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O ANARQUISMO E O SABER: PRÁTICA, PERMANÊNCIA E ATUALIDADE
Luciana Eliza dos Santos
Universidade de São Paulo, Brasil
lucianaeliz@gmail.com
RESUMO
Este texto trata de princípios e práticas escolares anarquistas, presentes em movimentos em
torno da educação em meios operários, populares, livre-pensadores difundidos em contextos
sociais urbanos e rurais das sociedades contemporâneas. Essas escolas ocorreram em
decorrência de convergências políticas, culturais e sociais, que imprimiram expressões
significativas de práticas educacionais questionadoras de diferentes estabelecimentos da forma
escolar, no decorrer de sua história. Destaca-se, dessa forma, algumas emblemáticas práticas
educacionais anarquistas e seus significados na História da Educação.
Palavras-chave: Anarquismo. História da Educação. Prática Anarquista.
ANARQUISMO Y SABER: PRÁCTICA, PERMANENCIA Y ACTUALIDAD
RESUMEN
Este texto trata de los principios y prácticas de la escuela anarquista, presentes en los
movimientos en torno a la educación en ambientes obreros, populares, de libre pensamiento,
difundidos en los contextos sociales urbanos y rurales de las sociedades contemporáneas. Estas
escuelas se dieron como resultado de convergencias políticas, culturales y sociales, que
imprimieron expresiones significativas de cuestionamiento de las prácticas educativas de los
diferentes establecimientos de la forma escolar, a lo largo de su historia. De esta manera, se
destacan algunas prácticas educativas anarquistas emblemáticas y sus significados en la
Historia de la Educación.
Palabras clave: Anarquismo. Historia de la Educación. Práctica anarquista.
ANARCHISM AND KNOWLEDGE: PRACTICE, PERMANENCE AND
TIMELINESS
ABSTRACT
This text deals with anarchist schooling principles and practices present in movements dealing
with education in working-class, popular and free-thinking milieux diffused in urban and rural
social contexts of contemporary societies. These schools came to be through political, cultural
and social convergences, which left a significant imprint of educational practices that have
questioned the different forms of school establishments throughout their history. Thus, a few
emblematic anarchist educational practices stand out, as well as their meaning in the History of
Education.
Keywords: Anarchism. History of Education. Anarchist Practice.
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RESUMÉ
ANARCHISME ET SAVOIR : PRATIQUE, PERMANENCE ET
ACTUALITERÉSUMÉ
Ce texte traite de principes et pratiques scolaires anarchistes présentes dans des mouvements
sur l'éducation dans les milieux opéraires, populaires et libre-penseurs diffusés dans des
contextes sociaux urbains et ruraux des sociétés contemporaines. Ces écoles sont le fruit de
convergences politiques, culturelles et sociales avec des expressions significatives de pratiques
d'éducation qu'ont remis en question les differentes formes d'établissements scolaires pendant
leur existence. Se démarquent ainsi quelques pratiques d'éducation anarchiste emblematiques
et leurs significations dans l'Histoire de l'Éducation.
Mots-clés: Anarchisme. Histoire de l'éducation. Pratique anarchiste.
Que progresso é esse que, de uma faísca surgindo de uma pedra,
apaga-se em seguida no ar frio!
Elisée Reclus
INTRODUÇÃO
Enquanto não chega o dia da Anarquia, continuamos a propagar o ideal
anarquista; organizar as forças populares; combater sem cessar e conforme
os casos, o Estado e o Capitalismo, a fim de conquistarmos o mais que se
puder de liberdade e de bem-estar para todos.
Errico Malatesta
Só a humilhação sofrida pelo próprio indivíduo é mortal; quanto às
humilhações que golpeiam os outros, podemos acostumar-se a ela.
Mikhail Bakunin
O anarquismo realiza a educação como prática de princípios e ações culturais, políticas,
sociais e econômicas articuladas ao objetivo amplo de revolucionar a sociedade capitalista. Há
muitas ações pedagógicas na esfera do anarquismo ocorridas em diferentes momentos
históricos, que, no entanto, podem ser compreendidas em conexão à atualidade deste ideário. A
educação, compreendida em um contexto político e ético como o anarquismo, abrange ações
voltadas à difusão do conhecimento, do ideário e da mudança social a partir de espaços sociais
e culturais como a arte, o jornalismo, a edição de livros e obras clássicas anarquistas, o trabalho,
a saúde, a sociabilidade, a ajuda mútua, e a escola. A diversidade do conhecer e do saber, para
a prática anarquista, pode ser percebida permanentemente na realidade social, natural e cultural
existente, sendo a escola um dos espaços de formação. E, em relação a essa articulação de
saberes e ações, a forma escolar contemporânea tem o seu papel muito bem compreendido por
anarquistas. Tal papel, que geralmente corrobora a permanência de estruturas e padrões sociais
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dominantes, possibilita, em um ambiente como o anarquista, a implosão dos mesmos, abrindo
espaço para outras configurações de sociabilidade e formação a partir da escola. Assim, a
prática escolar anarquista é a antítese da educação autoritária e totalitária. Ao combater a
institucionalização do saber efetuada pelo monopólio estatal ou privado, religioso-cristão,
cívico-nacional, a prática anarquista, tem, entre outras contribuições, o ideal de realizar outra
educação e outra escola para outra sociedade. Uma proposta de mudança social implica, nesse
sentido, o saber nutrido de experiências de negação da educação ordinária e de afirmação de
práticas educacionais autônomas e autogestionárias. Pode-se sugerir que uma das mais
importantes características da educação anarquista é a prática historicamente consolidada, o
registro e a construção de referências sobre experiências educativas, de maneira ampliada e
internacionalizada, presentes nos seus meios de sociabilidade e difusão. Nesse sentido, os
estudos sobre a história da educação, na perspectiva ácrata, permitem não a compreensão
das intencionalidades educacionais neste conjunto de práticas e concepções, mas também a
comparação histórica e pedagógica entre apropriações da educação e seus significados na
sociedade. Maria Lacerda de Moura lembra com muita sabedoria que “todos reivindicam a
escola, como arma voltada para o futuro de suas ambições. Todos querem, todos se arrogam o
direito à exploração da alma da criança” (2021, p. 67). Este todos inclui, num plano conhecido
de séculos, o clero católico e sua apropriação das escolas para “poluir a alma das gerações
novas”, segundo a autora (idem, ibidem), e o Estado, estrutura que abarca elementos como a
burocracia e as formas complexas de formar cidadãos ideologicamente dependentes. Tais
análises são efetuadas nos meios anarquistas como característica própria ao funcionamento do
movimento, mas podem oferecer interpretações relevantes sobre a relação entre a escola e a
sociedade; ação pedagógica e meios militantes; formação de professores e contextos
acadêmicos. É importante salientar que a presença do anarquismo e da educação anarquista nos
ambientes acadêmicos brasileiros tem maior espaço desde meados para finais do século XX. A
supressão das experiências históricas anarquistas resulta da perseguição política, mas também
do domínio do campo crítico acadêmico por teorias e estratégias hegemônicas, mesmo no
campo da esquerda. O olhar crítico sobre instituições como o Estado, as religiões e a escola,
por exemplo, podem ser estabelecido também pela contribuição anarquista, nos ambientes
acadêmicos. A introdução e/ou acréscimo de referenciais teóricos clássicos anarquistas, de
fontes documentais primárias e de novos estudos realizados transcendendo as esferas dos
nacionalismos e promovendo a interlocução entre as realidades regionais é, assim, um caminho
que segue fazendo parte da luta social anarquista.
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EDUCAÇÃO ANARQUISTA: PROGRESSO E REVOLUÇÃO
Na atual organização da sociedade, os progressos da ciência têm sido a
causa da ignorância relativa do proletariado, assim como os progressos da
indústria e do comércio têm sido a causa de sua miséria relativa. Os
progressos intelectuais e materiais têm contribuído, pois, para aumentar sua
escravidão. Qual é o resultado? Que devemos repelir e combater esta
ciência burguesa, assim como devemos repelir e combater a riqueza
burguesa. Combatê-las e repeli-las no sentido de que destroem a ordem
social que é patrimônio de uma ou de várias classes, devendo reivindicá-las
como um bem comum de todos.
