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ANARQUISMOS, HOMOSSEXUALIDADE E QUEER
Flávia Lucchesi
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil
flalucchesi@gmail.com
RESUMO
Desde o final do século XIX, anarquistas se envolveram de maneiras diversas com a questão da
homossexualidade. Dividiram-se entre reprimendas morais, a busca por “soluções” e a defesa
das relações amorosas e práticas sexuais livres. Após 68, a proximidade entre anarquismos e
essas outras práticas se estreitou no embate direto contra a moral e para revolver os costumes.
Na década de 1990, irrompeu no interior do próprio movimento de gays e lésbicas uma força
queer que confrontou a assimilação via reivindicação de direitos, políticas e a adequação às
condutas e ao modo de vida heteronormativos. No novo século, em diversos cantos do planeta,
eclodiu pelas ruas o anarcoqueer e a afirmação de lutas que desassossegam queers, anarquistas,
o movimento LGBTQIA+ e que enfrentam a sociedade.
Palavras-chave: Queer. Anarquismos. LGBTQIA+.
Hoje, 2022, é possível dizer que xs anarquistas se posicionam a favor, ao lado ou nas
lutas LGBTQIA+
1
. Umx libertárix que exponha publicamente preconceitos acerca do diverso
de gênero e sexualidade será inequivocamente confrontadx por outrxs ácratas
2
. Ainda que haja
uma moral entre certxs libertárixs que sustenta tais ajuizamentos. Contudo, não são
explicitados, ao menos no contexto democrático ocidental. Frente a isso, cabe questionar: como
anarquismos e movimentos LGBTQIA+ se misturam, convulsionam-se, transformam-se
mutuamente? Sem esse movimento recíproco de mudanças radicais, não se estará reproduzindo,
entre anarquistas, condutas semelhantes às neoliberais enquanto mera tolerância diante da
diversidade e dos movimentos de minorias? É a partir dessas indagações e incômodos que esse
texto se desenrola.
No final do século XIX e primeira metade do século XX a situação era outra. A maioria
dentre anarquistas era contrária às práticas e relações entre pessoas “do mesmo sexo”,
consideradas “viciadas”, “degeneradas”, “desviadas”, “pervertidas”; “anormais”,
1
Atualmente em uso no Brasil dessa forma, a sigla representa: Lésbicas; Gays; Bissexuais; Transexuais,
Transgêneros e Travestis; Queers, Questionando; Intersexos; Assexuais, Agêneros, Aliados. Ela está em
constante atualização e marca a visibilidade de certas identidades de gênero e sexualidade em detrimento de
outras, contidas no sinal de mais ao final. Atenta-se para o fato de que as atualizações e mudanças na sigla
explicitam o estado das disputas identitárias.
2
A escrita deste texto se insere na luta contra a generalização da linguagem pelo domínio do masculino como
totalizante, pretenso universal e neutro. A ruptura com este domínio no campo da língua atravessa embates
anarquistas contemporâneos, ao menos desde os anos 1990, quando libertárixs que escreviam em português e
espanhol passaram a utilizar símbolos como o @ para indeterminar o gênero. Hoje, em textos ácratas redigidos
nestas duas línguas, prepondera o uso do x para substituir as vogais que determinam marcações de gênero.
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“antinaturais”. Na imprensa anarquista contemplando aqui periódicos escritos em português
e espanhol era comum utilizarem os mesmos termos das autoridades como “crimes sexuais”,
“pederastas”, “tribades”, “invertidos”, “sodomitas”, “libertinos” e, mais raramente,
“homossexuais” palavra que era também utilizada por quem tinha uma atitude distinta,
positiva, em relação a essas outras formas de se relacionar. Vale lembrar que a
homossexualidade foi criada pelo saber científico, médico-psiquiátrico, no final da década
1860, junto do seu espelho opositor binário, a heterossexualidade.
X anarquista Piro Subrat (2019), em sua extensa pesquisa Invertidos y rompepatrias:
marxismo, anarquismo y desobediencia sexual y de género em el estado español (1868-1982),
sublinha três formas recorrentes de tratar essa questão, conforme apresentadas nos jornais
ácratas publicados na Espanha desde as décadas finais do século XIX até a derrocada da
Revolução. Para Subrat, a maioria dos escritos a este respeito considerava a homossexualidade
como uma doença e pretendia curá-la. Havia também muitos textos que a classificavam como
um mal social, o qual seria extirpado pela revolução. Neste caso, divergiam xs que julgavam
ser uma decisão “pervertida”, “promíscua” grande parte das vezes vinculada à burguesia, à
nobreza e seus “vícios” – e xs que consideravam que xs homossexuais eram “vítimas” muitas
vezes interpretados como decorrentes das instituições disciplinares que esquadrinhavam os
“dois sexos”, pelo confinamento em escolas, conventos e monastérios, internatos, prisões,
hospícios e quartéis. Ainda assim, em meio à multiplicidade que formas à anarquia,
encontravam-se outros tons e jeitos de lidar, que afirmavam a liberdade de cada umx de viver
e experimentar suas relações amorosas e sexuais.
Na Espanha, nos anos 1930, o médico ácrata Félix Martí Ibáñez se dedicou ao estudo
da homossexualidade e distinguiu o que denominava “homossexualidade-inversão” de
“homossexualidade-perversão”, procurando dar estatuto científico aos dois discursos
difundidos com maior ênfase nos jornais libertários do período. De acordo com às teses
psicanalíticas, Ibáñez defendia uma bissexualidade inata dos seres humanos, a qual,
“naturalmente”, deveria “evoluir” para heterossexualidade. Para ele, todo um conjunto de
saberes médico-psi poderia ser acionado para “curar” esta doença e/ou conduzir por meio de
uma “educação sexual infantil reta” (IBÁÑEZ apud SUBRAT, 2015, p. 52). Chama atenção
que, não somente em Ibáñez mas em outrxs anarquistas, havia uma invero e a manutenção da
crença em uma verdade: “a medicina, como a religião que em outros tempos salvaria a alma,
reorientaria a psiquê do indivíduo descarrilhado e ‘desviado’” (CLEMINSON, 2008, p. 184).
Até mesmo entre xs libertárixs que compuseram a Liga Española por la Reforma Sexual
grupo que existiu em outras localidades europeias a homossexualidade não era aceita. A
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anarquista Hildegart Rodríguez, uma das fundadoras da Liga, escreveu em 1933, “o
homossexual é ordinário, vaidoso, melancólico, moroso, hostil ao mundo, um tanto poeta,
predisposto à exaltação religiosa e às alucinações. [...] a maioria deles o é por desvio congênito
(RODRÍGUEZ apud SUBRAT, Op. Cit., p. 79). Em outro texto, anos antes, ela demarcou o
problema: “a homossexualidade representa por si um atentado a uma das garantias da vida
do homem” (IDEM). Como Ibáñez, ela propunha uma educação sexual rígida das crianças nas
Escolas Modernas, onde meninas e meninos estudavam juntxs em salas mistas. Nas páginas de
impressos ácratas, algunxs chegavam a defender intervenções médicas como o transplante de
testículos “héteros” em homens “homo”, tal qual proposto pelo médico Serge Voronof. Em
pouco tempo, puderam rever seu autoritarismo mal disfarçado após a ascensão Nacional
Socialista na Alemanha e as notícias das inúmeras torturas praticadas por médicos nazistas que
faziam de presxs também aquelxs identificadxs como homossexuais cobaias de seus
experimentos, castrações e administrações hormonais forçadas.
Xs anarquistas que postulavam as práticas não-heterossexuais como “vícios” tendiam a
igualá-las ao alcoolismo, à “opiomania” e “cocainomania”, bem como outras “aberrações” que
tangenciavam o âmbito jurídico-policial como o “necrosadismo” (necrofilia), a “bestialidade”
(zoofilia), a “pederastia” (pedofilia). Apoiando-se no saber médico, condenavam também a
masturbação; a feminina que era tida como propensão ou estímulo “safista” (lésbico). Segundo
Subrat, La Revista Blanca era o periódico mais beligerante contra estas formas de prazer,
fundado em 1889 por Soledad Gustavo e seu companheiro, Federico Urales. Até 1905 foi,
possivelmente, a revista que mais publicou escritos sobre a questão sexual e o amor livre em
território espanhol. Soledad Gustavo foi uma ferrenha entusiasta dessas relações livres, por ela
entendidas como “a verdadeira elevação do sentimento digno e puro que devem professar dois
seres de sexo diferente” (GUSTAVO apud SUBRAT, p. 28). O casamento monogâmico,
chancelado e eternizado pelo Estado e pela Igreja, era professado nas páginas da Revista Blanca
como uma das causas do “tribadismo e da pederastia”, assim como as instituições disciplinares
de confinamento. Considerava-se a “obra de invertidos, verdadeira aberração intelectual de
seres que odeiam a Natureza” (CAMBA apud SUBRAT, p. 29). Nos anos 1920, a direção do
periódico passou para a filha do casal, Federica Montseny, que dava continuidade: “ainda que
não deva haver diferenças entre os humanos, não é possível considerar iguais um trabalhador
perseguido por suas opiniões e um batedor de carteiras ou um homossexual” (MONTSENY
apud SUBRAT, p. 57).
Por vezes, alguns textos sequer buscavam uma justificativa racional, supostamente
científica ou dita natural, e partiam para ofensas que acabavam autoritariamente por
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esquadrinhar os limites do que pretendiam definir como o amor livre. Tal como se nota em um
trecho de Mariano Gallardo, publicado em Iniciales, no ano de 1934, “só um canalha ou um
imbecil [...] é capaz de confundir a liberdade com o vício, a beleza diamantina do amor
anárquico, livre, com o esterco pestífero dos vícios sexuais” (GALLARDO apud SUBRAT, p.
