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DISTANTES DAS SALAS DE CONCERTO E DOS MUSEUS, A ARTE DA VIDA
ANARQUISTA
Gustavo Simões
Nu-Sol, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil
gusfsimoes@gmail.com
RESUMO
Durante o século XX, alguns artistas ácratas e radicais combateram a arte institucionalizada em
salas de concerto, museus, galerias. Afirmaram, distante desses territórios, outras maneiras de
existir, modos de viver artísticos, muitas vezes quase imperceptíveis.
Palavras-chave: Anarquismos. Arte contemporânea. Arte e história.
LEJOS DE LAS SALAS DE CONCIERTOS Y LOS MUSEOS, EL ARTE DE LA VIDA
ANARQUISTA
RESUMEN
Durante el siglo XX, algunos artistas acráticos y radicales lucharon contra el arte
institucionalizado en salas de conciertos, museos, galerias. Afirmaron, lejos de estos territórios,
otras formas de existir, formas artísticas de vivir, muchas veces casi imperceptibles.
Palavras clave: Anarquismos. Arte contemporánea. Arte e historia.
FAR FROM CONCERT HALLS AND MUSEUMS, THE ART OF ANARCHIST LIFE
ABSTRACT
During the 20th century, some acratic and radical artists fought institutionalized art in concert
halls, museums, galleries. They affirmed, far from these territories, other ways of existing,
artistic ways of living, often almost imperceptible.
Keywords: Anarchisms. Contemporary arts. Art and history.
LOIN DES SALLES DE CONCERT ET DES MUSEES, L’ART DE VIVRE
ANARCHISTE
RÉSUMÉ
Au cours du XXe siècle, certains artistes acratiques et radicaux ont combattu l'art
institutionnalisé dans les salles de concert, les musées, les galeries. Ils affirmaient, loin de ces
territoires, d'autres manières d'exister, des manières de vivre artistiques, souvent presque
imperceptibles.
Mots-clés: Anarchismes. Art contemporain. Art et histoire.
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para Judith Malina
e Pietro Ferrua
UMA ARTE DO DESAPARECIMENTO
A margem do rio Hudson, ao norte de Nova York, foi um dos últimos endereços do
nômade Peter Lamborn Wilson. Conhecido posteriormente por ser o inventor de Hakim Bey, o
anarquista não havia cessado de perambular desde 1968. Neste ano, em meio à guerra do Vietnã,
abandonou os Estados Unidos rumo ao oriente. Durante toda a cada de 1970 viveu na Pérsia,
pesquisando o sufismo. Auxiliou na organização do Festival de Artes de Shiraz, ocorrido no
meio do deserto. Com a revolução iraniana de 1979, responsável pela queda do Reza
Pahlevi, voltou ao norte da América.
Em seu retorno, nos anos 80, assinando como Hakim Bey, empolgou jovens e libertários
com a publicação de Caos (1985). Na coletânea de textos curtos, afetado tanto por vivências na
Pérsia como por movimentos radicais, nos Estados Unidos durante o governo Ronald Reagan,
desvelou noções como as de Terrorismo Poético (TP) e Arte Sabotagem (AS). Enquanto a
primeira ainda seria marcada por certo aspecto artístico, mesmo que afastada de todas as
estruturas tradicionais para o consumo de arte (galerias, publicações, mídia), a segunda teria
como marca a ação direta contra o Estado e a propriedade. “Jogar dinheiro para o alto no meio
da bolsa de valores seria um Terrorismo Poético bastante razoável mas destruir o dinheiro
seria uma excelente Arte Sabotagem” (BEY, 2003, p. XXII), indicou. “Interferir numa
transmissão de TV e colocar no ar alguns minutos de arte incendiária caótica seria um grande
feito de TP mas simplesmente explodir a torre de transmissão seria um ato de Arte Sabotagem
perfeitamente adequado” (IDEM).
Wilson morreu recentemente, em maio de 2022. Na última década, explicitando um
caminho de mudanças incessantes, retirou-se da grande cidade de Nova York. Passou a escrever
não mais explosivamente sobre Terrorismo Poético e Arte Sabotagem, mas a inventar, junto à
vida, uma arte particular, de mapas de viagens de Aleister Crowley, passando por registros de
histórias indígenas perdidas até a “arte que desaparece”. Assim, à margem do Hudson, em uma
entrevista, declarou:
não existe nada mais gratificante do que trabalhar com as próprias mãos.
