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INVENÇÕES E REVIRAVOLTAS: NU-SOL. NÚCLEO DE SOCIABILIDADE
LIBERTÁRIA
Edson Passetti
1
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil
edson.passetti@uol.com.br
RESUMO
O aparecimento do nu-sol (núcleo de sociabilidade libertária), seus antecedentes, jeito de fazer
e análises.
Palavras-chave: Anarquismos. Universidade. Invenção de liberdades.
“my friend, I’ll say it clear
I’ll state my case, of which I’m certain
I’ve lived a life that’s full
I travelled each and every highway
and more, much more than this
I did it my way”
my way
Nunca escrevemos ou falamos em público sobre nós. Este momento existe como um
sinal, a partir da solicitação de Doris Accioly, nossa amiga há tempos. Fazem parte do Nu-Sol
em agosto de 2022: Acácio Augusto, Beatriz Scigliano Carneiro, Diego Luccato Belo, Edson
Passetti, Eliane Carvalho, Flávia Lucchesi, Gustavo Simões, Gustavo Vieira, Lúcia Soares da
Silva, Luíza Uehara, Rogério Nascimento, Salete Oliveira.
Não uma data para começar algo, muito menos a de uma efeméride. Num certo
instante aconteceu de existir o Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária), na PUC-SP, hoje
instalado no Pátio da Cruz do Prédio Sede e conectado ao Programa de Estudos Pós-Graduados
em Ciências Sociais (www.nu-sol.org).
As proveniências são diversas. Anos 1980. O Centro Acadêmico de Ciências Sociais da
PUC-SP passou a ser auto gestionário, estancando no movimento estudantil o controle
partidário de esquerda de duas décadas. Os estudantes se aproximaram da coordenação do curso
de Ciências Sociais depois de consolidadas as necessidades de revisão curricular a ser
1
Edson Passetti é professor livre-docente na Faculdade de Ciências Sociais, no Departamento e Programa de
Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais PUC-SP. Coordena o Nu-Sol.
Agradeço às deliciosas conversas a respeito da invenção inicial do nu-sol com Salete Oliveira, e precisas e
preciosas sugestões de Flávia Lucchesi, Gustavo Simões e Luíza Uehara.
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apresentada e concluída em 1987. A coordenação do curso formou a comissão de professores e
abriu aos estudantes que quisessem participar. Durante um ano conversamos e discutimos sobre
o imprescindível no atual currículo e o que poderia ser contemplado, tendo em vista as múltiplas
discussões que ocorriam extrassala de aula, no país e no planeta. Nesta comissão ficou claro,
entre muitas coisas, a introdução dos anarquismos. A realidade mostrava que era importante
ultrapassar a condenação dos anarquismos pelos liberais como ideologia violenta e superada.
Era também relevante deixar de considerar os anarquistas como integrantes de movimento pré-
político. Os comunistas recomendavam que encontrassem uma razão superior, aderissem a ela
e ao seu domínio entre as esquerdas, fortalecendo sua hegemonia e a devida condução de
consciências, governo e mando. Entre os professores da área de Política da Faculdade de
Ciências Sociais, havia uns declaradamente libertários ou heterodoxos que introduziram os
anarquismos em suas matérias como prática histórica e pensamento crítico. O currículo foi
aprovado com a nova disciplina Política IV dando conta de questionamentos da dominação, de
práticas e pensamento radicais. Nas décadas seguintes, vieram outras revisões curriculares e a
disciplina passou a ser intitulada Política III, mas nunca mais saiu do curso de Ciências Sociais
da PUC-SP.
Noutras universidades como Unicamp, Universidade Federal da Bahia e de Santa
Catarina, cursos de pós-graduação, cursos livres, eventos regulares e, principalmente, núcleos
de pesquisa levaram adiante os estudos e análises sobre os anarquismos na perspectiva
libertária, escanteando, lentamente, as pesquisas científicas marxistas sobre o anarquismo que
serviam para reiterar posições político-partidárias e o alpinismo acadêmico, por meio de
titulações burocráticas. Jovens professores-pesquisadores formavam núcleos e incentivavam
pesquisas; novas proximidades libertárias foram se estabelecendo para além das reconhecidas,
historicamente, em educação e passaram a mostrar suas forças como a atualidade dos
feminismos, a atenção aos costumes libertários, as reviravoltas nos movimentos sociais e a
importância do pensamento e prática anarquistas. Os anarquismos como pesquisas e práticas se
expandiam. Aconteceu com vigor outro no planeta depois de 68, fortaleceu o movimento punk,
promoveu ocupações e novas experimentações de existências.