69).
Em uma pesquisa no arquivo da imprensa anarquista na Argentina, olhando para as
publicações de 1880 a 1930 e atenta às experiências de liberdade sexual e emancipação das
mulheres, em Amor y anarquismo: experiencias pioneras que pensaron y ejercieron la libertad
sexual (2017), a socióloga Laura Fernández Cordero mostra que por lá a homossexualidade
também era majoritariamente execrada, com tratos semelhantes aos que Subrat destacou na
imprensa ácrata na Espanha. Ela destaca das páginas do arquivo pesquisado que “às vezes, a
homossexualidade funcionava como um limite corretivo para as versões mais radicais do amor
livre” (Op. Cit., p. 131). No importante periódico anarquista em circulação por longo período
em terras portenhas, La Protesta, explicitava-se esse temor: “se consideramos natural e lógica
a poligamia, quem poderá opor-se a consumação do incesto e da sodomia? Ninguém!!(LA
PROTESTA, n. 1431, 1908 apud CORDERO, Idem).
Em 1895, no editorial do número primevo de La Libre Iniciativa, declarava-se: “será
um periódico altamente batalhador, combaterá os ‘hermafroditas’ e os ‘pederastas’ do
anarquismo” (LA LIBRE INICIATIVA, n. 1, 1895 apud CORDERO, p. 130). Um ano depois, o
editorial de El Perseguido, respondia à pergunta: será que a anarquia faria os “imorais”
desaparecerem? Considerava que “com o amor livre, a destruição das preocupações sociais e a
lucidez dos puros sentimentos naturais, estes costumes não mais serão contraídos” (EL
PERSEGUIDO, n. 98, 1986 apud CORDERO, p. 134). Compreendiam “estes costumes” como
“vícios”, decorrências sociais. Contudo, enfatizavam um tom compreensivo, caso tais hipóteses
não se comprovassem no futuro, “isto não deixará de ser uma anomalia, mas ninguém dirigirá
seus olhares, nem estigmatizará, desde que sempre fique em conformidade recíproca de quem
a pratique” (IDEM, p. 135).
Nas páginas da imprensa libertária produzida no Brasil, a questão da homossexualidade
era praticamente inexistente. É o que mostra a tese As sexualidades d’ plebe: sexualidade, amor
e moral nos discursos anarquistas do jornal A Plebe (1917-1951), de Ana Claudia Ribas
(2015). Ela sublinhou uma rara passagem sobre essa temática em um dos jornais ácratas de
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maior circulação e de mais longa existência no Brasil, A Plebe
3
. Em 1934, o anarquista Campos
de Carvalho, ao confrontar a valoração da virgindade das mulheres, comparou: “uma jovem,
por exemplo, que se entrega a amores lésbicos com uma companheira, sem o perigo de haver
ruptura do hímen, será para nós mais ‘pura’ do que a outra que já trouxe do berço a ausência da
membrana, sem conhecer relações sexuais?” (CARVALHO apud RIBAS, 2015, p. 179).
Apesar de breve, neste trecho, nota-se que o tom do autor difere dxs demais citadxs
anteriormente, sem que se entreveja uma conotação de juízo moral ou científico.
Também ao pesquisar no arquivo da imprensa libertária, em Do cabaré ao lar: a utopia
da cidade disciplinar e a resistência anarquista Brasil 1890-1930, a historiadora Margareth
Rago (2014) analisou como xs anarquistas lidavam com as questões que emergiam do campo
moral. Segundo ela, “três principais núcleos de problematização se evidenciam quando os
anarquistas abordam questões que procuram definir uma nova economia do desejo: a
emancipação da mulher; as relações afetivas e a moral sexual; e as práticas condenáveis”
(RAGO, 2014, p. 129). Contudo, não aparecem debates enfáticos e calorosos sobre a
homossexualidade, tal como ocorria em terras vizinhas e do outro lado do Atlântico, na
Espanha. As práticas condenáveis pela moral anarquista majoritária eram referentes à
prostituição e à masturbação, ao álcool e ao fumo, ao futebol e ao carnaval. Essas práticas eram
alvo de uma moral anarquista por serem tidas como aquilo que afastaria o operário da luta pela
revolução social, que também era recoberta de certa moralidade quando pretendia implementar
uma nova sociedade.
Em alguns excertos de campanhas contra o carnaval, redigidos em A Plebe, é possível
ver nas entrelinhas a condenação da homossexualidade, como em dois textos publicados em
1919. O primeiro, situava esta festa como um “regresso das devassidões da Idade Média, de
revivescência das devassidões usadas outrora em Sodoma e Gomorra” (A.C. apud RIBAS,
2015, p. 195); o segundo, reclamava contra a “festa de loucuras [...] homens vestem-se de
mulheres, as damas se travestem” (MARINHO apud RIBAS, p. 197). Tais críticas, ainda que
não reproduzam o discurso médico ou legal acerca da homossexualidade, e que nem mesmo
abordem essa questão escancaradamente, repercutiam a moral vigente.
Todavia, não havia uníssono e de se enfatizar que o modo como ácratas se dispuseram
a lidar com a questão da sexualidade foi o mais franco e radical à época. Em 1929, no número
3
Periódico anarquista e anticlerical fundado por Edgard Leuenroth e Fábio Luz em meio à Greve Geral de 1917.
Foi publicado até 1951 com algumas interrupções por conta de perseguições e censuras pelo governo. Em suas
páginas era possível encontrar notícias de anarquistas por todo o planeta, artigos de diferentes procedências e
vertentes, e anúncios de festas e das Escolas Modernas de São Paulo.
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75 da renomada revista libertária Estudios, foi traduzido do holandês para o espanhol La
ambisexualidad”, de Johannes Rutgers. Cinco anos depois de sua morte, o breve artigo foi
traduzido de forma incógnita para a revista, assinado por F.O.. Quase um século depois, em
2013, “La ambisexualidad” foi reproduzida no fanzine
4
Anarqueer, com a indicação de que foi
“o primeiro texto proveniente do anarquismo ibérico a favor da dissidência sexual” (Anarqueer
#4, p. 30). Ainda que chame atenção a tradução sem autoria declarada, essa publicação em uma
revista de ampla circulação e prestígio entre libertárixs, afirmou-se na contramão da tendência
majoritária anarquista
presente e recorrente na própria revista , que condenava estas práticas afetivas-sexuais.
Desde a Holanda, o dico anarquista Johannes Rutgers procurou mostrar como a
restrição de se relacionar somente com pessoas do “sexo oposto” se conectava ao ciúme e ao
temor excessivos da concorrência entre aquelxs do “mesmo sexo”. Supunha que, ao aceitarem
e se abrirem para a homossexualidade, a solidariedade se ampliaria. De forma muito própria,
ele explicitou a indissociabilidade entre hetero e homossexualidade; “frequentemente sentimos
compaixão pelos homossexuais, como se eles estivessem limitados à eleição de seus afetos
íntimos, mas esquecemos que para os heterossexuais a mesma questão se manifesta”
(RUTGERS, 2013, p. 31). Assim como foi perspicaz ao mostrar a fragilidade da pretendida
rigidez binária entre homens e mulheres, afirmando: “há em cada um de nós uma mescla de
dois sexos exatamente como somos provenientes de uma mescla dos dois. O tipo puramente
macho e o tipo exclusivamente fêmea são ideais extremos de uma infinita sucessão de estações
intermediárias” (IDEM, p. 32). Dentre estas estações, segundo ele, os homossexuais eram um
dos “fenômenos de transição mais importantes entre os dois tipos extremos que temos o
costume de considerar normais” (IBIDEM). Argumentou que as crianças, em seus primeiros
anos, não mostram nenhuma preferência quanto ao sexo das pessoas que as agradam, tampouco
apresentam características sexuais “bem determinadas” (IBIDEM, p. 33).
É salutar sublinhar que, neste rápido escrito, redigido tempos antes de sua publicação
original ao final dos anos 1920, anunciava como a sexualidade e o que, desde meados da década
1950 chama-se gênero, são indissociáveis. Rutgers sinalizava para o que caracteriza a própria
definição de gênero
5
, ressaltando não se tratar de um determinismo biológico, ao dizer que “no
4
“Espécie de caderno de baixo-custo, ligado ao movimento punk e anarquista, com o principal objetivo de veicular
textos informativos e literários que podem e devem ser reproduzidos em vias de aumentar sua circulação fora do
mercado editorial comercial. Muitos textos são traduções ou ensaios críticos publicados sem consentimento
dos/as autoras e refletem escolhas ético-políticas pelo anonimato ou pela negação da propriedade intelectual”
(SOUZA, 2016, p. 27).
5
O termo foi cunhado pelo psicólogo John Money, em meados de 1950, nos Estados Unidos. Resumidamente,
pode-se dizer que a palavra gênero passou a ser empregada para definir um “papel social” ou uma “identidade
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caráter pessoal de cada homem, encontram-se os vestígios de algo que podemos denominar
feminino e masculino em cada mulher” (IBIDEM).
EM OUTRAS LÍNGUAS
Em Berlim, no ano de 1896, Adolf Brand editou e publicou o primeiro número do
periódico Der Eigene (O Único), que compilava textos e manifestos anarquistas, prosas,
poesias, conteúdo artístico e fotografias de homens nus. Der Eigene é o primeiro periódico
“homossexual” do qual se tem registros até hoje. Todavia, são raras as pesquisas e análises a
seu respeito. Foram poucas as cópias remanescentes às fogueiras do Nacional-Socialismo que,
logo em 1933, destruíram praticamente todos os volumes encontrados. Perseguido, Brand
encerrou a publicação e as atividades a ela vinculadas, especialmente a Gemeinschaft der
Eigenen (Comunidade de Únicos), fundada por ele em 1903. Era um grupo exclusivamente de
homens, voltado às artes e à literatura, marcado por grande influência da cultura grega antiga.