Essencialmente, o que fiz foi desenvolver isso que eu chamo de Vanishing Art
[arte que desaparece] [...] a minha primeira obra envolvia jogar anéis de ouro
num rio como faziam os antigos druidas. Cada um dos meus trabalhos está
ligado a um local da região onde vivo, e cada um deles também está ligado a
um evento ou personagem histórico [...] místicos ou revolucionários [...] o que
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fiz foi jogar objetos na água e enterrar objetos. No futuro, eu pretendo também
queimar um monte de coisas. Quero me envolver com pirotecnia. (WILSON
apud OBRIST, 2011, p. 138).
. . .
Vários escritos atestam a relação próxima, como a de Wilson, entre os anarquismos e a
arte. O interesse ácrata está vivo desde o século XIX, na Europa, com Pierre-Joseph Proudhon
e Do Princípio da arte e de sua destinação social (1865), passando por Oscar Wilde com Alma
do homem sob o socialismo (1891) e Liev Tolstói, O que é Arte? (1897). Somado aos escritos,
a obra e a vida de pintores como Gustave Courbet, Camile Pisarro, Paul Signac, são ainda
referências da intensa atenção a uma estética indissociável de uma ética da liberdade. Lamborn
Wilson, em um breve texto intitulado “Mallarmé anarquista”,
1
ilumina ainda Stephan
Mallarmé, o poeta reconhecido como um dos mais revolucionários do século XIX com seu
“lance de dados”, amigo de Félix Fénéon e de outros libertários acusados de terrorismo nos
anos 1890, como um camarada antiautoritário.
Nascido em 1945, ano do ocaso da Segunda Guerra Mundial, Wilson viveu a juventude
com estas procedências ético-estéticas e ainda outras como os escritos e a vida vivida por Emma
Goldman, “a mulher mais perigosa da América”. Responsável pelo jornal Mother Earth na
primeira metade do século XX, somado às conferências sobre revolta e amor livre, Goldman
era amante de poesia, de teatro e do jazz (vale lembrar, em um momento em que este último
era duramente perseguido por autoridades e pela moral estadunidense). Foi amiga, entre outros,
de artistas como o dada Man Ray.
Contudo, no final da década de 1950, momento em que Wilson se tornava um jovem,
para além de referências da primeira metade do século, o inventor de Hakim Bey era afetado,
sobretudo, por seus contemporâneos. Nos anos 50, John Cage avançava com sua música ruidosa
e antirrepresentação; Judith Malina e Julian Beck afirmavam o The Living Theatre para am
dos palcos convencionais; Gary Snyder, Diane Di Prima, Lawrence Ferlinghetti, injetavam
anarquia na chamada beat generation. Animado por estes exuberantes percursos o jovem
liberou-se da guerra e do território onde nasceu.
Pela internet poucas referências da arte anarquista, da vanishing art de Wilson.
Entretanto, em certos textos como “Palimpsesto” e “Os blues utópicos”,
2
ainda pouco
conhecidos e difundidos, o autor situou sua rara perspectiva artística. Se no primeiro ensaio,
1
Disponível em https://www.fifthestate.org/archive/391-springsummer-2014/mallarme-anarchist/.
2
Ambos os textos disponíveis em https://theanarchistlibrary.org/category/topic/peter-lamborn-wilson.
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situando um olhar ao mesmo tempo antivanguardista e experimental observou como nos anos
50, com o fluxus e outros grupos, a arte “mudou do vanguardismo para um descentramento
radical do impulso criativo, longe das galerias e museus” (WILSON s/d, s/p),
3
em “os blues
utópicos”, reiterou com ainda mais particularidade seu interesse em uma arte de esquiva aos
“museus que carregamos dentro de nós mesmos” (WILSON s/d, s/p).
No breve ensaio, a partir de escritos de Nietzsche sobre ópera e as experimentações
musicais de Charles Fourier nos falanstérios, questionou a arte musical e a conseqüente fixidez
e passividade de termos como “público” e “artista”.
Se a ópera fracassou como revolução como Nietzsche veio a perceber foi
porquê o público se recusou a participar ativamente. A ópera de Wagner ou
Fourier pode ter sucesso como social se tornar-se o social abolindo a
categoria de arte, de música, como algo separado da vida. O público deve se
tornar a ópera. Em vez disso a ópera tornou-se apenas mais uma mercadoria.
(IDEM), concluiu.
Nos anos 1970, na Pérsia, entre outros encontros, Wilson conviveu, não se sabe por
quanto tempo, durante um festival no deserto, com o artista anarquista John Cage. Cage,
exatos 70 anos, em 1952, em Woodstock, nos Estados Unidos, realizou uma ação direta musical
que, precisamente, aboliu a arte como categoria apartada da vida. Alterou decisivamente o
pensamento estético e ético da segunda metade do século XX, assim como Marcel Duchamp
alterara a primeira metade do XX.