De início eram poucos os anarquistas do Brasil que compreendiam a entrada dos
anarquismos nas universidades, revolvendo consolidações hierárquicas e introduzindo novos
costumes à dinâmica universitária, com humor, crítica e práticas inventivas. A conduta reativa
chamava esse movimento de ingênuo e levemente purista, porém com este procedimento
legitimavam, direta e indiretamente, a propriedade marxista sobre os movimentos operários, de
trabalhadores e de anarquistas. Precipitados acusaram a introdução dos estudos sobre
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anarquismos nas universidades como anarquismo acadêmico. Para eles anarquia e anarquismo
eram de operários, sindicalistas, exterior à universidade, quase marginal. Neste último ponto,
eles tinham razão, os anarquismos, quando aceitos, eram vistos como algo marginal, quase
inofensivo, mesmo com seu crescimento numérico e potente. Ainda não davam conta que
houvera uma reviravolta generalizada no capitalismo e no socialismo, e que o Estado Nacional
tendia a ser redimensionado em um conjunto federativo aberto como Europa, o que se
consolidará em 1992, com o Tratado de Maastricht e ampliava os raios de ação das Nações
Unidas. A propriedade passava a ser equacionada pela racionalidade neoliberal, esvaziando o
Estado de funções sociais e assistenciais, postulando a predominância da democracia como
regime político real e ideal, com a sua introdução nas relações sociais e de trabalho, instalando-
se em uma sociedade civil organizada, sendo definitivamente inovadora. A racionalidade
neoliberal indicava como meta a democracia liberal para consolidar o horizonte pacificável.
Eram as premissas para o adestramento da esquerda em economia, política, cultura e segurança
democráticas.
Os anarquistas notaram, pela sua perspectiva, que a divisão entre o trabalho manual e
intelectual, com este dominando o outro, cedia a vez à predominância do trabalho intelectual, à
cibernética, à robótica e anunciava uma infindável gama de ocupações na prestação de serviços.
O capitalismo não mais sugava apenas pela disciplina as energias econômicas do corpo para
com isso o docilizar e anestesiá-lo politicamente; agora, precisava de energias intelectuais e
ativistas politicamente democráticas e monitoráveis. Não estávamos mais restritos às
vigilâncias sobre condutas e trabalhos em espaços fechados, materializadas na arquitetura e
normalizadas pelo temor de sanções na presença ou na ausência etérea de vigilantes. O
investimento capitalista não era mais de superfície e os de sua profundidade não se
restringiam mais à extração de minérios e petróleo, peixes e demais alimentos das águas, e de
arqueologia das culturas antigas e “pré-históricas” para a museologia. Constatava-se a ocupação
da espessura sideral no universo em expansão, para a produção de produtos e a riqueza das
profundezas submarinas pela observação por satélite. Estabelecia as premissas para a instalação
futura de estações espaciais e para o monitoramento de terra, mar, ar e, incêndios e explosões
vulcânicas. A ficção científica na literatura, no cinema e nos quadrinhos passava a ser realidade
capitalista e socialista em disputa, desde o fim da II Guerra Mundial, especialmente após 68.
Demorou para os anarquistas compreenderem que o liberalismo pelo seu viés neoliberal
abria possibilidades de ampliar e potencializar as liberdades anarquistas e novas lutas,
simultaneamente, à formação de associações libertárias. Os anarquistas de qualquer lugar do
planeta sabiam que a revolução social comandada por comunistas foi a antevisão de
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continuidades de Estado como a prisão, os campos de concentração, os exílios e mortes.
Também era a continuidade da propriedade, do Estado e da tirania; portanto não passava de
uma revisão e restauração da revolução política francesa. Os (As) anarquistas deixavam de lado,
as sutilezas de hipopótamos dos que pretendiam tratar marxismo e anarquismo como parentes
(os primos ou similares); as identidades para definir as supostas finalidades idênticas, seguindo
a desfaçatez leninista; a revolta que precisava de uma consciência revolucionária diretora... E,
principalmente, aprenderam depois da Revolução Russa e da Revolução Espanhola que não
tinha mais cabimento seguir o funcionamento plural da Comuna de Paris ou colaborar nos
governos de Estado como ocorrera na Espanha democrática antes do fascismo franquista.
Constataram, acompanhando Emma Goldman (2007), que o poder centralizado corrompe
também anarquistas.