Mikhail Bakunin
O pensamento crítico anarquista sobre a educação e a escolarização expõe os processos
ancorados nas formas de governo que privam as maiorias da liberdade de conhecer e
experienciar a autonomia intelectual e criadora. A ciência, vivida e difundida nestes meios, tem
a importante característica de abrigar tentativas muito atuais de organização do conhecimento
institucionalizado pela escola, como o diálogo entre áreas de conhecimento variadas e a
educação integral. A ciência se sustenta entre as bases da sociologia, da história, da linguagem,
da geografia, da filosofia, da biologia, da arte, da matemática, e não cabe isolar conhecimentos
estanques para a facilitação de sua absorção. Este é, como se sabe, um desafio ainda hoje
presente nas organizações escolares. A diferença é que, ao se tratar do contexto trilhado pelos
anarquistas, que se considerar o diálogo com os meios operários, a realidade dos
trabalhadores e suas formas de organização, a interlocução entre classes sociais, assim como a
riqueza dos debates e proposições por eles encetadas em organizações como a Associação
Internacional dos Trabalhadores (AIT), fundada em 1864, a partir de ampla mobilização de
trabalhadores, em Londres. A criação da AIT pode ser interpretada como uma resposta
operária à universalização do sistema capitalista” (TRAGTENBERG, 1986, p. 19). Este
contexto de discussões trouxe questões como: a educação integral, o reconhecimento do papel
da educação na organização autônoma dos trabalhadores, a reflexão e ponderação sobre a tutela
e manutenção da oferta educacional pelo Estado e pela Igreja, a percepção de que a educação
deveria proporcionar a emancipação humana mediante os esforços, organização e livre
iniciativa das classes populares. Paul Robin, como educador fundamental ao pensamento
libertário, comentou acerca da Internacional:
Pois bem, caminhamos para a realização deste belo sonho. Enquanto aqueles
que há séculos impõem seu domínio aos povos com a falsa promessa de fazê-
los felizes [...] a minoria inteligente de trabalhadores, totalmente desiludida,
entende-se, organiza-se e reverte ativamente a corrente da decadência em que
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os déspotas precipitam a humanidade. Há quase cinco anos, deixando de lado
a retrógrada nacionalidade, proletários de todos os países vêm-se unindo na
Associação Internacional. (ROBIN apud MORYION, 1978, p. 72).
Bakunin, como importante representação na AIT trouxe contribuições fulcrais à
educação, como por exemplo, suas discussões acerca da ideia de educação integral. Esta
concepção está presente nas práticas anarquistas de educação como um condutor basilar de
intencionalidades pedagógicas e organização de conhecimento. É importante considerar que,
além de estabelecerem bases fundamentais ao conceito de educação integral, a prática e a crítica
anarquista de educação são, ao mesmo tempo, a prática e a crítica à sociedade capitalista, e isso
engloba diversidade de aspectos. Dois deles, mencionados, são a oposição ao Estado e à
igreja e o papel de apropriação da escola. E isso abrange a crítica ao Estado como instituição
que impede a autonomia das classes trabalhadoras e populares, em todas as formas de relação
com o saber, com a ciência e seus usos na sociedade. Sobre isso, Bakunin comenta que
o governo compreende demasiado bem o interesse do Estado e não abrirá às
massas as portas da ciência viva e libertadora. Quanto à ciência morta, à
ciência falsificada, cujo único objetivo é introduzir no povo todo um sistema
de falsas noções e concepções, ela seria para este último verdadeiramente
funesta; ela lhe inocularia o vírus social oficial e, de todo modo, o desviaria,
ao menos por um tempo, do que é hoje a única coisa útil e salutar: a revolta.
(2009, p. 24).
Assim, é importante para a compreensão do lugar da educação escolar na sociedade
contemporânea a contribuição dos anarquistas, cabendo considerar a complexidade deste
pensamento, suas ações e concepções de educação. A densidade do anarquismo aplica às
palavras sentidos fortemente transformadores da realidade social que se quer combater e da
sociedade futura que se quer instituir, contrária às mentiras, à dominação e aos prejuízos
coletivos às culturas genuínas e às formas de cooperação social. Demolir, revoltar e destruir é
muito mais do que essas palavras-ações literalmente definem. Não se trata de reformar a
estrutura estatizada conforme os interesses das classes trabalhadoras; o que se quer é, por meio
revolução das instituições dominantes e detentoras do saber e da ciência, ocupar os espaços,
difundir o conhecimento e realizar a outra sociedade futura.
A percepção sobre o papel do Estado e da Igreja na perturbação da liberdade e dos reais
progressos sociais associados às constantes revoluções que marcam a mudança social e natural
nas quais estão envolvidas as sociedades, tal como reflete Eliseé Reclus, é singular a partir do
pensamento ácrata. Tanto as tendências políticas ancoradas no Estado, quanto sua incursão na
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academia, extremamente elitista, sustentaram a negação do anarquismo como ação crítica
possível. Em relação a ideia de progresso na ciência, tanto as concepções de Bakunin como as
de Elisée Reclus são esclarecedoras para se compreender sentidos do processo de mudança e
renovação na história contemporânea da escolarização. No prefácio do livro de Reclus A
Evolução, a Revolução e o Ideal Anarquista (2002), Jaime Cubero lembra a importância das
ideias de Reclus acerca das relações de poder implícitas nos campos do conhecimento vivido e
do conhecimento oficial, do ensino da natureza e da sociedade, assim como a avaliação justa
das coisas. Mas Reclus tem grande importante na reflexão sobre a relação de simultaneidade
entre progresso e retrocesso, evolução-revolução, bem como sobre a falsa atribuição do
progresso às iniciativas das leis e dos governos. Esta compreensão propõe uma leitura crítica
fundamental sobre grandes marcas temporais da história e sua organização mediante processos
cronológicos, evolutivos, positivistas e factuais:
Foi em nome da liberdade, igualdade e fraternidade que todas as infâmias se
praticaram. Era para emancipar o mundo que Napoleão guiava um milhão de
matadores; é para fazer a felicidade das respectivas pátrias queridas que os
capitalistas constituem as vastas propriedades [...] organizam os poderosos
monopólios que sob nova forma restabeleceram a escravatura antiga. (2002,
p. 16).
Elisée Reclus chegou no ponto sobre como a sociedade moderna e a contemporânea
legitimam, por meio do Estado, do governo e das leis as verdades selecionadas que sustentam
a ciência, o conhecimento e a história. O anarquismo e a prática educativa constituída nesta
esfera de conhecimento difundem a ética combativa da gica dos arranjos sociais competitivos
baseados na reprodução do capital. Esta matriz desencadeia questões conceituais e práticas que
inauguram uma outra formação a partir da vivência escolar, plenamente atual pois que ainda
não realizada. Dentre elas, pode-se destacar a questão da igualdade de gênero e do papel da
mulher na sociedade; a releitura das relações familiares; a inovação epistemológica e de
paradigmas de ciência e racionalidade; a defesa da prática pedagógica antiautoritária com a
reavaliação da hierarquia escolar; o papel da arte como educação; o cultivo da vitalidade, do
ímpeto da alegria e da espontaneidade nas práticas educacionais e na vida em sociedade.