O artista, após liberar-se de um casamento para se relacionar livremente com o
coreógrafo Merce Cunningham, em um momento em que o sexo gay ainda era crime; trabalhar
ao longo de vinte anos com músicas experimentais com percussão, pianos preparados, cada vez
mais interessado nos ruídos e nos chamados sons ambientes, apresentou neste início de anos
50, o trabalho intitulado “4’33”. Na première, o público, sentado de frente ao palco no qual
situava-se o músico e o piano, ouviu não as notas musicais de uma obra. Durante os quatro
minutos e trinta e três segundos, duração determinada por operações ao acaso (utilizando o
oráculo chinês I-Ching), a “plateia” ouviu os sons do espaço, os ruídos da sala, as cadeiras
rangendo, tosses, a chuva no telhado. Na ocasião, como ansiava o “utópico” Fourier e mais
tarde Wilson, “público” e “músico” tornaram-se a própria obra, produzindo e ouvindo sons
coletivamente, desaparecendo juntos.
3
Todavia, o próprio Wilson em “Palimpsesto” reconhece que não demorou para o próprio fluxus ser incorporado
pela Arte das galerias, museus e instituições.
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A AÇÃO DIRETA
John Cage, em 1935, ainda com vinte e três anos de idade, rompeu com o consagrado
compositor dodecafonista Arnold Schoenberg. Após o rompimento, somado às experiências
com música percussiva inventou o que ficou conhecido como “piano preparado”, isto é, a
incorporação de objetos pouco usuais instalados sobre as cordas do conhecido instrumento
produzindo, desta maneira, sons inéditos. Com o final da guerra, morando em Nova York,
aproximou-se de certos artistas como Robert Rauschenberg, Jasper Johns e, em especial,
anarquistas como Judith Malina, Jackson Mac Low, M.C. Richards, Paul Williams.
Os encontros, as amizades entre alguns desses artistas em Nova York se expandiram
para realizações na Black Mountain College, escola de artes localizada na Carolina do Norte.
No início dos anos 50, na Black Mountain, aconteceu o que mais tarde foi classificado por
historiadores da arte como o primeiro happening.
4
Interessado pelos escritos de Antonin Artaud
traduzidos por Richards segundo Cage, o contato com Artaud, nos anos 1940, tornou
possível a irrupção de novas práticas , o compositor propôs uma experimentação com eventos
simultâneos. “Nesta ocasião isso se estendeu para além da relação entre música e dança,
incluindo poesia, pintura e a incorporação da própria audiência. Assim, o público não ficou
focado em somente uma direção” (CAGE apud KOSTELANETZ, 2003, p. 10).
Concomitante a realização do happening, início da década de 1950, Cage já se intrigava
com a noção de silêncio”. Em visita feita à câmara anecóica situada na Universidade de
Harvard, ao ouvir sons no interior da sala totalmente vedada a barulhos exteriores, o artista
procurou o engenheiro de som e revelou: “estou ouvindo sons lá dentro. Como isso é possível?
Então ele me pediu para descrevê-los; eu os descrevi, como sendo um grave e um agudo”
(CAGE apud LOPES, 1996, p.100). Ouviu que os sons correspondiam, respectivamente, à
circulação do sangue e ao sistema nervoso: “ficou claro para mim que o silêncio não existe, que
era uma questão mental. Os sons que você escuta são provavelmente silêncio se você não os
quer. Mas eles estão sempre soando. Há sempre algo para se ouvir” (IBIDEM, p. 101).
Em 1952, sob o rescaldo do episódio, Cage esboçou “Waiting”, composição de um
minuto e meio de silêncio seguida por três e meio de piano solo. Todavia, decidiu abandoná-la
4
O acontecimento, em um pátio da escola, contou com projeções de imagens em movimento pelas paredes e a
suspensão de telas brancas de Robert Rauschenberg. Ao mesmo tempo, ele e o poeta Charles Olson liam,
simultaneamente, em escadas diferentes, desde poemas e textos zen até a Declaração da Independência dos
Estados Unidos; Cunningham dançava pelo pátio, perseguido por um cachorro; David Tudor tocava piano e uma
vitrola executava Edith Piaf em velocidade alterada.