O anarquismo é múltiplo, potencializa liberdades, evita o absoluto, não vive para a
utopia; não tem parentesco algum com o marxismo e sua ciência hiperbólica da história, não
faz política; vive o presente de modo federativo e mutualista. Para alguns pode ser que os
anarquismos só tenham sentido quando reduzido a o anarquismo. É desta forma que se capta e
captura por meio de uma suposta disputa política interna e por meio do academicismo os
anarquismos em torno do verdadeiro anarquismo (o histórico, plataformista, anarco-
sindicalista, comunista, até mesmo o anarquismo científico defendido por Piotr Kropotkin...).
Os anarquistas, mesmo com suas diferenças sobre tradições e atualizações, não admitem
serem confundidos com os ativistas deste século, ou seja, os praticantes da liberdade neoliberal,
os (as) que fazem de suas práticas uma profissão de investimentos em governança para obtenção
de melhorias nas condições contemporâneas, pensando num futuro melhor para as novas
gerações, como recomenda a sustentabilidade desde o relatório da ONU, intitulado Nosso futuro
comum, de 1987. Os libertários são militantes e dinamitaram a captura de libertário pelos
liberais libertarianos estadunidenses. Importa e interessa afirmar a multiplicidade de
anarquismos, e talvez num instante abandonar, definitivamente, as reles distinções entre
individualistas e coletivistas, dicotomia que fortalece a verdade de Estado e de governo. Os
anarquismos, enfim, não são alternativos, não comportam o verdadeiro totalizador, nem os
ativistas. São antipolíticos.
“Meu avô sempre me advertira: o mundo é repugnante, implacável, letal. Como tinha razão.
Tudo era ainda muito pior do que eu pensava. [...] Os anarquistas são o sal da terra, ele dizia
sempre. Também esta afirmação me fascinava, era uma de suas frases habituais, cujo
significado de fato eu, é claro, só fui conseguir entender aos poucos”.
(Thomas Bernhard)
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As proximidades e os distanciamentos entre anarquismos, nos últimos50 anos, no Brasil
aconteceram pela permanência, insistência e existência de Centros de Culturas Sociais,
principalmente em São Paulo e Rio de Janeiro, do jornal Inimigo do rei em Salvador, de
intelectuais, punks, publicações de editoras atentas brasis afora e adentro, que atraíram e se
aproximaram da universidade com seus jovens professores-pesquisadores e estudantes
realizadores de autogestão.
O período da abertura política no Brasil (1974-1988) facilitou as coisas. A PUC-SP se
tornara o espaço das liberdades e das resistências à ditadura civil-militar, antena propícia para
a urgência anarquista e sua entrada definitiva na universidade brasileira, também com cursos
livres realizados em parceria com o Centro de Cultura Social de São Paulo. Aconteciam nas
tardes de sábado, com o auditório sala 333 apinhado de gente. Onde cabiam 300 pessoas
sentadas, nunca havia menos de 500, entre jovens e mais gentes interessadas em liberdade
anarquista.
Naquele espaço estavam estudantes, punks, jovens feministas, moçada do movimento
negro, operários, sindicalistas, gays, curiosos, secundaristas, gente de teatro, artistas plásticos,
pessoas que chegavam, se conheciam e podiam a partir dali fortalecer ou inaugurar relações.
Não se pretendiam alternativos, mas conectados à anarquia. Anarquistas daqui, dali, de dentro
e de fora do país se aproximavam e não cessavam os panfletos e as publicações instantâneas.
Muitos por curiosidade e saudosos de algo que restituísse 68 e um pouco distraídos sobre os
efeitos daquele acontecimento ainda vibrante. Os conservadores e partidários recomendavam
esquecer 68, desejavam todos nos trilhos da democracia (liberal, social, participativa...).
Os anarquismos não buscam o instante na história de sua propagação imediata e
instantânea pelo planeta. Ao contrário, são constantes, contínuos, por vezes mais fortemente
presentes, outras indiscretos. São compostos de práticas de invenções e de análises no decorrer
dos eventos, de maneiras contínuas de viver, comer, amar, fortalecer éticas entre amigos. Os
anarquismos podem ou não somarem em um instante revolucionário futuro, entretanto estão
presentes nas revoltas desde quando elas antecedem emergir, se fazem no presente e não se
preparam para o futuro. São como uma tempestade, às vezes um furacão, um ciclone. Passam
e deixam suas marcas. Depois o mar volta a ficar azul ou verde (raramente cinza) para que
sigam navegações anarquistas menos tonitruantes e fortes até enfrentarem outras intempéries e
eventuais cataclismos. É um percurso sempre móvel em que ficam as associações que se
formam, renovam, ampliam, contraem, fundem, enfim, os anarquismos não são mais do que
realizações no presente. São ensaios federativos de existências.