Bakunin refletiu sobre o papel da história em relação às classes populares e trabalhadoras nos
seguintes termos:
Eis o que foi até agora a história do mundo do trabalho em todos os países. A
história é impiedosa, atroz, odiosa; ela é capaz de levar ao desespero todos
aqueles que buscam nela a justiça humana. E, ainda assim, não se deve cair no
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desespero. Por mais pavorosa que ela seja, não se poderia dizer que a história
transcorreu em vão e não trouxe o menor benefício. O que fazer se, por
natureza, o homem é condenado a abrir caminho por entre os horrores e os
sofrimentos para passas das trevas à razão e de sua animalidade à sua
humanidade! Após uma longa sequência de erros históricos e seus
inseparáveis males, as massas ignorantes pouco a pouco aglomeraram-se. Foi
necessário que pagassem com suor, sangue, miséria, fome, trabalho servil,
sofrimentos e hecatombes todo movimento no qual as arrastava sua minoria
de exploradores. Na falta de livros, que elas não teriam sabido ler, foi sobre a
própria pele que a história foi escrita. Tais lições não se esquece. Pagando tal
preço por toda nova crença, esperança ou erro, as massas populares chegam,
malgrado asneiras históricas, à razão. (idem, p. 55).
A razão, como forma de combate representa o povo oprimido pelo trabalho, pela
preocupação com a existência mediante formas corrompidas de trabalho e, ainda, pela condição
política e material que o condena à ignorância e à impossibilidade de fruir conhecimento e razão
a seu favor, como salienta Bakunin. Assim, propõe-se que a luta social se faz, entre muitas
ações, não ancorada nos meios de estatização das classes trabalhadoras e apropriação das
mesmas estruturas de dominação que lhes afeta. No meio anarquista, a luta social se faz pela
luta cultural, a luta em busca do saber e da autonomia intelectual, que necessita de ser, por eles
mesmos, difundida como bem coletivo e social:
À medida que a inteligência e a energia das classes declinam, cresce a
inteligência do povo, depois sua força. No povo, qualquer que seja a lentidão
da evolução, e ainda que a instrução pelo livro seja-lhe inacessível, o avanço
nunca para. Ele tem para si dois livros de cabeceira nos quais não cessa de
aprender: o primeiro é aquele de sua amarga experiência, de sua miséria, de
sua opressão, de suas humilhações, de sua espoliação e dos sofrimentos que
lhe infligem cotidianamente o governo e as classes; o segundo é aquele da
tradição, viva, oral, transmitida de geração a geração, e tornando-se cada vez
mais completa, mais sensata, mais vasta. (idem, p. 47).
Por esses motivos, a escola se tornou uma forma de coletividade tão importante e
presente no movimento anarquista, refletindo sua capacidade de promover o verdadeiro
progresso das massas e da sociedade, ou seja, o progresso que desvela o conhecimento do
monopólio estatal e religioso, valoriza a cultura como forma de propagação da palavra, da ideia
e da revolução social, e quer destruir aquilo que aniquila, de maneira coletiva, culturas, povos,
línguas, tradições, singularidades e história.
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A PRÁTICA EDUCATIVA ESCOLAR ANARQUISTA
De uma parte o sim dogmático querendo impor o erro e renascendo todos os
crimes de lesa-felicidade humana. De outra parte o não dogmático querendo
destruir no coração dos homens a beleza maravilhosa do ‘sorriso da dúvida
e da música dos sonhos’. Duas forças que se vão chocar ferozmente na
reivindicação dos seus supostos direitos de conservar estupidamente ou de
destruir impiedosamente.
Maria Lacerda de Moura
A prática educativa escolar anarquista tem relação com momentos históricos
específicos, situados nos ambientes de transformações das sociedades capitalistas, cujas
mediações pelo trabalho, pela cultura, pela produção material da vida são marcadas por distintas
formas de submissão e reação. Nos tempos atuais, as práticas educativas anarquistas ocorrem
de maneira fluida, organizada em meios não escolares ou meios de educação não formal ou
informal. Mas esta não é uma característica exclusivamente contemporânea; as práticas
educativas estão presentes no movimento anarquista em meio a todos os processos de interações
humanas, de maneira que não dependência da instituição escolar para que se vivenciem as
relações com o saber. A questão é que o tempo áureo das escolas anarquistas se coaduna com
o momento histórico de consolidação da forma escolar nas sociedades capitalistas, entre anos
finais do século XIX e início do XX. Esta relação promoveu a criação de muitas reflexões,
escritos e concepções articulados às experiências, o que configura importantes referências sobre
práticas educativas, além de um conjunto singular de fontes documentais primárias sobre a
História da Educação e a forma escolar. Assim, experiências escolares que são muito
emblemáticas e constituem inspiração e continuidade das demais realizações escolares
presentes no âmbito do anarquismo e dos movimentos e organizações sociais dialogadas com
este ideário.
As escolas antiautoritárias e anarquistas mais emblemáticas foram criadas por
educadores que, além de colocar em prática uma pedagogia nova e transformadora,
proporcionaram a reflexão sobre o papel político da educação e da escola na sociedade. Das
experiências de maior repercussão no mundo, deve-se dar relevo a Leon Tolstoi, que criou a
Escola de Iasnaia Poliana (1849 - 1886); Paul Robin que realizou um trabalho precursor no
Orfanato Prévost, em Cempuis (1880 -1894), na França; Francisco Ferrer que, em diálogo forte
com Robin, colocou em prática a Escola Moderna de Barcelona, entre 1901 e 1906, assim como
Sebastian Faure, com a escola La Ruche, em Rambouillet, região próxima a Paris (entre 1904 -
1917). A existência destas escolas atravessou um campo comum, não apenas em aspectos
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teóricos e metodológicos, mas nas idas e vindas e nas relações vividas pelas pessoas
relacionadas ao anarquismo. Este campo comum é apreensível pelo presente mediante a
investigação dos diversos escritos que estes pedagogos fizeram circular entre educadores,
demais trabalhadores, homens e mulheres motivados pela causa comum de transformar a
sociedade pelo antiautoritarismo e pela educação. A ética anarquista é um elemento comum no
conjunto dessas práticas escolares, o que configura meios e fins da escola em relação à
sociedade que perdura. Isso se aplica tanto a contextos societários urbanos, como no caso de
escolas dialogadas com os meios operários e com o crescimento das cidades associado ao
aprimoramento do lugar social da escola, quanto a meio rurais, como experimenta Leon Tolstoi.
A escola de Iasnaia Poliana influenciou grande parte da vida de Tolstoi no decorrer de
seus anos de funcionamento (1849; 1858-1862; 1872-1875; 1882-1886), que foram
entrecortados por viagens pela Europa, nas quais buscou conhecimentos e experiências sobre
pedagogia. Nessas viagens, quando passou por países como Alemanha, França, Inglaterra,
Tolstoi travou contato com pessoas como Proudhon, o escritor e socialista russo Alexandre
Herzen, se aprofundou e construiu suas críticas aos teóricos da educação nova como Pestalozzi
e Froebel. Paul Robin, com a experiência de Cempuis, possibilitou a formação de saberes e
referências fundamentais tanto para Francisco Ferrer como para Sebastien Faure, que inclusive
recebeu e utilizou na escola La Ruche materiais didáticos de Cempuis, doados por Robin. Essas
escolas funcionaram em relação às atividades políticas de seus fundadores e ao meio no qual se
inseriram, o que confirma um exercício teórico-prático de transformação educacional, no qual
a ação anarquista ou encontrou forte eco ou foi central. As escolas racionalistas, originárias da
Espanha, constituíam proposta educacional crítica, diretiva e fizeram parte de um movimento
político e social. O funcionamento de mais de uma centena de escolas racionalistas, naquele
país, a partir da primeira década do século XX, advém de um processo abrangente,
personificado na figura do pedagogo Francisco Ferrer i Guardia, criador da Escola Moderna de
Moderna de Barcelona. Estas escolas constituíam com os ateneus, bibliotecas populares,
sindicatos, o ambiente educativo que agregou homens e mulheres trabalhadores braçais e
trabalhadores do intelecto, com condições econômicas variadas. Esta rede de pessoas
empenhadas com a educação racionalista-anarquista representa a referência histórica da
presença do ideário anarquista em experiências educacionais plenamente estabelecidas em
contextos sociais e culturais da época. Algumas formas de associação foram fundamentais ao
movimento educacional racionalista e são ocorrências históricas valorosas para o pensamento
educacional coetâneo, como, por exemplo, a criação da “Casa Editorial Publicaciones de la
Escuela Moderna”, voltada à produção de livros sobre conhecimentos gerais adequados ao
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projeto. O editorial agregou obras escritas por pessoas como Clemence Jacquinet, Jean Grave,
Paraf-Javal, Odón de Buen, Andrés Martínez Vargas, Élisée Reclus, entre outros. Estas obras
tornaram-se as referências utilizadas nas escolas racionalistas da Espanha e de outras partes do
mundo, para onde essa experiência se estendeu.