À destruição deste arquivo pela incineração nazista, soma-se um evidente pouco interesse pelo
jornal vinculado à temática que, após os primeiros anos predominantemente ácrata, foi se
tornando mais voltada às “teorias masculinistas sobre o sexo, sexualidade e eugenia”
(STEWART, 2019, p. 87). Adolf Brand exaltava o status superior dos homossexuais
masculinos, uma “elite crítica da sociedade moderna” (BRAND apud STEWART, 2019, p. 89).
Por meio da divulgação de obras de arte e literatura, acreditava poder demonstrar a
“superioridade dos homossexuais na sociedade alemã” (STEWART, 2019, p. 89). O anarquista
John Henry Mackay escrevia ao Der Eigene sob o pseudônimo Sagitta. Seu primeiro poema de
boy-love apareceu nessas páginas em 1905. Foi ele quem recuperou a obra de Max Stirner, O
único e sua propriedade, e a difundiu com a publicação de Max Stirner. Sein leben und sein
werk (1898). Mackay praticava amor livre com outros homens e se distanciou de Brand
precisamente por se opor ao culto masculinista, por vezes imbricado em misoginia
(KENNEDY, 2002).
O culto ao masculino, acrescido do naturismo e da valorização de corpos fortes e viris,
em uma Alemanha às vésperas do governo Nacional-Socialista, parecia estar em um limiar
desconcertante de proximidade com a professada vanglória da superioridade do homem ariano.
psicológica” que não necessariamente correspondem ao “sexo biológico”, ao sistema reprodutivo e à genitália
possíveis de serem enquadrados como exclusivamente masculinos ou femininos. Há uma longa exposição sobre
a criação do gênero no livro Testo junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica (2018) de Paul
B. Preciado.
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Na negação de encarar tamanha nebulosa, a existência e a obra de Adolf Brand são praticamente
desconhecidas ou relegadas intencionalmente ao esquecimento por anarquistas. Por sua vez,
ativistas LGBTQIA+ também ignoram Brand e o legado da primeira revista “homossexual”.
Evitam enfrentar o culto ao masculino e suas conexões com o horror de regimes autoritários,
notadamente o nazista. Os efeitos de ambas as tentativas de apagar essa história, tanto para
anarquistas quanto para minorias sexuais e de gênero, são desastrosos. Permitem a continuidade
da valorização do masculino, da virilidade, da macheza, recrudescendo o binarismo de gênero
em ambos os espaços, e dão brechas para o avanço do fascismo também entre cidadãos
LGBTQIA+
6
.
Antes da devastação promovida pelas tropas nazistas, havia uma efervescência muito
particular neste território acerca da sexualidade. Adolf Brand e a Comunidade de Únicos se
aproximavam de uma abordagem social da homossexualidade. Para eles não se estava no campo
do domínio científico, fosse para estigmatizar ou amparar a homossexualidade como uma
doença ou herança congênita, fosse para defender sua naturalidade e normalidade. Era o que
argumentava o médico Magnus Hirschfeld ao apregoar o caráter científico dessa “condição
natural”. Frente ao evidente fracasso das tentativas médicas, como a castração e o implante de
testículos “hetero”, Hirschfeld constatou e propagou que inexistia cura, pois não se estava
diante de uma doença. Em 1919, ele fundou o Institut für Sexualwissenschaft, pioneiro nos
estudos sexológicos. Foi lá, sob a sua assistência, que se realizaram as primeiras cirurgias de
“mudança de sexo” das quais se têm parcos registros. Em 1933, uma das primeiras operações
nazistas foi saquear e destruir o Instituto e queimar seu arquivo. Anos antes, em 1897,
Hirschfeld criou o Wissenschaftlich-humanitäres Komitee (Comitê Científico Humanitário
CCH) voltado à defesa científica da homossexualidade na luta contra sua criminalização. A
iniciativa repercutiu pelo planeta com a fundação de comitês locais, como nos Países Baixos,
onde Johannes Rutgers batalhou pela liberação sexual, considerando as práticas homo em
igualdade.
Em 1923, a anarquista Emma Goldman escreveu uma carta para Magnus Hirschfeld,
na qual evidenciou a importância de seu encontro com sua obra. Ela teve contato com as suas
contribuições e de outros sexólogos como Havelock Ellis, Edward Carpenter e Krafft-Ebing
quando viajou à Europa para estudar enfermagem. Nesta época assistiu palestras de Sigmund
Freud que também foram decisivas para sua compreensão sobre a sexualidade. “Desde então,
6
Essa discussão aparece nos livros A arte queer do fracasso (2020) de Jack Halberstam, e Terrorist assemblages:
homonationalism in queer times (2007) de Jasbir K. Puar, onde a autora desenvolve o conceito de
homonacionalismo.
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sempre defendi, tanto em minhas conferências como em meus artigos, aquelxs cujos
sentimentos e necessidades sexuais têm uma orientação distinta” (GOLDMAN, 1923, p. 02),
afirmou a libertária. Contudo, Goldman não se restringia a replicar os estudos e teses científicos,
ela propagava sua leitura ácrata dessas questões. Antes mesmo de ter esse conhecimento teórico
sobre sexualidade, ela foi uma das mais comprometidas na luta contra a prisão do escritor
libertário Oscar Wilde, condenado pela justiça britânica a dois anos de prisão e a trabalho
forçado, em 1895, por “indecência grave” e “sodomia”. Nesta mesma carta, ela redige o porquê
de, mesmo antes e independente dos saberes específicos, lançar-se na batalha pela liberdade do
poeta: “como anarquista meu lugar sempre foi ao lado dxs oprimidxs. Todo o julgamento e a
sentença de Oscar Wilde me surpreenderam, parecendo-me um ato de horrível injustiça e de
repugnante hipocrisia por parte da sociedade que o condenava” (IDEM).
Desde a virada para o século XX, Emma Goldman foi uma das pessoas mais incisivas
no combate à perseguição e condenação de qualquer ato sexual exercido livre e
consensualmente. No ocaso da Primeira Guerra Mundial, a anarquista realizou inúmeras
conferências e leituras coletivas em cidades estadunidenses acerca da homossexualidade, da
liberdade no amor, da maternidade voluntária e contra a guerra. Em suas anotações sobre sua
própria existência, Vivendo minha vida (2015), Goldman escreveu sobre os encontros com
pessoas não-heterossexuais e as conversas que desdobravam de suas falas públicas. Tocada pela
proximidade com o “ostracismo social do invertido”, ela afirmou o enfrentamento desta
situação como uma luta ácrata: “para mim, o anarquismo não era apenas uma mera teoria para
o futuro: era uma influência viva para nos libertar das inibições, internas e externas, e das
barreiras destrutivas que separam o homem do homem” (GOLDMAN, 2015, p. 404). Mais de
uma vez, certxs anarquistas tentaram censurá-la e coibi-la a não tratar de temas “antinaturais”.
Argumentavam que o anarquismo era pouco compreendido, malvisto, e que atrelá-lo às “formas
sexuais pervertidas” era desaconselhável. A libertária jamais obedeceu aos clamores destxs
ácratas. Pelo contrário, dizia sem titubear: “a censura por parte de meus camaradas tinha o
mesmo efeito sobre mim que a perseguição policial dava-me segurança, e me tornava mais
determinada a lutar por toda vítima, fosse de um mal social, fosse do preconceito moral”
(IDEM, p. 403).
A prisão de Oscar Wilde não repercutiu somente incendiando as lutas travadas por
Emma Goldman. Também nos Estados Unidos, os libertários Alexander Berkman, Benjamin
Tucker e John William Lloyd se insurgiram contra a moral puritana e a pretensão ao governo
do sexo, das paixões e amores, pouco importava qual o “sexo” da pessoa ou qual a prática
sexual vivenciada. Segundo Terence Kissack (2008), autor de Free Comrades: anarchism and
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homosexuality in the United States, 1895-1917, os efeitos da condenação do escritor entre
anarquistas que viviam no país foram decisivos para “a defesa da homossexualidade [como]
um tópico de discussão persistente. Nenhum outro movimento político do período se engajou
com esforço similar para lidar com o lugar legal, moral e social do desejo pelo mesmo sexo”
(2008, p. 67). Kissack enfatiza a importância das batalhas anarquistas pela liberdade das pessoas
não-heterossexuais como uma procedência das lutas do movimento homossexual nos Estados
Unidos da América. Xs anarquistas se recusaram a deixar a voz de Oscar Wilde “ser silenciada
e trabalharam para garantir que outrxs não partilhassem seu destino cruel. [...] O trabalho dxs
anarquistas sex radicals foi único e valioso” (IDEM, p. 188).
AMOR RADICALMENTE LIVRE
Se algunxs anarquistas se valiam da defesa do amor livre como um equivalente de
elevação moral, esbarrando em ideais de pureza quase anedóticos do paraíso cristão; outrxs
tentavam colocar freios e governar o amor livre, temerosxs de que acarretassem “vícios”
sexuais, homossexualidade, prostituição, objetificação da mulher, demolição da família e do
parentesco tal qual o conheciam. Outrxs ainda, dedicaram-se a repensar o amor livre,
transformando radicalmente seus costumes, práticas e modos de se relacionar.
