reproduzir por si só, que depende da expansão sobre espaços não capitalistas para seguir em
frente. Movimento não limitado à dimensão socioespacial ou físico-material, como ensina
Harvey (2002; 2004; 2011), seguido por Dörre, que também abandona a problemática do
consumo (de Luxembrugo) para relacionar crises à sobreacumulação (Harvey, 2004).
Para Dörre (como em Harvey), os processos de expropriação não se limitam ao apossar-
se de um outro, de espaços nada ou pouco mercantilizados, e abarcam a criação contínua de um
outro, como seria o caso no ressurgimento do mecanismo de exército industrial de reserva nos
países do Norte global, formado pelos trabalhadores excluídos do mercado de trabalho e
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Angelita Matos Souza, Cientista Social, mestre em Ciência Política, doutora em Economia, libre-docente pelo
IGCE-UNESP, onde é professora.
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Colonização é como aparece na tradução portuguesa de Scholz (2019).
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reincorporáveis em condições pioradas (devido aos processos de inovação, desindustrialização,
corte de gastos estatais etc.). É este fenômeno que especialmente interessa a Dörre.
A análise do autor inicia pela definição de capitalismo, a qual recupera Polanyi (A
grande transformação) para se contrapor aos fundamentalistas do mercado e argumentar que o
capitalismo é muito mais do que uma economia de mercado. A obra também oferece uma
contextualização histórica das mudanças que engendraram um novo regime de expropriação
desde os anos 1970, destacando o lugar central das finanças neste e as crises financeiras
frequentes como parte integrante do seu modus operandi.
Cabe destacar que Dörre celebra a volta da crítica do capitalismo às ciências sociais e a
reaproximação destas da economia política, bem como o retorno do interesse pela temática das
classes sociais, no qual podemos incluir a sua obra. A análise recorre a Marx e autores marxistas
imprescindíveis à teoria crítica do capitalismo; também à sociologia de Bourdieu, para definir
subclasse de maneira correlacionada ao Estado.
O livro apresenta três explicações principais para a sobrevivência do capitalismo
financeirizado, apesar das suas várias crises. Em primeiro lugar, está o domínio da arte de se
converter poder econômico em poder político da parte de algumas poucas corporações mundiais
gigantes. Em segundo, a imprescindível ação estatal, o sistema não poderia subsistir sem
isso, o Estado apoia o regime de expropriação neoliberal, marcado pela expropriação do próprio
Estado (redução da esfera pública/social). A terceira explicação reside no próprio regime de
expropriação, em dimensão socioespacial e no que diz respeito às mudanças no mundo do
trabalho.
A Dörre importa especialmente as mudanças ligadas à emergência de um mercado de
trabalho dual: de um lado o trabalho assalariado formal, de outro o mundo de trabalhos
precários. O processo de precarização no mundo do trabalho é o central na sua análise sobre o
regime de expropriação vigente. O livro traz um balanço dos debates sociológicos a respeito
(capítulo 3) e aponta questões em aberto sobre as quais a pesquisa sociológica precisa avançar.
O autor distingue os conceitos de precariedade, precarização e precariado (neologismo
fruto da fusão entre precariedade e proletariado) e defende que em países do Norte global está
em curso uma transição da “sociedade de classes integrada [do pós-guerra] para uma sociedade
mais polarizada”. Isto é, embora a “sociedade de classes coesa do capitalismo social-
burocrático” (Dörre, 2022, p. 146) não tenha desaparecido, tem avançado a sua convivência
com grupos diversos de trabalhadores flexíveis e precários.
Um argumento que chama a atenção é o de que certa estabilidade do regime de
expropriação neoliberal advém justamente da instabilidade ligada à conformação do mercado
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de trabalho dual e ao seu efeito decisivo “para uma peculiar estabilização das condições sociais
instáveis” (Dörre, 2022, p. 112). Isso porque a “precarização sustenta um sistema disciplinar e
controlador do qual nem mesmo assalariados integrados conseguem escapar”, na medida em
que o novo regime de expropriação produz “uma incerteza subjetiva geral que atinge situações
da vida até mesmo dos trabalhadores formais” (Dörre, 2022, p. 154).
Do ponto de vista da ação social, as diferenciações entre trabalhadores permanentes e
precários fomenta o corporativismo dos primeiros, combinado à exclusão dos segundos, estes
mais empenhados na busca das saídas individualizadas. Neste contexto, de incerteza
generalizada, a própria configuração do homo economicus seria afetada. Afinal, o cálculo
racional, como ensinou Bourdieu, depende de alguma estabilidade social, que pressupõe
“capacidade de planejamento”, e por isso demanda “um mínimo de segurança de emprego e de
renda” (Dörre, 2022, p. 29).
O fato é que o novo espírito do capitalismo (a referência é o estudo de Chiapello e
Boltanski) está baseado sobretudo no avanço da instabilidade no mundo do trabalho, aguçada
pelo gerenciamento público das crises financeiras, pois este serve de incentivo para atores do
mercado financeiro assumirem riscos incalculáveis, como na crise de 2008-2009. Esta teria
acentuado a natureza instável do sistema capitalista sem abalar o seu modo de ser
financeirizado, ao contrário, desencadeou um intervencionismo estatal que, se não o fortalece,
o segura.