A educação está, nesses termos, presente nas reflexões de inúmeros trabalhos que
buscam definir o anarquismo, como o faz Errico Matatesta na obra A solução anarquista para a
questão social, no qual destaca a importância do “combate, pelo esclarecimento, pela difusão
dos conhecimentos científicos, a todas as religiões e a todas as mentiras, mesmo que se ocultem
sob o manto da ciência. Instrução completa para todos, até aos graus mais elevados(1962, p.
13). Há, inclusive, reflexões de teor questionador de clássicos da sociologia da educação, que
figuram os currículos dos cursos de Pedagogia, ainda nos dias atuais. Maria Lacerda de Moura,
importante anarquista brasileira, nascida em Minas Gerais e professora normalista, o que lhe
concedeu formação consolidada e reconhecimento pelas inúmeras cidades por onde efetuou seu
trabalho pedagógico, elaborou críticas muito interessantes à Emile Durkheim, em seu texto
chamado Ferrer pedagogo e educador indesejável, publicado na obra Ferrer, o clero romano
e a educação laica (2021):
O que a malícia de todos esses ‘sociólogos’ e ‘professores’ deseja é a
socialização das massas e a individualização deles, a exceção para os tipos do
escol... parasitário. São os super-homens, superelefantes da cultura e dos
privilégios. Durkheim é muito claro: ‘não é admissível que a função de
educador possa ser preenchida por alguém que não apresente as garantias de
que o Estado, e ele, pode ser juiz. Não se compreende uma escola que possa
reclamar o direito de dar uma educação antissocial’. [...] Para mim, nestes dois
períodos, o sociólogo prestou-nos um auxílio inestimável: a sua lógica simples
fez ver que todo ensino contrário ao Estado é antissocial. Claro! O Estado é o
filho dileto da sociedade... Assim, qualquer Estado aproveita-se da sua
autoridade, da força para defender a sociedade ou o partido político que tem o
poder nas mãos. Ir contra a prepotência do Estado que faz da escola o meio de
assegurar a sua hegemonia ou o açambarcamento de uma dinastia ou de um
partido é o dever dos verdadeiros revolucionários, de todos os seres humanos
que amam a liberdade e respeitam os direitos da criança. (2021, p. 38-39).
Maria Lacerda de Moura escrevia como poucos, e fez análises da educação, como se
nota, atuais e pertinentes aos espaços universitários de formação de professores, que se querem
críticos e construtores de multiplicidades de perspectivas teóricas sobre a escola e seu papel
social. Ela chega a dizer que “foi esse espírito burguês e estreito de Durkheim um dos mais
notáveis pedagogos modernos foi esse espírito estreito que matou Ferrer” (idem, ibidem).
Estabelecer análises que desestabilizam permanências históricas como o nacionalismo, o clero,
o Estado e certos meios privatistas na organização da educação é uma postura teórica que coloca
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o dedo em certas feridas que não se quer mostrar e fazer perceber às grandes massas populares
submetidas a determinadas formas de experiência educativa. Novamente, nota-se que o que se
quer com tais abordagens é outra sociedade:
Qual de nós deseja que subsista esta sociedade de vampiros? Quem de nós
aplaude o Estado moderno, a ressureição do nacionalismo fascista ou qualquer
ditadura implacável na defesa incondicional de um partido político
dominante? A socialização da criança como postulado da educação é um
crime bárbaro que a humanidade terá de pagar pela lei de causa e efeito.
Quantos séculos ainda, de erros e crimes de lesa-humanidade teremos de viver
nos nossos filhos, espoliados hoje na escola da força e da brutalidade? (idem,
ibidem).
É esta escola e forma de sociedade que se quer demolir, por meio da ação educacional
de outra escola, como o fez Ferrer. Daí a importância de sua trajetória, que merece, neste
contexto amplo de proposições de mudança social, lugar nas lacunas da história, sobretudo
aquela história comprometida com a formação de professores que, tradicionalmente, oferece
meios doutrinários de condução moral e civil.
UMA REDE DE EDUCADORES REVOLUCIONÁRIOS E A REPRESSÃO A
FRANCISCO FERRER
Francisco Ferrer i Guardia foi articulador e responsável por muitas ações centrais ao
movimento anarquista, o que lhe conferiu destaque no contexto educacional laico e racionalista
da época. Este reconhecimento público de Ferrer foi resultado das afinidades políticas de um
grupo, articulado em torno da educação e da mudança social, que, no entanto, obteve a repressão
exemplar sofrida por ele, contradizendo suas convicções contrárias à liderança na característica
da horizontalidade anarquista. Se, por um lado, a repressão ao movimento racionalista e
anarquista se deu com a perseguição e atroz assassinato legal de Francisco Ferrer, em 1909 (fato
que culminou na multiplicação de Escolas Modernas por muitas regiões do mundo, vinculadas
principalmente ao movimento anarquista); por outro lado é essencial considerar que se tratava
de um grupo autogestionado. Mas, Ferrer foi um incansável homem de ação, e como pedagogo,
requer o olhar sobre sua figura viva, criativa e demolidora, como comenta a também incansável
anarquista Emma Goldman:
Francisco Ferrer não perdeu tempo. Como um faminto, jogou-se nos vários
movimentos liberais, conheceu todos os tipos de pessoas, aprendeu, absorveu
e cresceu. Foi lá (França) também que ele viu em funcionamento a Escola
Moderna, que constituiria importante e decisiva parte de sua vida. A Escola
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Moderna na França foi fundada bem antes da época de Ferrer. Sua criadora,
ainda que em pequena escala, foi Louise Michel, aquele doce espírito. Se
consciente ou inconscientemente, nossa grande Louise sentiu, muito tempo
atrás, que o futuro pertence às jovens gerações; que a não ser que os jovens
sejam resgatados daquela instituição que destrói corpo e mente, a escola
burguesa, o mal social continuará a existir. Talvez ela tenha pensado, com
Ibsen, que a atmosfera está saturada de fantasmas, que as mulheres e homens
adultos têm muitas superstições para superar. Tão logo eles superem as garras
cadavéricas de uma assombração, encontrar-se-ão na escravidão de outras
noventa e nove. Assim, poucos atingem o cume da montanha da completa
regeneração. A criança, no entanto, não tem tradições para superar. Sua mente
não está carregada de ideias predeterminadas, seu coração não cresceu frio,
com distinções de classe ou casta. (GOLDMAN, 2019, p. 56).
Esses apontamentos de Emma Goldman demonstram a importância das atividades de
análise efetuadas pelos próprios anarquistas sobre as experiências pedagógicas ocorridas no
movimento. As fontes históricas e o teor dos estudos representam uma tradição na constituição
da própria memória coletiva, como forma de proteger e ressoar aquilo que a história sufoca.
São muitas pessoas esquecidas e sufocadas por narrativas silenciadoras e homogeneizantes da
realidade diversa, múltipla e constantemente incompreendida pela percepção humana. Sobre
Paul Robin, além de Ferrer e Louise Michel, Emma Goldman lembra que
O mais importante empreendimento de uma Escola Moderna foi aquele do
grande jovem senhor Paul Robin. Junto com poucos amigos, ele fundou uma
grande escola em Cempuis, um lindo lugar perto de Paris. Paul Robin
almejava um ideal mais alto do que meramente modernas ideias na educação.