Émile Armand foi um libertário apaixonado, lançou-se a revolver costumes e
anarquizou anarquistas com suas análises e propostas de experimentações radicais do amor
livre. Sua noção de camaradagem amorosa foi atacada por libertárixs em todo o planeta, ao
longo das primeiras décadas do século XX, como uma “libertinagem”, “incitação à
prostituição”. Alguns jornais traduziam seus textos censurando passagens específicas, assim
como faziam, anos antes, com trechos de Le nouveau monde amoureux (1816) de Charles
Fourier. Até o presente, no Brasil, a obra de Armand e Fourier são muito pouco lidas e
reverberadas. Em 1935, o jornal Iniciales, circulou pela Espanha o texto “Lo que queremos los
anarcoindividualistas” de Émile Armand. Associando o anarcoindividualismo à camaradagem
amorosa, ele foi direto ao afirmar que se voltavam a combater “o ciúme sentimental-sexual, a
propriedade corporal e o exclusivismo no amor [...] propagam a tese da ‘camaradagem
amorosa’. Reivindicam todas as liberdades sexuais (desde que não violentas, de dor, engano ou
venalidade)” (ARMAND apud SUBRAT, 2015, p. 60). Em Libertinaje y prostituición: grandes
prostitutas y famosos libertinos: influencia del hecho sexual en la vida política y social del
hombre, traduzido e publicado na Espanha em 1932, Armand apresentou uma pesquisa da
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prostituição e da homossexualidade, confrontando a condenação e perseguição de práticas
sexuais que eram rechaçadas também por libertárixs.
Conterrâneo de Armand e também anarcoindividualista voltado às questões amorosas,
Han Ryner elaborou suas análises e contribuições acerca do amor livre como amor plural. Sua
obra também não circula muito em terras brasileiras, mas rendeu uma conversação densa com
a libertária Maria Lacerda de Moura que, no final dos anos 1920, escreveu Han Ryner e o Amor
plural. É possivelmente a primeira obra, extensa e de fôlego, a lidar com o tema do amor livre
publicada em português e redigida no Brasil. Em 1934, Ryner escreveu um verbete para a
palavra amor, publicado na Enciclopédia Anarquista de Sébastien Faure.
Na linguagem mais corrente, amor designa a afeição por um ser cujo contato
sexual é desejado, sonhado ou experimentado. [...] Definição excessivamente
estrita e que resolve, com um dogmatismo sorrateiro, uma grave questão. Quer
o fato agrade, quer não, existiram e continuam existindo amores entre pessoas
do mesmo sexo. Várias legislações condenam o amor homossexual, que é
recebido com zombaria ou severidade pela opinião pública. [...] Será que isso
acontece por que essa forma de amor seguramente evita as armadilhas do
gênio da espécie? [...] Ou ainda por que as religiões modernas condenam o
prazer, lhe concedendo alguma tolerância caso ele contribua às supostas
finalidades de Deus ou da Natureza? Nesse domínio, o anarquista obedece a
seus gostos pessoais e nunca censura os gostos inocentes diferentes dos seus.
Ora, ele chama de inocente o que não faz mal a nenhuma pessoa real. Quanto
às famosas “pessoas morais”, ele as considera, dependendo do caso, com a
mais fria indiferença ou a mais legítima hostilidade. [...] Hoje não se usam
mais fogueiras. Por vezes ainda se mata sorrateiramente. (RYNER, 2012, p.
30-31).
Em plena Revolução Espanhola, em março de 1937, Lucía Sánchez Saornil, uma das
instauradoras da Mujeres Libres
7
, escreveu ao jornal Juventud Libre, confrontando a
permanência e continuidade do casamento entre libertárixs na revolução. À época, nos ateneus
e sindicatos, casais recebiam certidão de casamento em cerimônias realizadas por seus
camaradas. Questionou enfática: se passamos anos afirmando que para a união de dois seres
bastava o livre consentimento de ambos e que o certificado matrimonial não era outra coisa que
um contrato de venda, que explicação daremos à estas absurdas cerimônias [...]?” (SAORNIL,
2015, 76). Para ela, assim reproduziam o matrimônio burguês abençoado pela Igreja e
outorgado pelo Estado, pois da mesma maneira exerciam uma “intromissão pública no ato
carnal” (IDEM, 77). Além dos alertas explícitos, nota-se no modo de escrever da anarquista,
7
Durante a Revolução Espanhola, foi fundada a Federación Mujeres Libres voltada às mulheres e com o objetivo
de expandir as relações e práticas de liberdade entre elas. De 1936 a 1939, publicaram a revista Mujeres Libres.
Ver: RAGO, Margareth; BIAJOLI, Maria Clara Pivato. Mujeres libres da Espanha: Documentos da Revolução
Espanhola. Rio de Janeiro: Achiamé, 2007.
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certos detalhes que deixam nas entrelinhas a defesa do amor livre também entre pessoas do
“mesmo sexo”.
Saornil teve uma relação de vida com América Barroso. Eram amigas. Após sua morte,
em 1970, muitas especulações sobre uma provável “lesbianidade” foram suscitadas por
pesquisadorxs, anarquistas não-heterossexuais, lésbicas e feministas. Acrescenta-se nas
“suspeitas” o fato de a libertária ter publicado poemas dedicados a mulheres sob o pseudônimo
de Luciano de San Saor, e dela trajar vestimentas consideradas masculinas. Aventou-se
polêmica e bochichos. Aqui, novamente, anarquistas e LGBTQIA+ (especialmente as lésbicas)
se distanciam, mas produzem efeitos similares. Xs anarquistas ignoram e tratam com
desimportância o fato de algunxs libertárixs não serem heterossexuais, resultando em histórias
que parecem sempre de ácratas heterossexuais mais esclarecidxs e simpáticxs ou aliadxs da
causa LGBTQIA+. Já as lésbicas e outras minorias sexuais intentam delimitar, forçar uma
categorização e fazer uma pessoa morta sair do armário. Em ambos os casos, permanecem
incólumes em seus lugares, não se abrem às histórias e existência livres, capazes de nos fazer
repensar e nos revirar. Como disse Saornil: “a Revolução deveria começar em nós próprios, e
se não o fazemos, perderemos a Revolução social, nem mais, nem menos, nossa mentalidade
burguesa não fará senão revestir os velhos conceitos com roupas novas, conservando-os em
toda sua integridade” (IBIDEM).
SEXO SOLTO E REVOLTA
Se em relação à revolução cabiam alertas e discussões como a levantada por Lucía
Sánchez Saornil, a revolta é inequívoca: começa em cada umx. Eclode em si e contra si mesmx,
antes de tudo. Aproximando-nos agora das décadas finais do século XX, por meio da revolta,
explicita-se a mútua agitação entre anarquia e modos outros de se relacionar amorosa e
sexualmente. Neste recorte temporal, especialmente após 68, uma longa bibliografia voltada
aos estudos dos movimentos homossexuais e de liberação sexual. De modo que opto por
adentrar no emergente movimento homossexual no Brasil que, diferente da Argentina, da
Espanha e de tantos outros países, não teve uma Frente de Liberação Homossexual, mas cuja
irrupção foi atravessada pelos anarquismos. Tampouco proporei uma longa incursão no
movimento estadunidense, cujas histórias e desdobramentos são mais amplamente conhecidos,
indo diretamente à eclosão dos embates queer no interior do próprio movimento de gays e
lésbicas.
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Em 1978, em plena ditadura civil-militar brasileira, foi impresso o primeiro número do
jornal Lampião da Esquina que, editado entre as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro,
propunha afirmar a luta homossexual e aglutinar forças nesse sentido. Com tiragem regular e
circulação amplificada, ao longo de quatro anos, o Lampião teve 37 números, dentre os quais é
possível encontrar afirmações anarquistas e ecos libertários, ainda que não fosse um jornal
ácrata. Na edição n. 26, foi veiculado um trecho do livro Um ensaio sobre a revolução sexual:
“o corpo humano, por sua própria natureza, é receptivo a todas as gamas de estímulos sexuais:
nem mesmo bissexual, mas polissexual” (GUÉRIN, 1980, p. 11). Nele, Daniel Guérin
sublinhou que essa maneira de lidar com o sexo e as relações amorosas fora apresentada por
Charles Fourier há um século, e por anarquistas décadas antes, da eclosão de 68. Esse excerto
veio acompanhado de um breve texto de João Silvério Trevisan, um dos principais articuladores
do Lampião. Ele conheceu o livro de Guerin quando viveu um “impasse a três” com outros dois
homens: foi uma “leitura tão reveladora que me serviu de bálsamo e amenizou a frustração dos
meus amores pretenciosos” (TREVISAN, 1980, p. 11). Ainda que elogioso ao livro da “bicha
anarquista francesa” (IDEM), ele não deixou de evidenciar o estranhamento frente a proposta
marxista-libertária, inconciliável e improvável, de Guérin.
8
Havia, nesta passagem de Daniel Guérin e em outros textos libertários, um argumento
reiterado de que era preciso uma outra sociedade, “coletivista de caráter libertário” (GUÉRIN,
Op. Cit.) ou “verdadeiramente revolucionária” (BITTENCOURT, 1980, p. 08), para que a
homossexualidade fosse experimentada livremente. Consideravam que a sociedade de então era
incompatível com tais práticas “heréticas e subversivas” (IDEM). Poucos anos depois dessas
publicações, o próprio movimento homossexual indicaria ser essa uma análise equivocada, ao
encaminhar-se para reivindicações políticas inclusivas que se mostraram bastante profícuas ao
funcionamento da racionalidade neoliberal. O que se constata e confirma na atualidade.
Neste mesmo ano de 1980, uma carta assinada por E.B., defendeu a cama como
“epicentro da subversão; território possível da mudança” (1980, p. 19); uma maneira de romper
com o apego do movimento “aos valores e fórmulas consagradas e consolidadas pelo Poder”
(IDEM). Frente à moral revolucionária, a autoria incógnita clamava “pelo tesão e pelo prazer!”
