ISSN 2447-746X
DOI: https://doi.org/10.20888/ridpher.v8i00.17487
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Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 8, p. 1-7, e022023, 2022.
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BIBLIOTECA TERRA LIVRE: PRESERVAR A HISTÓRIA, VIVER A MEMÓRIA E
CONSTRUIR UM MUNDO NOVO
Vitor Ahagon
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Biblioteca Terra Livre, São Paulo, Brasil
prof.ahagon@gmail.com
RESUMO
O Documento apresenta a trajetória social, política e cultural da Biblioteca Terra Livre, espaço
de militância anarquista em São Paulo.
Palavras-chave: Anarquismo. Educação. Autogestão.
Antes de você começar a ler, um aviso: este não é um texto acadêmico!
Isso não significa que em suas linhas não serão esboçadas e referenciadas pesquisas e
investigações de cunho científico, filosófico ou mesmo artístico, mas diferentemente de um
texto acadêmico, que preza pela objetividade inerente a toda pesquisa científica, o objeto do
texto se inscreve duplamente nos dedos que digitam essas palavras e, por isso mesmo, a
característica divisão cartesiana entre sujeito e objeto da ciência moderna - e que, não se iludam,
reside até hoje nas universidades - não será respeitada. Muito pelo contrário, a história do objeto
do texto faz parte da história daquele que escreve agora, mas também faz parte da história
daqueles e daquelas que não estão mais aqui, mas que nem por isso não estejam “vivos”,
assim como eu e você. Pode parecer um papo meio “espiritualista”, mas não é. É profundamente
ancorado na memória coletiva do movimento anarquista, pois a experiência de construir o
objeto deste texto com tantos e tantas outras camaradas, não somente no intelecto mas na
prática, nos conecta a muitas experiências anteriores. Nos liga a vidas vividas, sonhos sonhados,
desejos desejados… e é a partir desse laço que conto um pouco da história da Biblioteca Terra
Livre.
RECORDAR
Se puxarmos o fio que nos liga aos nossos antepassados, logo reparamos algumas
semelhanças marcantes. Todas e todos fomos desterritorializados e, portanto,
despersonalizados pelo capitalismo, afinal, foi através da homogeneização da forma mercadoria
que foi possível a objetificação necessária para a nossa venda. Mas esse mercado não é livre,
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Membro da Biblioteca Terra Livre.
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como querem (nos fazer) crer os (neo)liberais, pois sem o Estado, com suas engrenagens
burocráticas de classificação, a precificação não seria possível. E assim, pretos, brancos,
amarelos e vermelhos, assim como homens, mulheres e crianças “valem” tantos e quantos
diferentes de um e de outro.
Mercadorias não falam, escutam e muito menos pensam, e se assim o fizerem, estarão
com defeito e logo serão descartadas, ou melhor, destruídas e substituídas por outras. No
entanto, por mais que o poder queira, as mercadorias rebelam-se contra seus senhores do
engenho, do café, da fábrica, da empresa, da Igreja e do Estado. Insistem em sua condição
humana, que coisa mais irritante para o poder… Persistem falando, escutando e pensando e,
para tanto, fundaram associações, sociedades de socorros mútuos, sindicatos, escolas, centros
culturais e, é claro, bibliotecas.
Recordar a história desses agrupamentos de resistência é resgatar lembranças que foram
encobertas, que foram esquecidas pelo poder porque revelam um trauma. O poder como
dispositivo de controle e dominação, recalca as experiências de autonomia. Quando a
coletividade, que possui uma natureza social diversa e plural, toma para si a responsabilidade
de instituir suas próprias normas, o poder usa de todas as suas ferramentas e artimanhas para
expropriar sua capacidade instituinte. E na medida em que institucionaliza aquelas normas que
foram criadas pela coletividade, encoberta o que havia de mais essencial, a potência criativa da
autonomia.