Ele queria demonstrar por fatos atuais que a concepção burguesa de
hereditariedade não é mais do que um mero pretexto para isentar a sociedade
de seus terríveis crimes contra os jovens. As alegações de que a criança deve
sofrer pelos pecados dos pais, que devem continuar na pobreza e na sujeira,
que seriam, necessariamente, bêbados ou criminosos simplesmente por seus
pais não os terem deixado outro legado, eram muito irracionais para o lindo
espírito de Paul Robin. (idem, ibidem).
A violência exemplar aplicada à Ferrer, estratégia cara às instituições dominadas pela
força e pela brutalidade, confirma a mesma violência que se aplica ao controle dos ânimos da
criança pela escola. A criança vive uma etapa da vida humana marcada pela experimentação,
pela espontaneidade, pela criatividade. A criança aprende experimentando seu corpo, sua voz,
sua inteligência em plena interação com o meio e com a coletividade. A instituição escolar que
controla este ânimo quer todos iguais, não sendo este o propósito da formação escolar libertária,
por mais diretiva e intencional que ela se apresente.
A crítica estabelecida pela Escola Moderna tinha o pressuposto de que a escola
dominante, expressão dos interesses dos governos e da igreja, era obsoleta, conservadora e
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prejudicial e, fundada na função de perpetuar as relações sociais de opressão por meio da
manutenção da ignorância. Francisco Ferrer, no texto La renovación de la escuela (2009) disse
Las circunstancias se han cambiado: los progresos de la ciencia y
multiplicados descubrimientos han revolucionado las condiciones de trabajo
y de la producción; ya no es posible que el pueblo permanezca ignorante; se
le necesita instruido para que la situación económica de un país se conserve y
progrese contra la concurrencia universal. Así reconocido, los gobiernos han
querido una organización cada vez más completa de la escuela, no porque
esperen por la educación la renovación de la sociedad, sino porque necesitan
individuos, obreros, instrumentos de trabajo más perfeccionados para que
fructifiquen las empresas industriales y los capitales a ellas dedicados. (p.
119).
A vinculação da transformação escolar e social à emancipação das classes populares
representou uma das principais características que diferenciava o racionalismo libertário de
outros movimentos de educação laica e racional da época. Trata-se de um projeto de educação
popular mediado por práticas culturais, em diálogo com espaços de formação presentes no
ambiente operário, como os sindicatos, a imprensa, as práticas de autoeducação e o
autodidatismo. A educação popular se fez em diálogo com o sindicalismo, reforçando os meios
culturais de educação e emancipação intelectual. A crítica à adaptação do trabalhador aos
avanços da ciência para o aprimoramento do capitalismo e da fragmentação do trabalho fez da
Escola Moderna um espaço educacional aberto às mais diversas práticas educativas, não
limitadas às segmentações entre mundo infantil e mundo adulto. Ainda que houvesse
organização curricular e pedagógica diretivas voltadas para a educação das crianças, a escola
era ampla e a prática educacional proposta visava o alcance das famílias e trabalhadores, porque
almejava a transformação da sociedade. A Escola Moderna de Barcelona agia, portanto, entre
as classes operárias, voltando-se à sua formação intelectual, cultural e cientifica, reflexo da
ausência de condições de acesso à educação entre as classes populares espanholas da época,
principais focos das políticas sociais de coação cultural e econômica. Dessa forma, longe de
incutir a violência contra o povo, a Escola Moderna buscou demolir instituições violentas,
combatendo esta mesma atitude em seus discursos e práticas, como demonstra Maria Lacerda
de Moura:
A violência é a razão da ignorância, dizia Ferrer. E, no apostolado da instrução
popular racional, científica, paladino da Escola Nova, precursor e sonhador
impenitente, otimista mau grado todos os escolhos semeados no seu destino,
perseguido e sacrificado, esteve sempre à altura de um estoicismo heroico de
resistência à reação. [...] Ferrer era contrário às revoluções parciais, às
revoluções políticas simples mudanças de instituições ou troca de donos...
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revoluções feitas pelos revolucionários superficiais ‘quase sempre vítimas
dos mesmos prejuízos dos seus adversários’. (idem, p. 23).
Por compor um conjunto amplo de transformação educacional, a escola racionalista
ferreriana promoveu avanços tanto na formação de adultos trabalhadores quanto na construção
de um pensamento pedagógico sobre a infância em um meio social crítico. Ferrer pautou, de
maneira muito clara, que a necessidade de transformar a escola passaria pela sua reforma ou
pela criação de novas escolas, que realizassem práticas culturais e educacionais afinadas à
“educación del porvenir” e à construção de uma nova sociedade, o que não representa a
reacomodação do novo pensamento às velhas estruturas, como se vê no texto A Renovação da
Educação:
Dos medios de acción se ofrecen a los que quieren renovar la educación de la
infancia: trabajar para la transformación de la escuela por el estudio del niño,
a fin de probar científicamente que la organización actual de la enseñanza es
defectuosa y adoptar mejoras progresivas; o fundar escuelas nuevas en que se
apliquen directamente principios encaminados al ideal que se forman de la
sociedad y de los hombres, los que reprueban los convencionalismos, las
crueldades, los artificios y las mentiras que sirven de base a la sociedad
moderna. [...] ¿Como conseguiremos nuestro objeto? Poniendo directamente
manos a la obra, favoreciendo la fundación de escuelas nuevas donde en lo
posible se establezca este espíritu de libertad que presentimos ha de dominar
toda la obra de la educación del porvenir. (1908, p. 119-126).
Estas considerações de Ferrer, expressas em 1908 com a publicação deste texto no
primeiro número da Revue L’École Rénovée, tornam visível o tipo de transformação
educacional que se propunham a fazer. Este objetivo passava por ampla mudança de
paradigmas, pautada no estudo da infância, com base na nascente psicologia e na vinculação
direta do desenvolvimento da criança às questões sociais. O pensamento reformista era negado
pelo racionalismo libertário. Experiências anteriores, tal como Cempuis realizada em uma
escola pública, trouxeram referências teóricas fundamentais sobre educação anarquista, mas a
autogestão destas escolas, como o fez Sebastian Faure, com a La Ruche, certamente é uma
questão decisiva à coerência com seus objetivos matriciais. Um fator de grande inovação nesse
sentido era a coeducação de classes sociais, base do projeto de Francisco Ferrer, que propiciava
a convivência de filhos de operários e burgueses na “justa igualdade da infância” quando
ainda não “deturpada pela perversidade da distinção de classe”. Esta mescla foi uma proposta
incompatível à realidade escolar deste período, claramente cindida pela classe e pelo gênero.
Assim, aspectos como educação do proletariado, novas diretrizes pedagógicas sobre a
infância e autogestão da nova escola diferenciaram profundamente a educação anarquista de
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outros projetos de mudança da educação desta época. Esta compreensão esclarece determinado
sentido de “escola renovada”, expressão muito frequente na época, que, neste caso, não se
referia à escola reformada, mas à nova escola racionalista libertária.
"LA LIGA INTERNACIONAL PARA LA EDUCACIÓN RACIONAL DE LA
INFANCIA"
A experiência da Liga Internacional para a Educação Racional da Infância, criada em
1908, foi um acontecimento de fundamental importância para se percorrer os meandros da
história da educação e das práticas escolares oriundas de contextos sociais, culturais, políticos
e econômicos europeus, entre finais de século XIX e início do XX. As experiências em torno
da escola, espaço social de reconhecida potência ideológica, avançaram, certamente, por
ambientes, grupos e classes sociais dos mais diversos. A escola do ambiente das classes
trabalhadoras e dos movimentos de trabalhadores, historicamente por eles mobilizada para as
almejadas transformações de sua realidade social, é a escola comprometida também com a
transformação ampla e profunda da sociedade. A Liga Internacional para a Educação Racional
da Infância representa, dessa forma, parte das iniciativas educacionais coletivas e
autogestionárias sufocadas pela história abreviada por propósitos totalizantes e
homogeneizantes do passado vivo, diverso e coletivo da escola.