(IBIDEM). O artigo “Pequenos gestos, pequenas revoluções”, de Marcus do Rio, situou-se em
8
Guérin sempre afirmou que as obras de Marx foram preponderantes em sua trajetória. Entretanto, na década de
1950, entrou em contato com os anarquismos pela leitura de L’en Dehors, periódico publicado por Émile Armand
nos anos 1920. Ali haviam escritos de Max Stirner, e sobre ele, que seriam vitais para os escritos posteriores de
Guérin. Além disso, o contato com a obra de Bakunin também foi decisivo para o deslocamento de perspectiva
de Guérin e para sua crítica ao stalinismo e ao leninismo. A partir do contato com anarquistas, ele propôs uma
síntese entre anarquismo e comunismo que seria o comunismo libertário. No Brasil, sua obra foi publicada pela
editora Germinal, coordenada pelo anarquista português Roberto das Neves.
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sentido semelhante: “não é a política e sim a autogestão desejante que constitui um meio e um
fim na realização de seus objetivos [...] experimentando agora o gozo do futuro” (RIO, 1980,
p. 9).
No mesmo período em que era editado o Lampião da Esquina, na Bahia era publicado
o jornal anarquista O Inimigo do Rei. De existência mais longeva que o Lampião, era uma
publicação anarcossindicalista, mas abordava uma profusão de temas que “ultrapassavam a
militância libertária nos sindicatos” (SIMÕES, 2011, p. 13). Apresentava reflexões e discussões
sobre liberação sexual e homossexualidade. Gustavo Simões pesquisou o arquivo deste jornal
ácrata e mostrou como, de maneira única, “atualizaram a crítica aos costumes, incorporando
novas maneiras de ver as práticas na atualidade, como o sexo e as drogas” (SIMÕES, 2007, p.
177). Textos como “Sexualidade anistiada”, “Homossexualismo & política”, “Trabalhadores
de todo o mundo, façamos uma grande suruba” avançaram para demolir as teses repressivas em
torno do sexo, propagando relações livres dos acordos monogâmicos e a “total liberação sexual
[...] todos trepam com tudo (com tudo mesmo, dos mundos vegetal, mineral ou animal)”
(PACHECO, 1980, p. 10). O desejo por e o prazer com pessoas do “mesmo sexo” eram
afirmados como “uma possibilidade erótica que está em todos” (O Inimigo do Rei, n. 4, 1979,
p. 16). Frente à política de abertura declarada pelo governo do militar Ernesto Geisel,
anarquistas “esculhambavam” (SIMÕES, 2007; 2011): “a cama é a revolução. Anistia para as
práticas sexuais. Ato sexual amplo, geral e irrestrito” (PACHECO, Op. Cit.).
A partir do sexo que é, em si, anárquico, por definição e ação” (O Inimigo do Rei, n.
18, 1984, p. 04), expandia-se uma força antissocial contra sua redução à procriação, como
recusa capaz de “derrubar os alicerces da sociedade” (IDEM). Família, herança, propriedade
eram colocadas em xeque, pois se “todo mundo fode com todo mundo, ninguém sabe quem é
pai de quem” (IBIDEM). Defendiam: “amor livre e liberdade sexual, o sexo apenas por prazer,
pelo prazer, com quem a pessoa quiser, onde e como quiserem. Todas as formas de foder são
válidas e legítimas, desde que, exatamente, propiciem prazer, da maneira mais ampla possível
a cada um de nós” (IBIDEM).
Enfrentava-se a sociedade e o governo civil-militar, assim como as pretensões
revolucionárias socialistas autoritárias e as promessas de melhoria dos partidos que se
projetavam no contexto da abertura política. Este aqui e agora, sem futuro, encontra
reverberações em queers anarquistas nas décadas recentes. Nos anos 1990, eclodiram pelas ruas
estadunidenses forças que se afirmavam queer, dando outro sentido a esta gíria pejorativa da
língua inglesa, empregada contra pessoas identificadas como homossexuais e estranhas.
Fazendo outro uso dessa palavra exclamavam um revide. Desdobravam-se de rupturas e
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embates diretos com o movimento de gays e lésbicas que, neste momento, fixava-se na luta por
direitos e inclusão; por assimilação à ordem. Um dos efeitos reativos à estigmatização da Aids
como “peste” ou “câncer gay”, na conduta de muitas pessoas não-heterossexuais, foi a
reprodução da heteronorma. Procuravam negar serem promíscuos, pervertidos, doentes,
contagiosos, espelhando o mesmo e anunciando um discurso que, em resumo, dizia: “somos
iguais a vocês”.
Um dos grupos que apareceu após divergências e rupturas na ACT UP (AIDS Coalition
to Unleash Power), quando a Coalizão se alinhava mais à política institucional, foi a Queer
Nation. Durante a Parada do Orgulho Gay em Nova York, em 1990, foi distribuído um panfleto
incógnito depois atribuído a este grupo –, no qual se via em letras garrafais: “queers leiam
isso!”. Diante da raiva da Aids e seus efeitos e de tudo que se explicitava a respeito da
sociedade, essas pessoas afirmavam que não queriam ser incluídas, fazer parte, tornarem-se o
mesmo. Um dos textos panfletados na ocasião foi “Um exército de amantes não pode perder”,
que exaltava a coragem dxs que “saíam do armário” pelo prazer, dispostxs a encarar “a rejeição
da sociedade” (QUEER NATION, 2016, p. 04). Semelhante aos escritos de libertárixs no
Lampião da Esquina e no Inimigo do Rei, incitava fazer de cada rua uma parte da nossa
cartografia sexual (IDEM). Encerrava sugerindo que cada umx deveria olhar sua vida e
enxergar o que nela há de melhor, o que há de torto (queer) e o que há de norma (straight) e
mandar a norma à merda! Lembrem-se que temos pouco, tão pouco tempo. E eu quero ser um
amante para cada um de vocês” (IBIDEM). Neste escrito, de autoria incógnita, definiu-se queer
como:
não é sobre um direito à privacidade; é sobre a liberdade de ser público, de
simplesmente sermos quem somos. [...] Ser queer significa levar um outro
estilo de vida. Não é sobre o mainstream, margens de lucro, patriotismo,
patriarcado ou sobre ser assimilado. Não é sobre diretores executivos,
privilégio e elitismo. É sobre estar nas margens, definindo nós mesmxs; é
sobre desfazer gênero e segredos, sobre o que está abaixo do cinto e, profundo,
dentro do coração. É sobre a noite. Ser queer é ser localporque sabemos que
cada uma de nós, cada corpo, cada gozo, cada coração e cú e genitália é um
mundo de prazeres esperando para serem explorados. Cada uma de nós é um
mundo de possibilidades infinitas. (IBIDEM).
REVOLTA ANARCOQUEER
Assim como a Queer Nation apareceu de diferenças inconciliáveis no interior da ACT
UP, dela também se ramificaram outros agrupamentos e estouraram rupturas. As Pink Panthers
foram uma delas. O grupo ganhou forma durante reuniões da Queer Nation e partiu para a ação
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separada como um contra-ataque às crescentes violências, no início da década de 1990, que
tinham como alvo pessoas não-heterossexuais. As panteras rosas-choque agiam nos lugares
onde havia maior incidência dessas violências para revidá-las. Moviam-se a partir da
exclamação “bash back!” (literalmente, bater de volta). Apesar da evidente influência dos Black
Panthers, andavam desarmadxs e propagavam táticas de autodefesa. Em bandos, vestindo
camisetas pretas com um triângulo pink invertido
9
e uma pata felina em seu centro, muitas
vezes, bastava suas presenças para afugentar os acossadores e violentadores de pessoas
identificadas como não-heterossexuais.
A prática do revide às violências se difundiu entre queers, expandindo-se do contra-
ataque aos acossamentos, ameaças, espancamentos e violências sexuais para o ataque direto
contra alvos precisos: organizações de direita e extrema-direita; grupos pró-vida e religiosos
que pregam a eliminação do diverso do gênero e da sexualidade; a polícia e demais forças de
segurança, incluindo entidades LGBTQIA+ assimilacionistas que sustentam e recrudescem
essa ordem social. Em meados dos anos 1990, queers trajando preto e rosa compuseram as Drag
March, evento apartado da Pride de Nova York que afirmou a luta antiassimilação como uma
festa estranha, desinteressante ao mercado, e com disposição para o enfrentamento certeiro da
propriedade, da ordem e da polícia. Na virada do século, deram outros tons aos blocos negros
como praticantes da tática black bloc durante as batalhas de rua que eclodiram em Seattle, em
1999, no que ficou conhecido como movimento antiglobalização. No início dos anos 2000, a
presença dos pink blocs nas Marchas Drag era impreterível.
Em 2008, às vésperas da campanha que culminou na eleição de Barack Obama,
anarcoqueers alastraram o revide como ataque. Interessava dar forma a uma presença queer
libertária e combativa durante as Convenções Nacionais Democratas e Republicanas,
confrontando diretamente as minorias esperançosas com a candidatura do democrata negro. Por
meio de fanzines e publicações digitais, sob o nome aglutinador de Bash Back!, propagaram
práticas libertárias e ações diretas, em suas formas múltiplas, visando incitar sua eclosão em
todas as localidades do território estadunidense. O objetivo era expandir o que agrupamentos
queers anarquistas vinham fazendo em algumas cidades, notadamente no conservador centro-
oeste do país. Agitava-se uma rede anti-hierárquica de levantes decentralizados que tinham
como objeto de luta comum atacar os inimigos dxs queers e as forças assimilacionistas do
movimento LGBTQIA+. Na introdução à edição estadunidense de Bash Back! queer
9
O triângulo invertido era a marcação feita em pessoas presas nos campos de concentração nazistas por serem, ou
parecerem, homossexuais. Passou a ser bastante utilizado pela ACT UP acompanhando seu slogan: “silêncio =
morte”.