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depois de se deparar com as telas brancas de Robert Rauschenberg expostas no happening da
Black Mountain College. Ao interesse de Cage por ruídos dispostos em espaços abertos,
explicitado em 1949 por “Lecture on Nothing”, somou-se a “vacância de cores” proposta pelo
artista plástico. O resultado: “4’33”, título extraído da própria duração da experiência,
estabelecida por operações do acaso com o I-Ching. “[Na câmara,] em Harvard, ouvi o silêncio
e notei que ele não é ausência de som, mas, sim, resultado de operações não intencionais do
meu sistema nervoso e da circulação do sangue. Esta experiência somada às telas brancas de
Rauschenberg me levaram a compor ‘4’33’” (CAGE, 1990, p. 5).
“4’33”, “ruído ambiente em três movimentos” foi apresentada em Woodstock, cidade
em que viviam muitos anarquistas estadunidenses. Em 29 de agosto de 1952, depois de ouvir
as orientações de Cage “é fundamental que você leia a partitura enquanto durar a
performance [...] Eu sei que parece estranho, mas, no final isto fará diferença” (CAGE apud
SILVERMAN, 2010, p. 118) , David Tudor subiu em um pequeno palco situado nos fundos
de um velho galpão. Sentou-se diante do piano e permaneceu em silêncio por quatro minutos e
trinta e três segundos com o objetivo de propiciar que “as pessoas descobrissem que os sons
ambientes muitas vezes são mais interessantes do que os sons que escutamos numa sala de
concerto” (CAGE apud LOPES, 1996, p. 101).
Para Rob Haskins, com 4’33” “Cage finalmente encontrou uma maneira de deixar os
sons serem sons, isto é, não mediados pela imaginação do compositor e liberados da história da
música que condicionou os ouvintes como autômatos pavlovianos” (HASKINS, 2012, p. 68).
Considerado, em diferentes registros, como sua maior contribuição para a música, segundo
Cage, “[‘4’33’] mudou minha mente, de modo claro, no sentido de apreciar todos esses sons
que eu não componho. Descobri que essa peça é a que está acontecendo a todo momento”
(CAGE apud LOPES, 1996, p. 101).
Aliado às telas de Rauschenberg, sem representação de imagens, telas que não excluem
ruídos como a sujeira, pelo contrário, incorporam tudo aquilo que cai sobre elas, a música-
mobília de Erik Satie também foi uma das procedências de “4’33”. Em seu primeiro livro
Silence, Cage publicou uma conversa imaginária com o compositor francês, na qual dialoga
com algumas passagens de Satie, entre elas, “nós devemos trazer à música algo como a mobília,
assim a música faria parte dos ruídos do ambiente, levaria em consideração tais ruídos” (CAGE,
2011, p. 76). E ainda colaborando para a proposta podemos considerar o episódio vivido por
Cristian Wolff e narrado por Cage em 1952, na conferência realizada na Julliard School,
registrada posteriormente em seu livro De segunda a um ano.
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Era um dia agradável e as janelas estavam abertas. Naturalmente, no decorrer
da peça, ruídos de trânsito, sons de todos, e alguns deles mais facilmente do
que os sons que vinham do piano. De tal forma que um amigo, que estivera
tentando com grande dificuldade ouvir a música, pediu, ao fim, se Christian
podia tocá-la novamente depois que fechasse as janelas. Christian disse que
de boa vontade tocaria a peça novamente, mas que não era urgentemente
necessário, que a peça tinha sido tocada e os sons que ocorreram
acidentalmente enquanto ela estava sendo tocada não eram de forma alguma
uma interrupção. As janelas da música estavam abertas. (CAGE, 1986, p.
101).
Embora pouco comentado por pesquisadores, o anarquismo, as relações entre Cage e
artistas radicais no pós-guerra foram também fundamentais para “4’33”. Como sinalizou Pietro
Ferrua (2003, 2004) em dois ensaios precisos, Cage, no decorrer da existência, afirmou variadas
vezes seu anarquismo, inclusive no Brasil, em 1968, durante a ditadura civil-militar. Apesar da
escassez de análises relacionadas a singularidade libertária do artista farto material para
pesquisas, como o livro de poemas/mesósticos Anarchy, publicado em 1988, no qual, o artista
revelou suas leituras de Emma Goldman, Piotr Kropotkin, Hypolite Havel, Liev Tolstói. “4’33”,
portanto, para além de uma revolução no interior da música, atualizou questões anarquistas,
sobretudo, relacionadas à antirrepresentação e à ação direta reivindicada por mulheres e homens
libertários.