A liga revela algumas fontes primárias emblemáticas da constituição da educação
anarquista, que foram originalmente publicadas na Revue L’école Rénovée (1908) e no Boletín
de la Escuela Moderna, Época II, Año I, número 1 (1908), como por exemplos0 , os Princípios
e Estatutos que sustentam os meios e fins educacionais propostos pela Liga, assinados pelo
Comitê Internacional de Iniciativa e de Direção; em seguida o presidente F. Ferrer, o vice-
presidente, C. A. Laisant e a secretaria: H. Meyer:
"Liga internacional para la educación racional de la infancia"
Comité Internacional de Iniciativa y de Dirección
París, 21, Boulevard Saint Martín, 21, París
Exposición
Esta Liga se establece sobre las siguientes bases:
1ª. - La educación de la infancia debe fundamentarse sobre una base científica
y racional; en consecuencia, hay que separar de ella toda noción mística ó
sobrenatural;
2ª. - La instrucción es una parte de esta educación. La instrucción debe
comprender también, junto á la formación de la inteligencia, el desarrollo del
carácter, la cultura de la voluntad, la preparación de un sér moral y físico bien
equilibrado, cuyas facultades estén armónicamente asociadas y elevadas á su
máximo de potencia;
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3ª. - La educación moral, mucho menos teórica que práctica, debe resultar
principalmente del ejemplo y apoyarse sobre la gran ley natural de solidaridad;
4ª. - Es necesario, sobre todo en la enseñanza de la primera infancia, que los
programas y los métodos estén adaptados todo lo posible a la psicología del
niño, lo que casi no sucede en parte alguna, ni en la enseñanza pública ni en
la privada.
Tales son las verdades, tales son los principios que han originado la creación
de la Liga Internacional para la Educación Racional de la Infancia.
Cada miembro de la Liga se compromete moralmente á contribuir en el círculo
de sus relaciones y en la medida de lo posible, á la práctica de estos principios.
La Liga le ayudará enérgicamente en su labor. La unión de buenas voluntades
que representa esta asociación no puede menos de producir resultados
eficaces. (BOLETÍN DE LA ESCUELA MODERNA, Época II, Año I,
número 1, 1 de mayo de 1908).
Cabe acrescentar, também, parte do texto de abertura do primeiro Boletim da Escola
Moderna, na segunda aparição, que marca o retorno de Ferrer às suas atividades educativas e
políticas, após sua prisão e perseguição pelo Estado e pela igreja espanhola e o encerramento
da Escola Moderna em 1906:
Nuestros amigos, lo que durante cinco años nos han acompañado en nuestra
querida Escuela Moderna, y se solidarizaron con los hombres progresivos del
mundo entero para impedir la injusticia que la reacción pretendiera llevar á
cabo en la persona de su fundador, no habrán de volver la vista atrás: al
contrario, alta la frente, fija la mirada en un mañana de justicia y de amor, nos
ayudarán con mayores energías á realizar esta obra de verdadera y fecunda
redención.
A la prensa, la expresión de nuestra solidaridad profesional y nuestro
afectuoso saludo.
A los buenos, nuestra mano les estrecha efusiva en signo de paz.
Salud. (BOLETÍN DE LA ESCUELA MODERNA, 1 de mayo de 1908, Ano
I, nº1).
Esta apresentação de Francisco Ferrer i Guardia ao Boletín de la Escuela Moderna, de
de maio de 1908, imprime sua liberdade e retorno à atividade política, pedagógica e social,
depois de um ano de prisão e do encerramento da Escola Moderna de Barcelona, em 1906. A
escola foi extinta, mas o movimento germinado por iniciativas em torno da escola e da educação
no contexto das classes trabalhadoras e compulsoriamente governadas pelos interesses
capitalistas, autoritários, religiosos e cristãos, seguiu o curso da resistência. A Escola Moderna
perdurou com a força da organização internacional autônoma e autogestionada, com o apoio
que recebeu Ferrer em função da sua prisão e com o reconhecimento, mesmo anterior à
interrupção da escola, de que a organização livre-pensadora e anticlerical caracterizava muito
da coesão e propósitos do movimento educacional racionalista. O retorno da publicação do
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Boletín de la Escuela Moderna representou, portanto, a resistência da Escola Moderna. É
importante lembrar que esta segunda época do Boletín, que situa a apresentação da Liga, estava
claramente associada e situada neste ambiente amadurecido e transformador da escola: o
cabeçalho do Boletín apresenta-o como “ecos da Revue L’école Rénovée” e como “extensão
internacional da Escola Moderna de Barcelona”. A mencionada Revue l’école rénovée foi uma
revista pedagógica, publicada em Bruxelas, como órgão reconhecido da Liga Internacional pela
Educação Racional da Infância. Teve a característica importante de ser concebida como revista
de elaboração de um Plano de Educação Moderna extensão internacional da Escola Moderna
de Barcelona e apresentou como fundadores Francisco Ferrer e secretário de redação J. F.
Elslander. O primeiro número da revista foi publicado em 15 de abril de 1908. As publicações
estiveram, dessa forma, conectadas pelo mesmo grupo, compartilhavam das mesmas edições e
publicações e figuravam dimensões diferenciadas de alcance geográfico e linguístico. O
primeiro número da Revue apresentou o Boletín como sua edição em língua espanhola, com
administração em Barcelona, Calle de Cortès, 596. Além disso, a Revue citava também a
publicação de outra revista consagrada à L’école Rénovée, publicada em Roma, sob os cuidados
de Luigi Fabbri, posteriormente conhecida como Scuola Laica. a seguinte explicação na
Revue: “esta Revista de 24 páginas, formato especial, foi publicada, para os cinco anos que
viveu a Escola Moderna de Barcelona. Ela reaparece hoje para continuar a ampliar sua
propaganda pela educação racional”. Nesse sentido, o Boletín de la Escuela Moderna, a Revue
L’école Rénovée e a Liga Internacional pela Educação Racional da Infância partilharam dos
mesmos conteúdos e ideário político-pedagógico e sustentam como fontes documentais
primárias um campo abundante de compreensão sobre a escola e sua rela ção com as
transformações sociais, no contexto anarquista. A riqueza de textos, obras, experiências
relatadas e registradas nessas publicações reforça a necessidade do trabalho com fontes
primárias que apresentam outros agentes e interlocutores da história da educação, para além
daqueles que cristalizam os mesmos monumentos do passado. Há importantes textos de Ferrer
i Guardia, mas também de outros e outras importantes educadoras, como Clemence Jacquinet,
Charles-Ange Laisant, Jules François Elslander, Ellen Key, William Heaford, Guiseppe Sergi,
Henri Roorda Van Eysinga, Ernest Haeckel, que abrem os terrenos das investigações sobre a
escola como instituição complexa da sociedade contemporânea:
A l’école rénovée está consagrada à elaboração de um plano de educação
moderna. Faz-se conhecer e se faz-se discutir todas as ideias e todas as
tentativas que se relacionam à renovação da escola. Ela tem por objetivo
agrupar os esforços e as iniciativas que se produzem em toda parte, mas que
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se encontram isoladas, a fim de chegar a formular uma concepção de conjunto
e meios de realizar completamente. (REVUE L’ÉCOLE RÉNOVÉE, 15 de
abril de 1908).
Assim, em correspondência à Liga, o propósito da revista era o de dar base a um
movimento intelectual voltado à transformação da escola nos aspectos conceituais, pedagógicos
e políticos, criando importantes registros acerca destas experiências educacionais.