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ultraviolence anthology, Fray Baroque, umx dxs organizadorxs do livro escancarou: “nossos
maiores inimigos são o Estado, a Igreja, os agressores de queers e o capitalismo. Contudo, os
inimigos que mais partem nossos corações são aqueles que subscrevem às noções puristas,
liberais e acadêmicas o que é ser queer radical” (BAROQUE; EANELLI, 2011, p. 30).
Ao mapear as diferenças entre queer e queer anarquista, a partir de um arquivo de
fanzines produzidos na Argentina, no Brasil e nos Estados Unidos, na dissertação Queer:
canteiro de obras (2016), Mauricio Marques de Souza analisou os escritos de grupos associados
à Bash Back!, ao Coletivo Coiote e à Revista Rosa, às Ludditas Sexxxuales e à Manada de
Lobxs. Para o pesquisador, mais do que falar em redes, coletivos, gangues ou organizações, é
possível pensar em manadas queer que
carregam as características de um agrupamento entre individualidades
singulares que se encontram circunscritas pela potência de um encontro sem
delimitações espaço-temporais. Percorrem trajetos não definidos em busca de
procurar algo ou simplesmente de não permanecerem parados. As manadas
não possuem contratos sexuais ou afetivos que as inserem nas lógicas do
familismo; abrem campos para encontros furtivos e desterritorializados onde
as minorias potentes abrem campo para explorar suas singularidades. Um
agrupamento que enquanto preserva seu caráter animalesco não possui
identidade solidificada e não pretende se fixar em modelos de organizações.
Entre seus membros cada um é uma própria manada. (SOUZA, 2016, p. 66).
Assim, olhando para essas manadas queer que desconhecem fronteiras e demarcações
espaço-temporais, encontramos em outros lugares o pulsar de práticas que, em língua inglesa e
no contexto estadunidense ganhariam o nome de bash back. No início de 2005, propôs-se a
realização, na Espanha, do encontro queer internacional Queeruption. Ocorreria na okupa Casa
Queer de Montgat, que foi invadida pela polícia poucos meses antes do evento. À época havia
mobilizações reativas do Foro Español de la Familia frente ao progresso da demanda pelo
casamento homoafetivo no Congresso. Distantes dessas negociações institucionais e sem
recuar, xs queers decidiram tomar um navio embarcado no município de L'Hospitalet del
Llobregat, próximo à Barcelona, para sediar o Queeruption. A polícia monitorou e acossou xs
participantes durante todos os dias do encontro. No último dia, quando várixs queers
irromperam pelas ruas contra o capitalismo rosa (pink money) e avançaram contra propriedades,
especialmente do empresariado gay barcelonês, a polícia reagiu com sua inerente violência. Xs
queers permaneceram nas ruas, em luta. A repercussão midiática e judicial condenou o
Queeruption e manteve 9 queers, que foram detidxs na ocasião, sob processo durante quatro
anos (Anarqueer #5, 2013). o casamento homoafetivo foi outorgado pelo Estado. Anos antes,
em 2001, também em Barcelona, a ORGIA (Organización Reversible de Géneros Intermedios
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y Artísticos) e a Assemblea Stonewall interromperam o fluxo das carrozas (carros alegóricos
de protesto) durante a Marcha del Orgullo. Desde o início do novo século, diversas manadas
queer apareceram na Espanha.
10
Assim como ocorreu nos Estados Unidos e em tantos outros
lugares. A luta afirmada pelas manadas que compunham a Bash Back! reverberava, sem
encontrar nela um ponto de origem, tendo em comum a revolta e o modo autogestionário de
lidar com as questões cotidianas.
Pessoas queer precisavam de moradia, autodefesa, coisas de boa qualidade e
prazer. Por consequência, ocuparam casas, comunizaram armas e treinaram
juntes, saquearam o máximo que puderam e organizaram festas, motins e
orgias. Nessa altura, qualquer luta que não implique imediatamente a própria
vida des participantes está fadada à irrelevância. (VÁRIOS AUTORES, 2020,
p. 93).
uma particularidade do contexto estadunidense que vale ser destacada, além da
antologia organizada por Baroque e Eanelli (2011; IDEM) e rapidamente disponibilizada
online, o arquivo produzido pelas manadas queer da Bash Back! especialmente composto por
zines se encontra facilmente acessível. No caso espanhol, além do Archivo
Transfeminista/Kuir, páginas de distribuidoras de zines e pequenas edições como a Peligrosidad
Social, também facilitam localizar os registros de histórias que costumam passar despercebidas
inclusive entre anarquistas.
11
É o que se pode notar ao acompanhar os sites de notícias libertárias
que buscam difundir planetariamente ações diretas tanto as insurrecionais quanto a escrita de
análises e reflexões ou a organização de encontros e eventos. uma desatenção, intencional
ou não, pouco importa, perceptível hoje e nas últimas décadas, com as batalhas e
experimentações anarcoqueer.
A Bash Back! buscava também “esculpir um espaço queer dentro das lutas anarquistas”
(IDEM, p. 86). Tegan Eanelli enfatiza que “grupos anarquistas predominantemente hétero
como o RNC Welcoming Committee e o CrimethInc” (IBIDEM, p. 87) recorrentemente
omitiam a presença anarcoqueer em suas publicações. Quando muito falavam em protestos
“estilo bash back”, “questões queer” ou reduziam essxs anarquistas a “anticapitalistas”. A
demarcação desta distinção estilística era tão sem fundamento que, quando as manadas Bash
10
No site do Archivo Transfeminista/Kuir uma cronologia do movimento de liberação sexual/LGTBQ na
Espanha. Disponível em: https://www.laneomudejar.com/archivo-transfeministacuir/. Acesso em: 28 jul. de
2022.
11
No site Monstruosas há um compilado de “7 Marchas dissidentes do Orgulho LGBT na América Latina” escrito
por Emma Álvarez Brunel e traduzido para o português pelo Grupo de Estudos Anarquistas Maria Lacerda de
Moura. É um raro registro dessas ações no contexto latino-americano. Disponível em:
https://monstruosas.milharal.org/2017/12/25/7-marchas-dissidentes-do-orgulho-lgbt-na-america-latina/. Acesso
em: 28 jul. 2022.
ISSN 2447-746X
DOI: https://doi.org/10.20888/ridpher.v8i00.17480
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Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 8, p. 1-27, e022016, 2022.
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Back! e os pink blocs irrompiam em manifestações maiores, como por exemplo os protestos
anti-G20, estes prestigiados grupos anarquistas diluíam xs anarcoqueers nos blocos negros.
Logo, não se tratava de afirmar diferenças, mas de apartar e uniformizar conforme o interesse.
Oscilando entre a omissão das ações queer libertárias, a redução a “causas menores” e/ou a
diluição dessa presença como homogeneização dxs anarquistas, resultava-se no apagamento
dessas existências e lutas. Xs próprixs ácratas empurrando xs outrxs ácratas para o ostracismo,
enquanto mantinham suas condutas retilíneas, adequadas à tolerância neoliberal da diversidade
e sua moral, e a “mentalidade burguesa” revestindo “os velhos conceitos com roupas novas,
conservando-os em toda sua integridade”, para relembrar as palavras de Lucía Sánchez Saornil
(Op. Cit.).
A Bash Back! enquanto essa proposta aglutinadora, propagadora e impulsionadora de
levantes queer insurretos existe desde o final de 2007, nos preparativos para as campanhas
presidenciais do ano seguinte, até 2010. Em junho de 2011, em Seattle, pelo terceiro ano
consecutivo, queers tomaram as ruas na Semana do Orgulho. Apareceram repentinamente por
volta da meia noite. O primeiro alvo foi uma concessionária da Ferrari. A polícia chegou e
viaturas foram atacadas. Pelos caminhos de fuga, caixas eletrônicos foram depredados.
Lançaram ao vento panfletos em que se lia em destaque: “não ao homonacionalismo, não ao
homomilitarismo, não à assimilação” (Anarqueer #3, 2012).
As ações diretas nas ruas prosseguem até o presente em vários cantos da América do
Norte. Em junho de 2014, na Cidade do México, manadas como AVE de México, Hombres
XX, Colectivo Poliamor, Migrantes LGBT, Colectiva de Gafas Violetas, Colectivo
Anarcoqueer, Maricas Antiespecistas compuseram o Bloque Rosa da Marcha do Orgulho. No
mesmo mês, em 2019, a Parada do Orgulho LGBTQIA+ de Hamilton, no Canadá, foi atacada
por grupos de extrema-direita neonazistas, supremacistas brancos, religiosos, pró-vida e
nacionalistas que tentaram interceptar a Parada. Estenderam um grande tecido preto ao longo
das vias por onde passavam as pessoas não-heterossexuais, enquanto proferiam ameaças,
especialmente contra queers, imigrantes e negrxs. Rápidxs, queers vestidxs de preto e com os
rostos cobertos por balaclavas e panos rosa choque, revidaram. Os fascistas e neonazistas não
acabaram com o evento e não tocaram em nenhuma das pessoas não-heterossexuais a quem,
minutos antes, buscavam intimidar e acossar. A polícia iniciou uma perseguição axs libertárixs
que culminou em processos judiciais (apenas contra queers anarquistas). Nos meses de junho e
julho de 2022, queers saíram pelas ruas dos Estados Unidos. No Texas, frente às crescentes
violências e ameaças de grupos de extrema-direita antiLGBTQIA+, afirmaram: “nós não
estamos com medo. Nós não vamos retroceder. We will bash back!”. Em Washington D.C.,
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cerca de 30 anarquistas invadiram uma marcha contrária à participação de pessoas trans em
competições e eventos esportivos de acordo com suas identificações de gênero. Ainda que em
número muito menor, xs queers encararam organizações de extrema-direita e de TERFs
(Feministas Trans Excludentes), tremulando a bandeira preta e rosa choque com o “A na bola”
anarcotrans (o A no círculo composto com os símbolos do feminino, do masculino e de ambos),
trouxeram um ruído incômodo ao evento reacionário.