E foi assim que os anarquistas da aurora do culo XX no Brasil, para garantir sua
identidade libertária enquanto movimento social, “criaram uma série de formas de ação que
tinham na cultura, na educação e no lazer os principais instrumentos da propaganda doutrinária”
(AZEVEDO, 2002, p. 134). Tais formas de ação se manifestaram através de Ateneus, Escolas
Modernas, Centros de Cultura - e aqui não poderia deixar de citar o Centro de Cultura Social
de São Paulo que abriu suas portas em 1933 e se encontra na ativa até os dias de hoje -, Grupos
de estudo e de ensino em esperanto, Grupos das juventudes libertárias, de propaganda e
agitação, editoras e jornais, livrarias e ligas anticlericais.
Estas coletividades anarquistas organizaram reuniões e assembleias de suas associações,
mas também dos sindicatos, federações e confederações operárias com a finalidade de organizar
a resistência e a Revolução Social. Realizavam palestras, conferências públicas e cursos de
aperfeiçoamento cultural e intelectual no intuito de divulgar e debater as ideias anarquistas e as
condições da vida operária. Mas as atividades não se restringiam apenas a uma militância
sisuda, havia também as apresentações teatrais de dramas ou comédias de propaganda social,
saraus literários e artísticos e os piqueniques populares, unindo lazer e conscientização política.
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Ou seja, no interior de cada um desses grupos e nas atividades por eles organizados, “a
sociabilidade entre companheiros de luta [era] algo essencial. E essa convivência possibilita a
edificação de novas relações sociais, assim como o estabelecimento de uma cultura própria dos
anarquistas” (CUNHA; ROSA, 2014, p. 125) e que estava enraizada na cultura do proletariado
militante brasileiro.
REPETIR
Ao recuperar essas lembranças encobridoras, notamos uma questão que nos toca
particularmente. Toda associação, centro cultural, ateneu ou sindicato organizava em seus
espaços uma biblioteca, mesmo que fosse bem pequena. Ali era reunido um acervo o mais
diverso possível, contendo não apenas livros sobre política, história ou economia, mas também
literatura, ciência e filosofia. Nietzsche, por exemplo, foi lido pelos operários muito antes dos
intelectuais brasileiros, que, por estarem excessivamente contaminados pelo positivismo elitista
do XIX, não consideravam a dinamite como filósofo.
Bibliotecas como A Inovadora, mantida em São Paulo pelo militante anarquista Rodolfo
Felipe, “oferecia em 1924 um serviço de livraria [...] fazendo circular no país obras políticas e
científicas de renomados pensadores e escritores como Darwin, Kropotkin, Tolstói, Reclus,
Landauer, Michelet, Flamarion, Mirbeau, Zola, Hugo, entre outros” (CUNHA; ROSA, 2014,
p. 127). É no lastro dessas experiências que a Biblioteca Terra Livre se encontra. Fundada em
2009, a biblio - como a designamos carinhosamente -, tem como principal projeto a constituição
e manutenção de um centro de documentação anarquista, que busca preservar a memória do
anarquismo no Brasil e no mundo.
Mas a história da biblio antecede a sua própria existência. Seu surgimento se deu no
momento de retomada do anarquismo após longo período de reclusão. Como reação ao avanço
do neoliberalismo no mundo, nos anos 1980-1990, e inspiradas no levante em Chiapas, no Sul
do México, pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional, foram organizadas as
manifestações contra o G8 pela Ação Global dos Povos, que foi denominada como
antiglobalização. A partir dessas mobilizações, surgiu uma série de agrupações libertárias,
autonomistas e anarquistas, dentre elas o coletivo Terra Livre, embrião do que será a Biblioteca
Terra Livre.
Junto com diversos coletivos, movimentos e indivíduos autônomos de São Paulo, a
Biblioteca Terra Livre participou da construção de um centro político-cultural autogestionário
no centro da cidade, o Espaço Ay Carmela, e foi nele que a biblio teve sua primeira sede. No
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entanto, as demandas de gerir um espaço tão grande, que tinha um aluguel muito alto, tomava
todo nosso tempo de militância; mas nosso maior problema era o acondicionamento dos livros
e documentos, pois o espaço não havia sido planejado para essa função específica, o que
colocava em risco a integridade dos materiais.