ESTUDIOS PEDAGÓGICOS
A importante educadora anarquista Clemence Jacquinet vivenciou na Escola Moderna
o papel de apoio a Francisco Ferrer, semelhante à figura de coordenação pedagógica. Foi uma
pessoa central à condução teórica da escola, como se nota na seção presente no Boletín,
intitulada Estudios Pedagógicos, a qual divulgava o pensamento de grandes educadores, com o
intuito de que jovens conhecessem a variedade de ideias e propostas pedagógicas, não se
limitando às abordagens superficiais e contemporâneas. Defendia a importância de que jovens
professores, ao conhecerem abordagens pedagógicas antecedentes, construíssem com
autonomia suas próprias opiniões e convicções. Os textos que compunham arie tinham o teor
crítico e interpretativo, de modo que Jacquinet assinalava que, obviamente, sua “crítica” era
criticável, e que não aspirava impor sua opinião, mas sim incentivar e ajudar professores
aspirantes e jovens a ler, meditar e construir críticas e reflexões. Os educadores que são
abordados por Jacquinet, atividade que se estende até o número 8, ano II, 31 de mayo de 1903,
do boletín, foram: Rabelais; Montaigne, Rousseau e Spencer; momento em que se encerra o
ano II do Boletín, e provavelmente, sua participação na Escola Moderna. Iniciando o texto de
abertura da seção Estudios Pedagógicos, Jacquinet comentou:
La primera necesidad que experimenta quien se dedica á la enseñanza
consiste en conocer á fondo todo lo que se ha dicho y escrito en materia
pedagógica. Muchos jóvenes profesores que se intitulan miembros de la
“Escuela Nova” no conocen sino lo que se publica en las revistas y
periódicos actuales, y aun suelen rechazar con cierto desprecio, como
afecto de vetustez, todo lo que procede del pasado.
De eso resultan dos clases de errores: á la primera pertenecen los
originados por la inexperiencia, que hace acoger con el mismo favor,
siempre que encuentre la marca de su partido, lo bueno y lo malo, lo
práctico y lo inaplicable, dando igual valor á rasgos verdaderamente
geniales ó á hechos insignificantes, y ás veces hasta concediendo
estimación referente á los últimos, como, por ejemplo, cuando se cree
haber realizado gran reforma permitiendo á los alumnos colocarse en clase
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á su gusto, mientras que se conserva el mismo sistema rutinario de
enseñanza ó cualquier otro análogo.
La segunda procede de la casualidad, que puede hacer que caiga en manos
de un profesor joven un libro escrito por un pensador profundo, por uno
de aquellos precursores de la reforma pedagógica que abren vía y trazan
el derrotero que sebe seguirse.
Se necesita que los que aspiran a guiar los niños sepan contar consigo
mismos; que sepan apreciar un buen consejo, adoptar un buen sistema,
pero que puedan hacerlo asumiendo la entera responsabilidad de su
elección y de su adhesión; que no se les oiga decir jamás: tengo las
opiniones de mí profesor.
No, jóvenes, no; no debéis tener una opinión hasta que estéis en estado de
tenerlas propias por la experiencia adquirida; nadie tiene derecho á
inculcarlos las suyas, del mismo modo que vosotros no tenéis derechos de
sugerís vuestras á vuestros alumnos. (BOLETÍN DE LA ESCUELA
MODERNA, 31 de deciembre de 1902, ano II, n.3).
As vanguardas pedagógicas são analisadas pela educadora como grandes correntes
inovadoras que acabaram por arrebatar os jovens educadores como visão dominante de
pedagogia. A adesão irrefletida a certas vanguardas poderia, conforme salienta Jacquinet,
proporcionar ao jovem professor práticas totalmente contrárias a um trabalho verdadeiramente
inovador, como exemplifica com o fato de que manter crianças agindo por sua própria vontade
em um ambiente no qual desenvolvem hábitos retrógrados, não significa o exercício de uma
pedagogia nova e libertária.
É fundamental trazer à discussão o livro escrito por Jacquinet, chamado Ibsen e sua
obra, no qual apresenta, no último capítulo, o texto Los factores de la educación social.
Jacquinet efetua uma crítica ao costume de se reduzir a pedagogia e a educação a simples
“opiniões mais ou menos arbitrariamente emitidas, a observações puramente artificiais”, de
modo que aponta o fato de que a psicologia, ao compreender a inteligência como resultado das
funções cerebrais humanas, confere à pedagogia a necessidade de se estabelecer observações
rigorosas que expliquem a formação humana (1907, p. 285). O texto Los factores de la
educación social capta a visão de pedagogia de Jaquinet, quando propõe que “o fim da educação
é formar homens livres” (idem, ibidem). Mas não se trata da liberdade irresponsável e
irrefletida, na qual as crianças possivelmente não vivenciam uma situação educativa inovadora.
As metodologias e concepções pedagógicas não renovadas e transformadoras, como Jacquinet
reflete, seriam distintas da ideia do homem livre como aquele que, para muitos, pode fazer o
que quer. Entretanto, uma vez que a vontade e o impulso estão condicionados, segundo a
educadora, pelas sensações, circunstâncias, pela natureza humana e sua relação com o mundo
exterior, os atos de vontade estão intrinsecamente ligados à sociedade, podendo ser eles úteis,
indiferentes ou prejudiciais. E finalmente define: a liberdade é almejada por trazer felicidade; e
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el hombre libre es aquel que en cualquier cisrcunstancia sabe escoger y ejecutar las acciones
utiles ó indiferentes á la sociedad y abstenerse de las acciones perjudiciales al bien general”.
Isto é: “el hombre libre es aquel que mayor imperio tiene sobre si mismo” (idem, p. 189). Com
esta definição aclarada, se pode compreender o fim e a que serve a educação, segundo
Jacquinet.
O primeiro autor abordado na série Estudios Pedagógicos foi François Rabelais,
comumente evocado pelo ideário anarquista, sobretudo por sua obra crítica aos cânones
estéticos e sociais (LITVAK, 2001, p. 293). Jacquinet, ao intitular seu texto: Rabelais,
Pedagogo, enfoca em Gargantua e Pantagruel (1532-52) seus aspectos educativos. O texto faz
um breve resumo sobre como Gargantua foi educado, por formação religiosa e escolástica. No
Boletín seguinte, a educadora publicou o texto Montaigne, com a epígrafe: “mas vale una
cabeza bien hecha que una cabeza bien llena” (Ano II, n.º 6). Jacquinet focalizou em dois
capítulos da obra Ensaio: “el pedantismo” e “la institución de los niños”, fazendo ponderações
acerca da relação ciência-poder e verdadeiro saber. Como grandes abstrações da ciência,
esmeradas pelos “pedantes” podem ser compreendidas pela criança? O Boletín de número 8
(Ano II, n.º 8 - 31/05/1903), tratou de Jean-Jacques Rousseau, cujo artigo foi iniciado da
seguinte forma: “analizar a Rousseau es como permanecer firme en la verdade, es uma tarea
delicada, capaz de intimidar á quien la emprenda y que, aunque sintiendo entusiasmo por el
asunto, no deje de darse cuenta de la dificultad que ofrece”. Jacquinet estabeleceu críticas
interessantes a Rousseau, sustentadas na sua distância do mundo operário e proximidade das
classes dominantes: “és un burgués que prepara una revolución burguesa”. Para Jacquinet,
Rousseu falseou o verdadeiro sentido da natureza, por não a conhecer efetivamente e trabalhou
com visões de desenvolvimento infantil e educação de elites, ao conceber Emilio. Assim,
defendeu que Emilio é uma obra que deve ser lida pelo professor com cuidado e atenção aos
possíveis erros e verdades. Por fim, Jacquinet apontou que o mérito da pedagogia de Rousseau
consiste em dar amplitude aos sentidos e à observação, estabelecendo uma periodização da vida
da criança associada às suas capacidades de observar, quando pequena, e abstrair e refletir à
medida que se desenvolve. Sobre a relação com a natureza, Jacquinet criticou Rousseau dizendo
que:
El hijo de la naturaleza está por el [Rousseau] constantemente colocado
fuera de ella; porque no basta vivir en el campo, pasearse y holgarse em
él para recibir una educación natural. En este sentido, la naturaleza está en
todas partes, en el campos lo mismo que em la ciudad: que se escoja una
aldeã para educar alli á los niños, porque en ella, el aire libre es más puro,
se concibe respecto del desarrollo físico; pero su educación puede ser
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falseada allí mismo que en la cuidad; sobre todo si se adopta el sistema de
Rousseau. (BOLETÍN, Ano II, n.º 8 - 31/05/1903).