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Em 1992, juntavam-se PUC-SP (Faculdade de Ciências Sociais e Fundação Cultural
São Paulo), Centro de Cultura Social, Soma - uma terapia anarquista e Editora Imaginário para
a realização de uma semana que provocasse ruído nas comemorações oficiais e quase oficiais
do quincentenário do chamado Descobrimento da América. Jovens, homens e mulheres mais
velhos se sentaram para bolar o que viria a acontecer em agosto daquele ano: Outro 500:
pensamento libertário Internacional, no TUCA, Teatro da Universidade Católica. Veio gente
do Brasil e de alguns países latino-americanos; chegaram pesquisadores de Europa, América
do Sul e Central que produziam anarquismos nas universidades, nas escolas, nos institutos,
ateneus, ampliando a cultura libertária. A eles juntaram-se xs brasileirxs daqui e todas as tardes
e noites aconteciam mesas redondas, conversações no teatro e pelas redondezas, refeições
coletivas, um tal de ninguém se cansar, inesgotáveis na troca de ideias e experiências. O TUCA
que fora o corajoso espaço inaugural de resistências à ditadura civil-militar no Brasil, nele agora
se estabelecia a consolidação da PUC-SP como espaço propício a libertarismos.
Outros 500 recebeu apoio de muitas pessoas e propiciou encontros longevos entre gente
e espaços outros. Multiplicou anarquismos. Fazer do espaço convencional da universidade, um
espaço outro; fazer dos espaços de centros de cultura, novamente mais um espaço outro; fazer
da rua e das habitações espaços outros; dissolver fronteiras, barreiras de idiomas e inventando
jeitos de fazer e acontecimentos. A recusa em ser alternativo (modo de fazer o mesmo de outra
maneira) sempre foi clara e contundente. Mas houve e permanece, ora em redução, ora em
crescimento, a euforia dos(as) que chegam na última hora e provocam, à revelia, a celebração
de matrimônios sob o mormaço dos tradicionalistas, o acossamento dos marxistas (agora
transvestidos de marxismo libertário), os novos acadêmicos atraídos pelo protagonismo,
pretendendo virar celebridade inesquecível, elaborando uma estranha proposta de teoria
anarquista. Quase tudo dessa pressa equivocada estraga o tanto de anarquismos pela
impregnação e obsessão com democracia com um tanto de jovens e quase velhos vindos da
imantação à democracia liberal estadunidense que inaugurou uma nova colonização das
esquerdas. É o resultado kafkiano das relações democráticas entre o capital e o capital humano
(nova nomeação e prática da força de trabalho inteligente) em empreendedorismo. E com estes
empertigados novidadeiros no campo da nova política vai a anarquia enluvada e disposta pelas
mãos zelosas das sentinelas para o honroso escaninho da esquerda pluralista como uma
componente das práticas de micropolítica. Os ativistas domaram os anarquistas que cederam
aos encantos acadêmicos e alternativos.
O desenrolar entre as décadas de 1990 e 2010, requer mais atenção do que o trailer acima
sugere e requer mais detalhamentos sobre as práticas decorrentes desde o movimento
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antiglobalização. Entretanto, depois de Outros 500 aconteceu uma pesquisa sobre violência
contra crianças e jovens que abriu, definitivamente, para a existência do nu-sol, anunciada
desde a publicação de Proudhon político na Coleção Grandes Cientistas Sociais da Editora
Ática, em 1986 e os desdobramentos dos antecedentes e da revisão curricular de 1987. Os
anarquismos, a educação de crianças e a cultura libertária se completariam. Em 1993, nos
aproximamos do abolicionismo penal, no encontro inaugural ocorrido naquele ano, no evento
anarquista de Barcelona. Coincidência que se confirmava desde a incorporação em nossas
análises da genealogia do poder proposta por Michel Foucault, em Vigiar e punir.