12
No dia 23 de setembro de 2021, no centro da capital mexicana, machos vendedores
ambulantes, portando paus, canos e pedras, partiram para cima de queers que trabalham e
coexistem em La Tianguis Sexodisidente. Ao menos desde 2021, estxs libertárixs ocupam um
espaço público para vender os materiais que produzem, fazer música, dançar, comer juntxs, dar
aulas públicas e oficinas, armar festivais e apresentações artísticas, provocar encontros e
protestos. Imediatamente, e nos dias que se seguiram, manifestações tomaram este espaço e as
ruas ao redor. Monumentos aos colonizadores e chefes de Estado foram pintados com A na
bola” anarcotrans. Durante os protestos de rua, foram encapsuladxs pela polícia e não
esmoreceram.
13
Nos primeiros meses de 2022, frente às perseguições, prisões e tentativas de maior
criminalização de certxs manifestantes no México, incidindo preferencialmente sobre
anarquistas mulheres e queers, foi formada a Frente Radikal Sexodisidente. Composta por
pessoas trans, mulheres, marikas, lenchitudes, a Frente procura aglutinar forças e brindar com
“saúde e anarquia todas as monstruosas repudiadas pela sociedade binária”
14
. Em julho,
juntaram-se à Antipride com o intuito de tomar a primera linea da Parada do Orgulho na capital.
A Antipride começou a ganhar corpo em 2019 pela ação de pessoas da ala marica
15
mais radical
da capital mexicana, incomodadxs com o domínio do movimento LGBTQIA+ por “coletivos
12
“7 Marchas dissidentes do Orgulho LGBT na América Latina”. Disponível em:
https://monstruosas.milharal.org/2017/12/25/7-marchas-dissidentes-do-orgulho-lgbt-na-america-latina/;
“Steven Monacelli On How Communities In Texas Are Mobilizing Against Rising Far-Right And Anti-
LGBTQ+ Forces”. Disponível em: https://itsgoingdown.org/steven-monacelli-on-texas-mobilizing/;
“Anarchists Confront Far-Right And TERF Coalition In DC”. Disponível em:
https://itsgoingdown.org/anarchists-confront-terfs-in-dc/. Acessos em: 28 jul. 2022.
13
“Encapuchados causaron destrozos en Insurgentes durante protesta de comunidad LGBTQ+”. Disponível em:
https://www.infobae.com/america/mexico/2021/09/25/encapuchados-causaron-destrozos-en-insurgentes-
durante-protesta-de-comunidad-lgbtq/; “La Tianguis Sexodisidente”. Disponível em:
https://www.facebook.com/la.tianguis.disidente/. Acessos em: 28 jul. 2022.
14
“Frente Radikal Sexodisidente”. Disponível em: https://m.facebook.com/Frente-Radikal-Sexodisidente-
105181852097653/posts/?ref=page_internal&mt_nav=0. Acesso em: 28 jul. 2022.
15
Termo muito recorrente na produção queer latino-americana. Neste contexto, seu significado não é restrito aos
homens gays o que, no Brasil, pode-se traduzir como bixa mas usado também para outras sexualidades e
gêneros com um sentido combativo. Assim como a palavra queer, marica era um termo utilizado originalmente
como uma ofensa direcionada a homens que eram ou pareciam ser homossexuais, implicando uma característica
“efeminada”. Em alguns materiais, encontra-se a expressão anarcomaricas, por vezes grafada com a letra k em
referência à escrita anarcopunk (anarcomarikas).
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de gente muito politicamente correta, de ideologias brancas, burguesas e de ativistas de
selfie”.
16
Declaradamente anarquistas, essas manadas queers, como Resistencia Queer,
Resistencia Radikal Kuir e CRAQ (Colectiva Resistencia Ácrata Queer), juntaram-se para abrir
espaço, possibilitar encontros do diverso libertário em ruptura com os movimentos de minorias
LGBTQIA+ assimilacionistas; com os feminismos estadista, neoliberal e TERF cujo
pensamento feminista radical impregna também setores do anarcofeminismo ; com punks e
ácratas que não se abrem para essa luta e as transformações precisas dela decorrente.
No Chile, no dia de julho de 2017, saiu pelas ruas de Santiago o Bloque La Outra
Marcha. Apartada do que nomeiam provocativamente de “Oficialismo Gay™”, explicitaram
questões “que não se resolvem com o matrimônio igualitário e que não afetam os homossexuais
higienizados de classe alta que não têm problemas em se integrarem ao sistema
heterossexual”.
17
Entre 2016 e 2017, o coletivo Travestis Rabiosas também levou adiante ações
diretas na capital chilena. Definindo-se como “mais do que um coletivo travesti”, apresentava-
se como um ponto de encontro “anormal e caótico entre corpos indisciplinados que negaram a
determinação biológica desde a perspectiva binária do sexo. Rechaçamos a higienização da
política ‘trans’ e reconhecemos nossa história travesti resistente-sudaka-puta-criminal”.
18
Essas lutas anarquistas travadas por minorias sexuais e de gênero expõem outras forças
que agitaram este território, procedências do que o revolveu nos últimos meses de 2019 com a
explosão de revoltas incessantes, circunstancialmente apaziguadas somente no ano seguinte
pela disseminação do novo coronavírus e da COVID-19. No Brasil, em julho de 2013, em meio
às revoltas que ficaram conhecidas como as jornadas de junho, uma ação direta estremeceu
forças variadas. No Rio de Janeiro ocorria a terceira edição da Marcha das Vadias, bastante
marcada por partidos de esquerda e demandas feministas ao Estado, das quais sobressaía o coro
por direitos e segurança. Ao mesmo tempo, a cidade recebia os fiéis católicos da Jornada
Mundial da Juventude. E a Força Nacional marchava com suas armas e tanques pelas ruas.
Frente e em meio a tudo isso, duas pessoas encapuzadas, vestindo apenas tapa-sexos feitos com
adornos religiosos, abriram espaço entre as feministas. Destruíram imagens sacras e umx delxs
tomou os restos quebrados de um crucifixo, os colocou em um preservativo e penetrou nx outrx.
A ação direta foi reivindicada pelo coletivo Coiote. Foi execrada pela organização da Marcha
16
“Resistencia Queer: la lucha del colectivo de cuerpos disidentes más radical en México”. Disponível em:
https://terceravia.mx/2020/02/resistencia-queer-la-lucha-del-colectivo-de-cuerpos-disidentes-mas-radical-en-
mexico/. Acesso em: 28 jul. 2022.
17
“Declaración La Otra Marcha”. Disponível em: https://www.facebook.com/notes/335574007550343/. Acesso
em: 28 jul. 2022.
18
“Lanzamiento Fanzine ¡Travestis Rabiosas!”. Disponível em:
https://www.facebook.com/events/209801972764609/?ref=newsfeed. Acesso em: 28 jul. 2022.
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das Vadias e, quase unanimemente, por todos os coletivos. Serviu como alvo exemplar de
ataques da extrema-direita e direita e demais moralistas ao centro e à esquerda junto à
performance “Xereca Satânica”, realizada na Universidade Federal Fluminense, e ao grupo
Putinhas Aborteiras. É importante sublinhar que essas ações e a presença de queers
encapuchadxs na revolta chilena e nas jornadas de junho costumam passar despercebidas.
Mais ao sul da América do Sul, em 20 de novembro de 2016, na cidade argentina de
Neuquén, tortilleras irromperam: “fim deste orgulho, princípio do nosso caos”. No panfleto
que distribuíram de dorso nu, escreveram:
porque o Estado fagocita nossas palavras e as vomita sem história, sem
marcas, sem danos, limpas, cirúrgicas, assépticas, dóceis. Porque as
organizações lgbttti elegem pactuar lugares nas instituições estatais [...]
porque iluminam com luzinhas coloridas as paredes da casa do governo onde
recordamos com pichações os nomes dxs mortxs, deixando nas sombras a
memória pública de nossas dores, ao passo que essas mesmas paredes
protegem os assassinos. Porque os feminismos registrados com nome próprio
e com espírito punitivista podem nos imaginar mortas ao grito de ni una
menos’, [...] porque estamos alarmadas pela obsessão securitária e suas formas
de regulação sexual. [...]
Caos porque nossos corpos e desejos transbordam, estalam, contaminam tudo,
querem tudo. Porque nossos suores, salivas, fluxos, raivas não cabem nas suas
leis. Porque não queremos pedir nada aos nossos assassinos, queremos sacudir
tudo, mover tudo, destruir tudo.
19
Em 2020, em plena COVID-19, trans libertárixs marcaram as ruas de Quito, no Equador,
com afirmações anarquistas em pichações e lambe-lambes. Em outubro, em Montevidéu, no
Uruguai, ocorreu o primeiro Encuentro anarquista de mujeres, tortas, tortes, lesbianas, travas,
trans, no binaries y marikas. O evento foi presencial e convidou a quem
como anarquista despreza profundamente o patriarcado, seu binarismo
heteronormativo e todas as suas hierarquias, assim como o capitalismo e suas
lógicas mercantis e neoliberais, que cooptam a dissidência para convertê-la
em diversidade, e fagocitam a aceitação e o respeito para gerar novos nichos
de mercado e consumo.