Desde 1848, foram os anarquistas os mais fervorosos combatentes dos hábitos que
fundamentam a representação. Na introdução de Proudhon (1986), Paulo Resende e Edson
Passetti expuseram como aquele ano fora decisivo, em especial a partir dos escritos do
anarquista francês. Frente à crença na inevitabilidade do progresso, com Proudhon valorizou-
se a capacidade de atuação política da classe operária. Somado à análise do autor da máxima
“A propriedade é o roubo”, o ano de 1848 foi ainda fundamental para a irrupção de
questionamentos radicais à representação política. Naquele instante, se por um lado, em Paris,
reivindicando reformas, entre elas, o sufrágio universal, milhares de operários, artesãos e
estudantes, derrubaram o rei Luís Filipe, por outro, um ano depois, por meio do sufrágio
concedido, Luís Napoleão comandou a violenta reação contra aqueles identificados como
revoltosos.
A própria experiência de Proudhon, eleito para a Assembleia Constituinte com 77 mil
votos, apoiado por artistas como o escritor Charles Baudelaire e o pintor Gustav Courbet,
serviu, como bem observou o historiador George Woodcock, “para aumentar sua descrença nos
métodos políticos, ajudando a criar o antiparlamentarismo que marcou seus últimos anos e foi
herdado pelo movimento anarquista em geral” (WOODCOCK, 2002, p. 139). Ao refletir
posteriormente sobre suas atividades na Assembleia Nacional, o anarquista concluiu:
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Assíduo, desde as nove horas, às reuniões nas comissões e comitês, não
deixava a Assembleia senão à noite, esgotado de fadiga e desgosto [...]. Eu
não sabia de nada, nem das oficinas nacionais, nem da política do governo,
nem das intrigas que se cruzavam no interior da Assembleia. É preciso ter
vivido nesse isolador que se chama Assembleia Nacional, para conceber como
os homens que ignoram mais completamente o estado de um país são quase
sempre os que o representam. (PROUDHON, 2001, p. 203).
Mais tarde, Piotr Kropotkin, em recado direto aos devotos das eleições, arrematou:
seu representante deverá emitir uma opinião, um voto, sobre toda a rie,
variada ao infinito, de questões que surgem nesta formidável máquina o
Estado centralizado. Ele deverá votar o imposto sobre os cães e a reforma do
ensino universitário, sem jamais ter colocado os pés na universidade, nem
sabido o que é um cão de caça. (KROPOTKIN, 2000, p. 33).
Na Espanha, década de 1930, anarquistas associados à Confederación Nacional Del
Trabajo (CNT) levaram mais de 100 mil trabalhadores às ruas sob o lema “Revolução Social:
a saída para as urnas”.
Diante da crítica à representação política, os anarquistas estimularam em especial o que
chamaram de ação direta. Segundo Voltairine de Cleyre, “toda pessoa que planejou fazer
qualquer coisa, e foi e fez, ou pôs seu plano em execução antes de outros, e ganhou a cooperação
e colaboração de outras pessoas, sem apelar para autoridades, pedir licença ou agradá-las, foi
um praticante da ação direta” (DE CLEYRE, 2009, s/p). Sem ficar restrita às práticas
anarquistas, a mais explícita entre tais ações apontadas por ela foi a que aboliu a escravidão nos
EUA. À ação indireta ou o “como-não-fazer-nada”, dos políticos, isto é, “trinta anos de
compromissos, pechinchas, tentativas de manter o status quo” (IDEM) , Voltairine opôs as
ações de guerrilha contra os proprietários de escravos, realizadas por homens como John Brown
e que efetivamente derrubavam o regime antes mesmo de qualquer decreto oficial. No Brasil,
José Oiticica, avô do artista Hélio Oiticica, artista anarquista, como bem sublinhou Beatriz
Carneiro [2022] e um atento leitor de Cage, inventou um importante jornal intitulado Ação
Direta. Em um dos editoriais, em 1947, portanto contemporâneo da agitação proposta por Cage,
Judith Malina, entre outros, arrematou:
após duas guerras desenganadoras [...] ação direta é o meio certo de vencer,
porque é o único meio amedrontador do capitalismo. Nenhum parlamento
assusta a alta finança. Parlamento não faz greves, não sabota a produção, não
boicota produtos [...] a ação direta abala tronos, ameaça tiaras, convolve
mundos. (OITICICA, 1970, p. 21).
4’33”, em 1952, pode ser considerada uma ação direta anarquista, mais um episódio
do embate libertário contra a representação. Foi em 1965, que John Cage utilizou a expressão
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“ação musical direta” para se referir não especificamente à experimentação de Woodstock, mas
ao fluxo de suas invenções a partir dos ouvidos, sem interpor os olhos” (CAGE, 1986, p. 3).
A principal ressonância da ação direta “4’33” entre os artistas anarquistas ocorreu quase uma
década depois, em 1966, em Milão, Itália. Nesta cidade, o The Living Theatre apresentou “Free
Theatre”, no qual os atores do grupo ocuparam o espaço de apresentação, não falaram,
tampouco fizeram gesto algum. Assim como ocorrera em Woodstock com Cage, o público
reagiu rapidamente. “‘Façam algo’ eles gritavam. Então começaram a nos puxar, cutucar.