Uma guerreira na luta contra prisão para crianças e jovens, desde os anos 1970, chamada
Lia Junqueira, e de quem fui parceiro no Movimento em Defesa do Menor, coordenava um
escritório de atendimento a crianças e jovens que passavam por prisões do Estado ou viviam
em casas e escolas encarceradoras. Ela tem em mãos, na OAB, mais de um milhar de processos
de denúncias. Solicita uma análise criteriosa do material e me convida para um café no
escritório. Encontro-me com ela, passo vista em alguns processos e admito que o material
contém constatações terríveis. É preciso divulgar o que ali está arquivado. Mais do que uma
análise confiável é urgente a instalação de um centro de referências para o atendimento de
crianças e jovens. Porém, não dinheiro disponível para remunerações, somente uma pequena
verba para os pesquisadores durante três meses, obtida por meio de um rateio feito pela Lia
Junqueira.
Volto para a universidade, depois à minha casa, converso bastante com minha mulher,
observo meus filhos, rememoro meu mestrado, volto para a PUC-SP no dia seguinte decidido
a convidar para uma conversa alguns estudantes de último ano dos Cursos de História e Ciências
Sociais. Lia indicará um jovem graduado em Direito do escritório da OAB. Preciso de pelo
menos um estudante de História (encontrarei uma jovem firme que passou pelo punk e que
canta muito bem), uma quase socióloga densa e próxima das experiências com a loucura, uma
quase socióloga lésbica corajosa, divertida e ótima instrumentista e cantora, um quase
antropólogo interessado em transgressões e uma estudante de Direito e Ciências Sociais muito
atenta, mas que escapava um pouco daquele grupo agitado por ser casada, estável, quase uma
fruta ao largo da fruteira, ou a singular fruta na fruteira.
A experiência foi fundamental para nós. Tempo curto, espaço reduzido no escritório e
na universidade, minha casa funcionando como anexo, uma casa em Paraty como conexo... Três
meses depois, no início de 1994, a pesquisa estava concluída, os jovens pesquisadores
graduados, a OAB criava o Centro de Referência da Criança e do Adolescente (CERCA), o
livro preparado para publicação no ano seguinte com o título de Violentados. Mostrava,
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detalhadamente, não estatísticas sobre violências contra crianças e jovens, mas análises sobre
as justificativas dos algozes e seus (suas) comparsas; anunciava o perigo da vitimologia que se
avizinhava; a disponibilidade do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para governar
com prisões e introduzir a justiça restaurativa; e um capítulo final sobre a abolição da prisão
para jovens. Escrever em conjunto, dissolver a autoria, a superioridade hierárquica do saber,
fazer da anarquia uma invenção de escrita. Aprendemos a fazer isso.
Agora estávamos quase prontos para inventar um núcleo de pesquisa e de convivência,
parcerias, amigos, com alguns casos rumorosos de amor e sexo, canto-dança-instrumentos,
experimentações com artes, disposição para a liberdade de entrar e sair, de pensar e viver um
modo autogestionário, de fazer acontecer o que nosso ofício nos prepara para fazer e acontecer,
sem medos, sem penas, sem castigos.
Mas um pouco antes disso acontecer algumas pessoas deste grupo, Salete Oliveira e
Roberto Baptista, a partir do número 3, juntaram-se a Jaime Cubero do Centro de Cultura Social
de São Paulo, Margareth Rago, historiadora da Unicamp e à Editora Imaginário para realizarem
uma revista trimestral autogestionária, libertárias, editada, lançada e vendida até o número 6.
libertárias se voltava para o saber e as práticas anarquistas históricas e atuais com uma edição
cuidadosa e vendida nas bancas de jornais, livrarias... Alguns poucos a acusavam de ser bonita,
como se anarquista fosse sinônimo de sujeira, feiura, malvadezas (paradoxalmente, o mesmo
modo como liberais identificavam anarquistas, operários e pobres), e se recusavam a pagar pelo
exemplar, preferindo copiá-las em xerox. Cada um como pode e quer. Mesmo com os
despeitos, ela era muito lida e foi marcante para a multiplicidade de anarquismos. Acabou
porque teve de acabar. Para alguns de nós, isso era o mote para continuar. Nós inventamos o
nu-sol. Nossos amigos e parceiros criaram um instituto. Jaime ficou no Centro de Cultura
Social, apoiando a todos nós e os demais que chegavam: sua casa era o espaço preferido à
recepção anarquista.