Foi refletindo esses problemas que resolvemos mudar a Biblioteca para uma pequena
sala ao lado da estação de metrô Vila Madalena, em São Paulo. Ali teríamos um melhor controle
do acesso ao acervo, um cuidado maior com sua manutenção, daríamos início a atividades que
estávamos ansiosos e ansiosas para começar e, fora tudo isso, conseguiríamos arcar com os
custos do aluguel, mediante a contribuição dos e das militantes do coletivo.
A partir de então, a biblio pôde realizar suas atividades como os grupos de estudos em
geografia, educação, história, movimento operário autônomo, pensadores anarquistas, cinema,
um específico sobre a Greve Geral de 1917 e hoje segue com o de História do Anarquismo em
formato remoto. Alguns desses grupos de estudos gestaram outras ações, como o “Congresso
Internacional Élisée Reclus e a Geografia do Novo Mundo”, realizado na USP, e a publicação
do livro Anarquistas no Sindicato, um debate entre Neno Vasco e João Crispim, que, aliás, foi
co-editado com o Núcleo de Estudos Libertários Carlos Aldegheri, o NELCA, coletivo que
reúne militantes do litoral sul de São Paulo. Essas atividades passaram a ser feitas
recorrentemente e hoje a Biblioteca é também uma editora, que tem mais de duas dezenas de
livros, inclusive infantis, e seguimos publicando todos os anos. A realização de Colóquios e
Congressos segue em andamento com participações de companheiros e companheiras de outras
latitudes do globo terrestre, firmando a perspectiva internacionalista do anarquismo, não apenas
no discurso, mas na prática e nos afetos que construímos nesses encontros.
Conseguimos organizar várias outras atividades, como cineclubes, palestras, debates,
minicursos e, desde 2019, seguimos com o projeto de podcast que nomeamos de Antinomia. O
Antinomia teve muita inspiração em outro podcast, o Desobediência Sonora, mas, ao invés de
centrarmos nossa atividade em entrevistas, o objetivo é debater os temas atuais desde uma
perspectiva dos movimentos sociais e do anarquismo. Mas, dentre todas essas atividades,
ressaltamos as Feiras Anarquistas que ocorrem todos os anos. Elas foram organizadas em
parceria com o Ativismo ABC - coletivo que, infelizmente, não existe mais - e hoje segue
sendo feita com o Centro de Cultura Social de São Paulo e o NELCA; neste ano de 2022,
realizamos nossa décima segunda edição.
Nas tradicionais Feiras, temos a exposição dos livros de editoras anarquistas,
apresentações teatrais, debates, rodas de conversa, oficinas, apresentações musicais, exibições
de filmes e lançamento de livros. Foi construindo a Feira Anarquista que sentimos a necessidade
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de criar um espaço e uma programação pensada para as crianças, mas não apenas para elas, já
que adultos também participam. Assim nasceu o espaço Adelino de Pinho, em homenagem ao
autodidata e educador anarquista, que foi professor da Escola Moderna n.2, em São Paulo, entre
os anos de 1912 a 1919.
Poderia ficar esmiuçando cada uma dessas atividades organizadas pela biblio, mas não
é esse o caso. O que importa é refletirmos como ela está inscrita na história do movimento
anarquista, não apenas pela filiação ideológica, mas sim na sua própria constituição existencial.
A Biblioteca Terra Livre busca, como já foi dito, preservar a memória do anarquismo no Brasil
e no mundo, mas a preservação da memória não se dá apenas na recordação de um passado que
se foi. A lembrança se em ato na medida em que se repete uma história vivida por outros
e outras no passado. A repetição dessa história ainda ocorre porque o corpo social continua se
debatendo com aquilo que foi recalcado e que não consegue se lembrar, a não ser através de
uma manifestação inconsciente. Mais uma vez, nos debatemos com o poder que nos quer
despossuir, nos alienar do outro, do mundo e de nós mesmos e é por isso mesmo que seguimos
repetindo a história daqueles e daquelas anarquistas que vieram antes de nós.