Começaram a participar do Teatro Livre. Nossa resposta à histeria foi permanecer em silêncio”
(BECK, 1986, p. 82-83).
No mesmo ano em que o The Living Theatre provocava com seu Teatro Livre, Cage
dava forma a uma amizade extraordinária. No inverno de 1965-1966, ao encontrar Marcel
Duchamp em uma festa o compositor perguntou se ele se dispunha a ensinar xadrez. Duchamp
aceitou e logo presenteou o novo aluno com um cartão de filiação à Sociedade Tcheca do jogo
de tabuleiro. A partir de então, somado às partidas semanais, Cage acompanhou Duchamp a
Cadaqués, no litoral da Espanha. “`Nós somos amigos […] temos um modo parecido de olhar
as coisas’” (DUCHAMP apud SILVERMAN, 2010, p. 228). Mais tarde, em M: Writings
(1973), seu terceiro livro publicado, John Cage relembrou a viagem à costa da Espanha e a
impaciência de Duchamp ao tabuleiro (“você nunca quer ganhar?”, perguntou a Cage).
Dois anos antes de morrer, em entrevista a Pierre Cabanne, após comentar o apreço pelo
happening em razão de sua oposição ao quadro de cavalete, Duchamp declarou: “é a mesma
ideia de John Cage, em música; ninguém tinha pensado nisto” (DUCHAMP apud CABANNE,
2002, p. 168). A aproximação com Cage e posteriormente com Merce Cunningham, Robert
Rauschenberg, Jasper Johns, fizeram com que, nos últimos anos de vida, Duchamp voltasse a
ser celebrado entre jovens artistas contemporâneos estadunidenses. Junto da antirrepresentação
apontada por “4’33”, a proximidade dos dois artistas, um declaradamente anarquista e o outro
um leitor voraz do individualismo radical de Max Stirner, coloca mais algumas questões ético-
estéticas nitidamente libertárias.
ANTIJULGAMENTO, A VIDA COMO ARTE ÚNICA
As referências a Marcel Duchamp no diário publicado por John Cage são várias, em
especial, nas primeiras publicações ainda na segunda metade da década de 1960, e ultrapassam
questões meramente estéticas, indo desde a sugestão do artista francês para que automóveis
fossem usados pelo maior número de pessoas “[1966] usar os carros urbanos como se usam
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os carrinhos em supermercados e aeroportos” (CAGE, 1986, p. 58) até o combate à
propriedade “[1967] Duchamp: a propriedade está na base de tudo. Enquanto você não
renunciar à propriedade, mudanças radicais são impossíveis” (IBIDEM, p. 149) e o
enfrentamento ao pensamento transcendente e à religião “[1969] Perguntaram a Duchamp
se ele acreditava em Deus: Não. Deus é uma estúpida ideia dos homens” (CAGE, 2015, p. 96).
Apesar da diferença etária (25 anos), somado ao xadrez e ao cigarro, a proximidade
entre os dois artistas ocorreu em muitos aspectos. Ambos visaram a abolição do gosto e da
“emoção estética”, expressão usada por Duchamp, assim como abandonaram as atividades
pelas quais foram inicialmente conhecidos, isto é, a pintura e a música, em busca de outros
caminhos. E se, desde o ocaso dos anos 1940, John Cage afirmou o anarquismo como
perspectiva ético-estética, nas primeiras décadas do século XX, amigos próximos do artista
francês, tal como Man Ray e outros dadás, também se declararam libertários. Nas “26
proposições sobre Duchamp” publicadas em De segunda a um ano, em 1966, Cage observou
que aprendeu com o artista que “uma obra de arte não é nossa […]. Anarquia?” (CAGE,
1986, p. 71), indagou. “Eu penso que a sociedade é um dos grandes obstáculos que um artista
tem pela frente. Acho que Duchamp concordaria com essa afirmação” (CAGE apud
KOSTELANETZ, 2003, p. 23), declarou mais tarde.
Todavia, mesmo sem se definir anarquista, Duchamp, depois de ser apresentado por
Picabia a Max Stirner, em 1912, ano em que apresentou “O Nu descendo a escada”, tornou-se
por toda a vida um leitor constante do autor de O único e a sua propriedade. Quatro décadas
depois, em 1961, registrou Bragança de Miranda, em jantar na casa do artista, fala-se da
reedição do Único, com capa de Max Ernst. Discutiu-se a violência na Guerra da Argélia e a
violência provocada pelas ideologias e movimentos totalitários do século XX e Duchamp fala
na oportunidade de Nietzsche e Stirner para se opor a tudo isso: ‘são os únicos livros que leio
com prazer’” (MIRANDA apud STIRNER, 2004, p. 322).