Em um tom diferente ao dispensado a Rousseau, Jacquinet discutiu o pensamento de
Spencer, no texto de nome Hebert Spencer (Ano II, n.º 9 - 30/06/1903) e, com este, fechou a
série de Estudios Pedagogicos. Sobre Spencer, Jacquinet iniciou a discussão novamente
questionando quais os conhecimentos realmente importantes para o desenvolvimento da
criança: “los hombres han pensado en adornarse antes de saber vestirse, los conocimientos que
se a los niños más les sierven de adorno que de verdadera utilidad, y respecto de la educación,
principalmente en la de la mujer, se siguen las flutuaciones de opinión” (idem, ibidem).
Segundo a autora, o mérito de Spencer consiste em questionar quais os conhecimentos que
realmente são mais úteis aos homens, apontando que o adorno precede a utilidade e as
necessidades sociais se impõem às individuais. Jacquinet trabalhou com as ideias de Spencer
de acordo com muitas reflexões libertárias acerca da formação intelectual da criança, como:
Con esa mezquina idea de la educación limitada al estudo de los libros,
los padres ponen la cartilla en manos de sus hijos mucho antes de la época
oportuna, y muy em su perjuicio. Ignorando que el uso de los libros es
suplementario, que sirven de médio indirecto para aprender cuando el
directo falta, puesto que facilitan el ver con ojos ajenos que uno no
puede ver por si mismo, están siempre dispuestos á darles hechos de
segunda mano, em lugar de ofrecerseles de primera. No apreciando el
inmenso valor de esa educación espontânea que se efectua en los primeros
años, se obstinan em ocupar la vista y el pensamiento del niño em cosas
que, en esa edad, son inconprensibles y repugnan... (idem, ibidem).
Nota-se, assim, que os educadores evocados por Clemence Jacquinet representam
grandes referências educacionais analisadas e problematizadas conforme as diretrizes do
pensamento e dos meios educacionais anarquistas. As considerações propostas por eles
englobam, portanto, não somente os próprios educadores libertários, mas a releitura e
consideração dos clássicos, conforme as proposições anarquistas de educação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pode-se sugerir que há dois importantes meios sociais para se compreender a educação
anarquista, na atualidade: a militância e a universidade. A militância tem a característica da
permanência das práticas e da construção de registros e bases teóricas e históricas sobre o
movimento. no âmbito do apagamento histórico do ideário ácrata na academia, que se
considerar trabalhos de intelectuais emblemáticos como Maurício Tragtenberg, autodidata,
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estudioso, entre muitos outros temas, da educação anarquista, da autogestão pedagógica,
profundo crítico da burocracia como elemento da sociedade capitalista e da escola heterogerida.
“Tragtenberg percebeu com clareza a inseparabilidade da autogestão pedagógica, da autogestão
generalizada da sociedade e da autogestão de nós mesmos. Portanto, a autonomia e a
solidariedade são dimensões da unidade biopsicossocial (SILVA, 2019, p. 308)”. Maurício
Tragtenberg publicou o clássico texto intitulado “Francisco Ferrer e a Pedagogia Libertária”,
em 1978, no primeiro número da Revista Educação e Sociedade, trazendo para a universidade
brasileira a importância do educador catalão perseguido e assassinado pelo clero e pelo Estado
Espanhol, em 1909, bem como outros ideários de importantes anarquistas, como Piort
Kropoktin e Bakunin. Outro estudioso importante foi Fernando Cláudio Prestes Motta (1981,
p. 132), que elaborou, em 1980, uma tese de doutorado, intitulado Burocracia de autogestão: a
proposta de Proudhon, na qual agradece a Maurício Tragtenberg, pelas conversas sobre “teoria
das organizações” [...] que despertou seu interesse pelo “estudo da autogestão e de Proudhon”
(1980, p.2). Neste campo de diálogos, também há a importante contribuição de Azis Simão,
cujo texto Os anarquistas: duas gerações distanciadas, publicado em 1989, pela Revista de
sociologia da Universidade de São Paulo Tempo Social, que apresenta uma análise sobre
momentos distintos do anarquismo no Brasil, entre o operariado e a universidade e traz alguma
dimensão dos processos de silenciamento ocorridos com o passar do tempo. Estes são alguns
casos emblemáticos do propósito de difusão da história e ideia anarquista nos meios
tradicionalmente ocupados pelos interesses intelectuais dominantes, relacionados à
arbitrariedade sobre o saber e sua distribuição desigual entre as classes sociais. Mas, de igual
importância é a presença de anarquistas como Jaime Cubero e Edgar Leuenroth nas relações
com o meio universitário, como intelectuais ácratas e articuladores de espaços como o Centro
de Cultura Social. Em entrevista concedida ao pesquisador anarquista português José Maria
Carvalho Ferreira (1997), Jaime Cubero recorda sua História de Vida, a qual estabeleceu
contato com o anarquismo desde adolescente, atravessando momentos decisivos de resistência
do ideário, inclusive em meios acadêmicos. Ao ser perguntado sobre a resistência do
movimento no período após a 2ª Guerra Mundial, Cubero lembra que ocorreram
muitas actividades como conferências, cursos e outras. Em São Paulo
chegámos a ter milhares de alunos. Procurámos ocupar espaços físicos novos.
Na Universidade de S. Paulo havia um Conselho de que fazia parte Edgar
Leuenroth e muitos outros de grande projecção. Passámos a ter uma actividade
considerável tendo em conta o período de repressão que tínhamos vivido e
ainda se vivia.
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E complementa, recordando do impacto que efetuou o Arquivo Edgar Leuenroth, na
Universidade Estadual de Campinas:
Começou de facto a surgir um interesse universitário pelo Arquivo.
Descobriram um filão para fazer pós-graduações em História e outras Ciências
Sociais. Muitas editoras passaram a criar colecções sobre o Anarquismo. A
Contexto criou uma colecção enorme. A uma dada altura, o Jorge perguntou-
me se podia fazer um levantamento exaustivo sobre o Anarquismo. Foram
feitas pesquisas de investigação sobre o Anarquismo e mesmo teses de
doutoramento. O Arquivo do Edgar foi importantíssimo nesse aspecto. Eu
próprio fui convidado para o visitar. [...] a difusão do anarquismo foi mesmo
muito grande. Fomos convidados para fazer cursos nas Universidades,
palestras, etc. Foram abertos espaços grandes neste campo na Universidade de
São Paulo. O trabalho na universidade para nós foi muito importante. Havia
quem não o considerasse como tal. Temos tido muita adesão a este campo. Os
auditórios têm estado sempre lotados.
Sendo assim, que se considerar a importância da militância anarquista como elo
fundamental para a presença do ideário na universidade, para a difusão deste conhecimento
entre meios críticos e propositivos de olhares e práticas demolidoras de uma educação opressora
e autoritária. A pesquisa sobre as fontes primárias, muito bem efetuada no âmbito da militância
anarquista é uma tradição que alimenta o movimento desde sempre e permite sua
permanência histórica até a atualidade
1
.
REFERÊNCIAS
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Revista Utopia. 1997. Disponível em: https://bibliotecaanarquista.org/library/jose-m-
carvalho-ferreira-jaime-cubero-e-o-movimento-anarquista-no-brasil. Acesso em: 18 dez.
2022.
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MOURA, M. L. Ferrer, o clero romano e a educação laica. São Paulo: Centro de Cultura
Social, 2021.
1
Agradeço às conversas sobre a presença do anarquismo na universidade, a partir dos sujeitos aqui evocados, a
querida professora Doris Accioly e Silva, importante estudiosa do pensamento de Maurício Tragtenberg, nos
dias de hoje.
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BOLETÍN DE LA ESCUELA MODERNA, Época II, Año I, n. 1, 1 de mayo de 1908.
Recebido em: 31 de julho de 2022
Aceito em: 29 de novembro de 2022