ELABORAR
Esta repetição continua a existir porque ainda nos havemos com as moções pulsionais
recalcadas e que alimentam as resistências. Resistência aqui não no sentido político dos
movimentos de liberação, mas sim da permanência e insistência da alienação que o poder
submete o corpo social. No entanto, esta alienação não se sustentaria se fosse exercida apenas
e exclusivamente por uma força externa que o força a abrir mão de sua liberação, a
necessidade de uma força interna que ancore tal processo. Neste momento, as perguntas
levantadas por Eduardo Colombo nos ajudam a localizarmo-nos diante do problema: “qual é
nossa participação em nossa própria destruição? Como somos cúmplices contra nós mesmos?”
(COLOMBO, 2001, p. 12).
As e os anarquistas, quando faziam e fazem a crítica da propriedade privada e da
autoridade manifestada em Deus, no Estado ou no pai de família, nos dão notícias do recalque
do corpo social e que, frequentemente, ele mesmo não quer abrir mão. Se fala das desgraças da
pobreza, mas não se quer pôr fim à propriedade privada. Se fala da fanatização religiosa, mas
não se quer extinguir essa “loucura coletiva”, como disse Bakunin. Se fala da violência de
Estado, mas se recorre ao próprio Estado para acabar com a violência causada por ele. Se fala
como a autoridade paterna perpetua a misoginia, mas não se problematiza a masculinidade
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paterna desde o ponto de vista de seu privilégio. Apesar de todo sofrimento, ainda gozamos
com o consumo, com a fé, com o pai e com a autoridade.
Os e as anarquistas nos avisam desses sofrimentos muito tempo, seja pela palavra
recordada ou ação repetida. Mas tal repetição, tão importante para que a luta continue, pode
cair em uma armadilha: se, por um lado, a repetição em ato das lutas do passado nos fazem
lembrar do recalque na medida em que o corpo social segue resistindo à mudança, por outro,
essa repetição pode fazer com que as e os anarquistas fixem suas ações na repetição de sua
própria identidade política e, assim, o anarquismo deixa de ser um projeto de uma outra
sociedade e passa a ser um conjunto de características e atributos que compõem um grupo. Ser
anarquista se torna mais importante do que mudar as relações sociais em um sentido arquico
e a própria acepção existencial do anarquismo deixa de ter significado.
Claro que a elaboração dessa contradição é uma tarefa muito difícil para os e as
anarquistas e que exigirá muita paciência e autorreflexão, mas, certamente, essa elaboração é
necessária de ser feita constantemente. Talvez, uma das formas de não cair nessa armadilha
identitária política, seja efetuar um movimento dialético da afirmação da identidade para
superá-la. Acredito que, na medida em que o movimento anarquista aponta para a criação de
um mundo radicalmente igualitário e livre, calcado na solidariedade entre todos os seres
viventes, afirmamos nossa identidade, mas que possa ser partilhada com todos, todas e todes,
tornando-se uma outra coisa, algo novo, deixando de ser mesmo anarquista.
Esperamos que com os trabalhos que a Biblioteca Terra Livre vem fazendo, possamos
colaborar um tanto para esse sentido.
Até a próxima prosa.
Saúde e Anarquia!
REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Raquel de. A Resistência Anarquista. Uma questão de identidade (1927-1937).
Arquivo do Estado/Imprensa Oficial do Estado, São Paulo, 2002.
COLOMBO, Eduardo. Análise do Estado. Estado como paradigma de Poder. São Paulo:
Editora Imaginário, Nu-Sol, Casa Soma, 2001.
COLOMBO, Eduardo. Anarquismo, obrigação social e dever de obediência. São Paulo:
Editora Imaginário, Nu-Sol, Casa Soma, 2003.
COLOMBO, Eduardo. Democracia e Poder. A Escamoteação da Vontade. Editora
Imaginário e Expressão & Arte, São Paulo, 2011.
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CUNHA, Eduardo; ROSA, Rodrigo. Bibliotecas, Centros de Estudos e Ateneus: Cultura e
Educação anarquista ontem e hoje. Educação Libertária, Teoria e Prática libertárias em
educação, São Paulo, Rio de Janeiro, Editora Imaginário, IEL, n. 2, mar. 2014.
FREUD, Sigmund. Fundamentos da Clínica Psicanalítica. Belo Horizonte: Grupo
Autêntica, 2016.
Recebido em: 10 de setembro de 2022
Aceito em: 10 de dezembro de 2022