À luz de Harvey (2011), Dörre aponta o crédito e a inovação como os mecanismos
autoestabilizadores escorados nos nexos Estado-mundo financeiro e Estado-empresas, nexos
garantidores do “financiamento de inovações que, através da destruição criativa, dão origem a
um outro não capitalista dentro das sociedades capitalistas” (Dörre, 2022, p. 205). E
acrescentará a esses “dois sistemas nervosos centrais da acumulação de capital delineados por
Harvey” (p. 205), o entre Estado e reprodução do trabalho, como igualmente fundamental à
manutenção do regime de expropriação vigente.
No âmbito desse terceiro nexo é que ocorre a produção política das subclasses, nos
países ricos em torno de 10% e 15% da população “dentro ou abaixo do limiar da
respeitabilidade social” (Dörre, 2022, p. 168). Para Dörre, a identificação de uma subclasse
ocorre principalmente em nível simbólico, não obstante a sua expressão físico-espacial e o fato
da sua expansão ser devido às transformações de base que desembocaram no regime de
expropriação atual.
Do ponto de vista analítico, as subclasses não devem ser identificadas automaticamente
ao precariado, que este seria um conjunto heterogêneo, a ser apreendido a partir de várias
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formas de precariedade social, e não necessariamente desprovido de identidade de classe
positiva, uma característica das subclasses, engendradas pela ação estatal.
À maneira de Bourdieu, o autor define o Estado como “monopólio da violência
simbólica legítima” (Dörre, 2022, p. 180-181), uma espécie de distribuidor de classificações
sociais, o que produz as subclasses. De maneira geral, estas seriam compostas pelos segmentos
dependentes da assistência social pública para subsistir ou, em vez de assistidos, são os mais
sujeitos à violência estatal das prisões em massa (caso dos EUA).
É sobre as subclasses que incidem os piores estigmas discriminatórios, um obstáculo à
conformação de identidades políticas positivas, daí serem os seus membros os mais sujeitáveis
ao populismo de extrema direita e à cooptação pelo terrorismo islâmico. A introdução da
dimensão simbólica na abordagem das classes constitui um dos pontos altos da análise de Dörre,
ao sublinhar aspectos não econômicos relevantes para a manutenção do regime de expropriação
neoliberal.
Em um mundo no qual o maior efeito social da competição acirrada pelo mercado de
trabalho dual é a intensificação da produção simbólica de vencedores e perdedores, as
subclasses, podemos concluir, seriam o maior perdedor entre os perdedores, pois estigmatizadas
em razão da dependência do Estado para sobreviver, de encontro à ideologia do
empreendedorismo. No que diz respeito à ação política coletiva, as formas de luta de frações
do precariado merecem atenção e não excluem de todo o otimismo; com relação às subclasses
não haveria muito espaço para a esperança, estão muito à deriva.
Por fim, nem tudo é desolação, Dörre entende que a teoria crítica não pode se descolar
da reflexão sobre a superação do capitalismo, no entanto a sua obra contempla especialmente a
possibilidade de mudança no interior do capitalismo. Para o autor, seria vislumbrável “uma
nova transformação sistêmica do capitalismo” em sentido ecossocial, capaz de propiciar o
próximo “resgate temporário do sistema” (Dörre, 2022, p. 73-74). Obviamente, alternativa de
contenção defendida pelo autor.
Acima apontamos os pontos principais da obra, nem todos os temas foram abordados,
por exemplo, ficaram fora as considerações acerca da difícil convivência entre democracia e
regime de expropriação neoliberal, bem como as anotações sobre o Sul global e as menções à
esfera da reprodução social (à maneira dos estudos feministas).
Pela gama de questões levantadas e pelas respostas oferecidas, trata-se de uma leitura
bastante interessante. Entretanto, a escrita é um pouco árida, em rios momentos repetitiva
(talvez por reunir artigos), além de apresentar uma série de noções e/ou diferenciações, algumas
chamadas de conceitos, nem sempre elucidativas (precariedade marginal, precariedade
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discriminatória; precariedade da ocupação, precariedade do trabalho; exploração primária,
exploração secundária; expropriação primária, expropriação secundária).
Concluímos a leitura com a impressão de que o Norte global se assemelha cada vez mais
ao Sul global, sem que a distância entre os dois mundos tenha diminuído, pois se ambos
afundam no regime de expropriação vigente, os países do Norte global continuam na proa.
REFERÊNCIAS
BOLTANSKI, L.; CHIAPELLO, È. O novo espírito do capitalismo. Martins Fontes, 2009.
HARVEY, D. Spaces of capital: Towards a critical geography. Routledge, 2002.
HARVEY, D. O novo imperialismo. Edições Loyola, 2004.
HARVEY, D. O Enigma do Capital e as crises do capitalismo. Editora Boitempo, 2011.
LUXEMBURGO, R. A acumulação do capital. Editora Civilização Brasileira, 2021.
POLANYI, K. A grande transformação. Leya, 2013.
SCHOLZ, Roswhita. Cristóvão Colombo forever? - para a crítica das atuais teorias da
colonização no contexto do “colapso da modernização”. Geografares, [S. l.], n. 28, p. 116
169. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/geografares/article/view/24390. Acesso em: 31
dez. 2023.
Recebido em: 20 de dezembro de 2023.
Aceito em: 31 de dezembro de 2023.