20
Em 2021 foi realizado o segundo encontro. Neste mesmo ano, em Bogotá, na Colômbia,
ocorreu a primeira contramarcha, pois “um orgulho gay, branco, burguês não é um orgulho, é
uma vergonha”. Com faixas e gritos de “morte ao capitalismo rosa”, “nem oprimidas, nem
19
“Fin de este orgullo, principio de nuestro caos”. Disponível em: https://1.bp.blogspot.com/-b-
nZNUNrWxU/WDSJHHmiIFI/AAAAAAAAA00/nFzVdrwsHvE1_J738fbYmyNgGvEr4NdOwCLcB/s1600/p
araweb.jpg. Acesso em: 28 jul. 2022.
20
“Encuentro 2020”. Disponível em: https://lequebuscaencuentra.blogspot.com/2020/05/nos-atraviesa-la-
necesidad-y-el-deseo.html. Acesso em: 28 jul. 2022.
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opressoras”, queers dançaram ao redor do fogo que queimou barricadas no meio da Marcha.
Em 2022, foram novamente às ruas, interromperam o itinerário dos carros alegóricos e
desafinaram a harmonia da celebração neoliberal do Orgulho.
No dia 16 de fevereiro de 2021, a anarquista Emilia Milen H. Obrecht, conhecida como
Baucis ou simplesmente Bau, foi executada por sicários do condomínio Riñimapu, em
Panguipulli, no Chile. Ela, uma jovem mulher trans de 25 anos, vivia com xs mapuche em Lof
Llazcawe. Morava nessas terras e lutava por elas, pelas águas, pelas florestas e todos os seres
viventes que habitam estes espaços. A vida de Bau foi encerrada por uma bala cravada em seu
crânio. O disparo veio de algum capanga serviçal dos “grupos florestais, represas, indústrias de
salmão confinado, imobiliárias, que são máfias político-empresariais, cartéis, contratistas de
sicários que, através de sua política e da guerra, exterminam tudo o que cruza seus caminhos”.
21
Mais de um ano depois, sequer se sabe publicamente quem matou Bau e quem ordenou essa
operação armada contra xs mapuche.
Diversas ações diretas foram levadas adiante em terras mapuche e nas urbes chilenas, e
delas expandiram para outros cantos. Ações incendiárias, insurrecionais, escritas com tinta em
propriedades, difundidas em páginas virtuais e encontros anarquistas, marcadas em letras que
saúdam a existência de Bau “como em toda a terra que semeou sementes, sementes que agora
são plantas fortes, bosques, sementes que são kutxal y weichan (fogo e luta). [...] Sua existência
prevalece e como sempre transmuta e se faz cada vez mais forte”.
22
Pois é o pulsar da “memória
incendiária e insurreta contra os latifundiários invasores de Wallmapu e seus repugnantes
sicários, contra o empresariado e todo tipo de progresso humano que devasta a terra, contra
todas as jaulas humanas e animais. Que a fúria se transforme em fogo! morre quem é
esquecidx!”
23
.
Bau, corajosa, lançou-se à vida junto com xs mapuche, anarquistas, bichos, plantas e
outras forças vivas “sem medo da morte, sem medo de continuar através da memória viva de
cada dia de combate como travesti, mulher ativa e combativa na liberação da terra, das águas e
21
“Contra el patriarcado, contra el capitalismo: Emilia en nuestra memoria combativa”. Disponível em:
https://lequebuscaencuentra.blogspot.com/2021/09/contra-el-patricarado-contra-el.html. Acesso em: 28 jul.
2022.
22
“En memoria de Emilia Milen Baucis: ‘Vivía en movimiento como las plantas que sembró, siempre creciendo’”.
Disponível em: https://lazarzamoracolectivalesbofem.wordpress.com/2021/07/05/enmemoriadeemiliabau/.
Acesso em: 28 jul. 2022.
23
“Afiche en memoria de la compañera Emilia Baucis”. Disponível em: https://es-
contrainfo.espiv.net/2021/07/27/estado-chileno-afiche-en-memoria-de-la-companera-emilia-baucis/. Acesso
em: 28 jul. 2022.
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dos animais”.
24
Hoje sua memória e luta seguem vivas, tanto nas flores e frutos que
desabrocham das sementes e mudas plantadas por ela, quanto nas batalhas incansáveis travadas
por mapuche e anarquistas ao sul da América e não só. “Desde territórios e posições distintas a
luta não descansa. Continua forte. Nosso coração tem tanta água como fogo. Estamos juntxs e
nossa newen [força] é imensa como as raízes de uma pewen [araucária] e indômita como os
grunhidos dos pumas”
25
.
DIFERENÇAS ANARQUIZANTES
Bau é mais uma, junto a tantxs outrxs aqui citadxs, por vezes incógnita ou indiretamente,
a compor essa constelação das lutas e existências queer libertárias. Impossíveis de serem
contidas por fronteiras de quaisquer tipos e por demarcações espaço-temporais: se algunxs
correspondem ao comum da época em que vivem, outrxs experimentam de maneiras únicas as
possibilidades infinitas de existir e se relacionar.
Ao longo dos dois últimos séculos, anarquistas mostraram coragem ao encarar assuntos
intocados por demais socialistas. As formas de lidar com a questão da homossexualidade
explicitam diferenças entre libertárixs que não podem ser encaixadas nos tradicionais
escaninhos binários de individualistas ou coletivistas. É uma questão própria dos costumes e
modos de vida, que expõe até que ponto eram e são revolvidos, conservados ou revestidos
nas relações anarquistas. As diversas forças ácratas que anunciavam esses combates no final do
século XIX e início do XX evidenciam essas nuances e divergências mais claramente. Indicam
como as liberdades se expandiam e se contraíam, reduzindo-se ao se misturarem e reproduzirem
os discursos da ordem e as condutas majoritárias.
Mesmo no campo da expansão das práticas de liberdade havia diferenças e chama
atenção que, um século depois, sigam praticamente desconhecidas histórias como a de Adolf
Brand e do primeiro periódico “homossexual”; de sua discordância com o médico Magnus
Hirschfeld, que implicava uma recusa do saber médico, do reconhecimento jurídico e da norma;
e o enfretamento travado por John Henry Mackay ao culto masculinista e à misoginia que
impregnavam a Comunidade de Únicos e Brand. Certas histórias menores entre anarquistas e
24
“Contra el patriarcado, contra el capitalismo: Emilia en nuestra memoria combativa”. Disponível em:
https://lequebuscaencuentra.blogspot.com/2021/09/contra-el-patricarado-contra-el.html. Acesso em: 28 jul.
2022.
25
“En memoria de Emilia Milen Baucis: ‘Vivía en movimiento como las plantas que sembró, siempre creciendo’”.
Disponível em: https://lazarzamoracolectivalesbofem.wordpress.com/2021/07/05/enmemoriadeemiliabau/.
Acesso em: 28 jul. 2022.
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minorias sexuais e de gênero que passam ao largo até o presente, espelhando o jeito de contar
a história dos vencedores, entre xs vencidxs.
Até mesmo a presença vibrante de Emma Goldman como agitadora em defesa da
liberdade no amor, nas relações sexuais e contra as perseguições axs homossexuais, é pouco
mencionada enquanto uma possível procedência do movimento homossexual nos Estados
Unidos da América. Localidade onde eclodiram, anos mais tarde, movimentos de minorias com
projeção planetária. Goldman, assim como o médico libertário pouco conhecido, Johannes
Rutgers, afirmou essas questões como inerentes às lutas e existências anarquistas, independente
dos gostos de cada umx.
As discussões acaloradas na imprensa libertária sobre amor livre também apresentam as
diversas maneiras de anarquistas lidarem com as suas relações amorosas, entre amigxs,
camaradas amorosxs, como amor plural, repercutindo também na educação das crianças. O
enfrentamento ou adequação à moral burguesa e religiosa trazem uma outra tensão entre a
expansão da anarquia e sua redução, por vezes chegando a tangenciar proposições autoritárias,
reproduzir o discurso jurídico e os castigos, tentar governar o amor livre.
A anarquia ganhou outras dimensões com 68, ao misturar-se com certas minorias
dispostas a revolver os costumes e modos de se relacionar e viver. O amor livre foi
experimentado junto à liberação sexual total, afirmando um confronto direto com a moral, fosse
a da ordem, fosse a de certxs ácratas. O sexo solto, o prazer e a o-monogamia implodiam o
que poderíamos chamar de heteronorma. Noção que emergiu dos estudos queer na década de
1990, mesmo período em que irrompeu pelas ruas dos Estados Unidos uma força queer.
Afirmava-se na luta contra a sociedade e o próprio movimento de gays e lésbicas que almejava
assimilação a esta mesma ordem, implicando sua impreterível redução ao mesmo.
O que irrompeu nos Estados Unidos com o nome de queer e radicalizou-se como
anarcoqueer e em experimentações como a Bash Back!, ressoa em outros cantos do planeta.
Manadas queer que tiveram e têm outros nomes, outras línguas; existências únicas que
propagam a revolta e um modo de vida queer libertário. Desde a virada do século até o presente,
pulsam com intensidades múltiplas e, muitas vezes, despercebidas. Ou são propositalmente
deixadas no ostracismo também entre anarquistas, que em sua maioria, declaram-se contrários
a homo-lésbo-transfobia, por vezes até apoiando causas democráticas reivindicadas pela
maioria entre essas minorias. De modo que acabam por sustentar a continuidade dos direitos e
suas intrínsecas penalizações. Não se dispõem a se transformarem radicalmente, a lutarem
contra si mesmxs, nem a questionarem ao que estão sendo levadxs a servir. No agora, as nuances
e forças em luta são mais difíceis de se cartografar. A pergunta que abre este texto permanece
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sem uma resposta fechada. Mas aqui se apresentam pistas, alertas, outros tons e sons que
emergem das batalhas dessas forças. Outras histórias, experimentações, existências; uma
constelação para outro singrar livre. Estamos vivxs!
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Recebido em: 31 de julho de 2022
Aceito em: 19 de dezembro de 2022