Miranda alertou que certos artistas no início do século XX associaram o único à suposta
genialidade, “ideia de um ‘indivíduo’ em luta contra o ‘sistema’”, ideia, segundo ele, “muito
pouco stirneriana”, visto que “em nenhum momento encontramos em Stirner a luta contra o
real, em favor de algo melhor ou diferente” (IDEM). Para Miranda, foi com Duchamp e Picabia
que o Único foi incorporado como revolta direcionada à arte. “Característica comum a todos
estes artistas [dadaístas stirnerianos] é o fato de privilegiarem a ‘revolta’ mais do que a
revolução, atitude consentânea com a de Stirner” (IDEM).
Em 1913, lembrou Miranda, logo após a leitura de Max Stirner, irromperam os
primeiros ready-made de Marcel Duchamp, e com eles o abandono definitivo do cubismo e do
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suporte do quadro. Os ready-made ainda questionaram de maneira mordaz e bem-humorada o
juízo que definia o que poderia ou não ser considerado objeto de valor artístico. Como exemplos
de tais questionamentos, em 1917, Duchamp inscreveu um urinol, “A fonte”, num concurso
artístico realizado nos EUA, e dois anos depois apresentou “LHOOQ”, no qual interveio numa
reprodução da Monalisa, de Leonardo da Vinci, acrescentando um bigode ao célebre retrato.
Movimento de contornos imprevistos, não homogêneo, feito o anarquismo, segundo
Berthet, a revolta antiarte dos dadaístas não se restringiu às instituições artísticas. Ampliou-se
também como recusa à política. “Oposto a toda ordem, a toda hierarquia, o dadaísmo recusava
o discurso político, qualquer que fosse” (BERTHET, 2001, p. 70). A recusa, descrita acima por
Berthet, foi levada adiante por Duchamp até o final da existência, momento em que Cage e ele
se aproximaram.
Não entendo nada de política e posso constatar que é uma atividade estúpida,
que não leva a nada. Que conduza ao comunismo, à monarquia, a uma
república democrática, é exatamente a mesma coisa para mim. Você me di
que os homens o obrigados a fazer política para viver em sociedade, mas
isto em nada justifica a ideia da política como uma grande arte em si”
(DUCHAMP apud CABANNE, 2002, p.174), concluiu pouco antes de
morrer.
Morto em 1968, um mês antes da publicação de notations, Duchamp não conheceu o
livro organizado por Cage contendo partituras de compositores de diferentes partes do planeta,
desde Stravinski passando por Pierre Boulez, Xenakis, até The Beatles.Um pouco antes da sua
partida, em uma série de entrevistas concedidas a Pierre Cabanne, questionado sobre sua relação
com a arte institucionalizada em museus, disparou:
Não vou ao Louvre vinte anos. Não me interessa mais por causa desta
dúvida que eu tenho a respeito do valor desses julgamentos que decidiram que
todos aqueles quadros deveriam ser expostos no Louvre no lugar de colocar
outros que jamais foram considerados e que poderiam estar lá [...] O Museu é
a última forma de compreensão, de julgamento? A palavra ‘julgamento’ é,
também, uma coisa terrível. (IBIDEM, p. 23).
Vinte e cinco anos depois da morte de Duchamp, um pouco depois de lançar Anarchy e
revelar seu novo pensamento baseado na “harmonia anárquica”, início dos anos 1990, Cage
reverberou e atualizou o incômodo do amigo. Em Munique, na Neue Pinakothek, convidado a
apresentar uma instalação juntou, ao acaso, obras variadas dos mais distintos museus da cidade,
abolindo precisamente o julgamento atribuído a um suposto curador. “Normalmente, quando
vamos a uma exposição, vamos ver um determinado tipo de coisa. Contudo, nesse caso, viu-se
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uma grande variedade de coisas no espaço do museu. Foi muito diferente” (CAGE apud
RETALACK, 2022, p. 100).
Pouco tempo depois, em Los Angeles, radicalizou a proposta. No projeto Rolywholyover
Circus, também por meio do acaso, o espaço expositivo era totalmente transformado a cada dia
de exposição, proporcionando experiências únicas e intransferíveis a cada visita. Às vésperas
da realização, em depoimento a Joan Retalack, descreveu: “[o espaço] vai envolver não apenas
os objetos pendurados nas paredes e esculturas, mas performances ao longo do espaço da galeria
sem aviso prévio. Elas vão fazer parte do lugar que você vai, que não estará lotado de pessoas
por causa de um anúncio” (IBIDEM, p. 101).
Quase quatro décadas depois de implodir, com o silêncio, as salas de concerto, aos
oitenta anos de existência, Cage acertou em cheio o Museu. Arrematou:
acho que o museu em particular, mas poderíamos incluir a sala de concertos
todas as situações organizadas são entorpecedoras, hum? (risos) [...]. Se você
vai a um museu, o que vê? Você tem um número de objetos ao mesmo nível
dos olhos. Você vê uma linha reta ao redor da sala [...]. Então, qualquer coisa
que você fizer em relação a essa situação vai ajudar. A primeira coisa a fazer
seria levar alguns deles embora (risos), ou colocar coisas que não pertencem
àquele lugar [...]. Se você se sentir bem em um espaço como se estivesse
fora dele, realmente fluindo para fora dele, então é uma arquitetura
maravilhosa. Mas se é espacialmente aprisionante, é terrível. A maioria dos
edifícios que abrigam nossas instituições museus, salas de concerto, escolas
são prisões. (CAGE, 2022, p. 102-107), concluiu.
UMA SOMBRA, UNDERGROUND...
Apesar das inúmeras diferenças, muitas das questões de Wilson, Cage, Duchamp, se
tocam e fortalecem práticas ético-estéticas anarquistas contemporâneas. Selecionei aqui como
os três artistas se afastaram da noção de obra. O primeiro com a vanishing art, o segundo com
“4’33”, experiência sempre única, o último com os ready made. O afastamento da obra, para
certos artistas, implica em uma valorização de um outro tipo de obra, obra que não cabe em
museus ou qualquer instituição, isto é, a obra como a própria transformação de si no momento
das invenções.
Em um de seus escritos sobre Cage, o poeta Augusto de Campos recordou sua passagem
pelo Brasil, nos anos 1980, durante uma Bienal de Artes. Ao ser questionado por um jornalista
sobre qual seria a razão de sua obra, respondeu: “‘o que eu faço não é para me expressar, mas
para mudar a mim mesmo’” (CAGE apud CAMPOS, 1998, p. 147). No final dos anos 1970, ao
comentar a arte a partir de Henry David Thoreau, Cage ainda considerou: “mais importante do
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que a forma que o escultor à pedra é como o trabalho de esculpir transforma o próprio
escultor” (CAGE apud KOSTELANETZ, 2003, p. 33).
Para além do afastamento da obra como objetivo, os artistas anarquistas se distanciaram
também, em muitas ocasiões, dos grandes centros e suas relações com a Arte. Enquanto Wilson
se deslocou, no fim da vida, para a margem do Hudson, Cage viveu por quase duas décadas em
Stonypoint caçando cogumelos. Duchamp foi para Cadaqués, onde jogava xadrez e vivia
desconhecido. Em uma de suas últimas entrevistas, especificamente sobre Duchamp, Cage
contou que um dos objetivos do artista francês era “ficar underground que é um objetivo
oriental”, feito um animal que não deixa rastros “subir na árvore sabendo que seus passos são
cobertos pela neve que cai para que ninguém saiba onde você está! (risos)” (CAGE apud
RETALACK, 2022, p. 127).
Em Bartleby e companhia, o escritor Enrique Vila Matas, ao selecionar Marcel
Duchamp como um dos emblemas do desaparecimento, relembrou:
Duchamp conhecia pessoalmente essa sombra, chegou a fabricá-la
manualmente. Em um livro de entrevistas, Pierre Cabanne pergunta-lhe em
determinado momento se ele se dedicava a alguma atividade artística naqueles
vinte verões que passou em Cadaqués. Duchamp responde que sim, pois todo
ano reconstruía um toldo que lhe servia para ficar à sombra em seu terraço.
Duchamp sempre gostou de ficar à sombra. (VILA MATAS, 2021, p. 63).
Em um momento como o que vivemos, pequenas câmeras iluminando e registrando cada
movimento, trabalhos sustentados por infinitos views, ficar à sombra, não aparecer, desaparecer
aos poucos. E depois aparecer já distante das salas de concerto, dos museus, das telas, dos
lugares destinados a Arte. E desaparecer novamente. E aparecer, mais adiante, onde menos se
espera, junto da vida no dia-a-dia. A todo instante, ocorre uma transformação radical. Para
alguns anarquistas, em outras palavras, isto é, arte.
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Recebido em: 30 de agosto de 2022
Aceito em: 16 de dezembro de 2022