“O Estado, aos nossos olhos, é o guarda, o criado policial do trabalho e do capital”
(Pierre-Joseph Proudhon)
1997, segundo semestre. O grupo formado com a pesquisa-livro Violentados, começa
matutar a viabilidade de um seminário internacional com o apoio da coordenadora no programa
de pós-graduação, Lucia Bógus, sobre Abolicionismo Penal. Iniciam-se os contatos com Louk
Hulsman, Nils Christie e Thomas Mathiesen para a vinda deles a São Paulo. No Instituto
Brasileiro de Ciências Criminais, a presidência estava com rgio Salomão Shecaira que ao
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saber do evento se propõe a participar conosco formando uma parceria que se tornaria início de
uma intensa amizade, editando o livro do evento (PASSETTI; DIAS DA SILVA, 1997),
inaugurando a coleção do IBCCrim (curiosamente, hoje em dia, registrado como Monografia
4)
2
.
O seminário aconteceu em novembro, contando com os convidados abolicionistas
penais do exterior e com muitos jovens e nem tão jovens assim ativistas e militantes que se
pronunciaram e escreveram sobre a crítica ao sistema penal e à sua seletividade, a ontologia do
crime, as conivências entre tribunal e polícia, mas, principalmente, uns enfocaram, na esteira
de Louk Hulsman, a abolição da pena, com a abolição do castigo
3
, do direito penal e o fim da
prisão para jovens. Era possível mover uma mudança sem depender da ideia-fixa de revolução:
suprimir o direito penal, os espaços de encarceramentos fechados e a céu aberto, alterar a
linguagem jurídico-penal, afastar-se dos intelectuais profetas e pensar cada caso como uma
situação-problema. Nesta perspectiva antipolítica, havia sim um momento político importante,
tático e estratégico, o da supressão do direito penal e das penas pela introdução do princípio
conciliador do direito civil e da conversação entre as partes envolvidas, incluindo pessoas, os
profissionais do direito e os das humanidades.
Naquele evento estavam reformadores liberais que concordavam até um certo ponto, em
especial ao reconhecer que toda reforma existe para restaurar o que deve permanecer
penalizador; os marxistas viam a possibilidade de se começar agora a abolição das prisões, mas
entendiam que a definitiva supressão da penalização somente ocorreria após a revolução, e entre
os abolicionistas penais propriamente ditos, havia os que viam, mesmo com as novas parcerias
entre a comunidade e os presos, a inevitável permanência de celas socialmente aceitas. Num
sentido explícito estes abolicionistas penais, em especial Christie e Mathiesen, eram marxistas
que não pensavam o efeito da revolução socialista sem a ocupação do Estado e a vingança de
classe. A história mostrou e escancarou que a ocupação do Estado leva a ajustes mais austeros
no aparato repressivo e a um direito penal tirânico, e que a composição com o segmento
convencional da criminologia crítica, leva ao direito minimalista ou à justiça restaurativa.
Entre os abolicionistas penais havia Louk Hulsman (1993; 1997) e sua generosidade,
solidariedade e reciprocidade na luta pela liberdade, com o fim das punições e das prisões.
Havia nos seus gestos, nas conversas, no modo de andar, beber e comer algo que nos
2
https://arquivo.ibccrim.org.br/monografia/4-Monografia-no-04-Conversacoes-Abolicionistas. Acesso em: 10
jun. 2022.
3
Finalidade do castigo O castigo tem a finalidade de melhorar aquele que castiga -este é o último escudo dos
defensores do castigo” (NIETZSCHE,2001[219], p. 176).
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aproximava de modo libertário. Hulsman não era afeito a escrever demais sobre o que era
simples e direto. A possibilidade do abolicionismo penal dependia, segundo ele, da mudança
no discurso penal, com uma nova linguagem e incorporando os movimentos sociais
abolicionistas penais
4
. Para nós, o abolicionismo penal expandia a Cruz Negra Anarquista
5
,
fundada desde a revolução na Rússia em 1905 (AUGUSTO, 2005)
6
.
O abolicionismo penal, apesar de não ser assim nomeado pelos anarquistas sempre
esteve presente por meio das relações livres com as crianças, uma educação para uma cultura
libertária avessa a castigos e recompensas. Louk Hulsman como Michel Foucault, que também
era nosso parceiro em análises nas proximidades libertárias sem essencialismos universais, se
desvencilhara dos intelectuais profetas. Como Foucault (que se recusava a declarar seu estado
civil) não se revelava anarquista (eu nem sei o que ele era além e aquém de abolicionista; sabia
somente que era anticlerical). Enfim, o Núcleo de Sociabilidade Libertária (nu-sol) estava
pronto para ir adiante mesmo. Nossa embarcação era para mar, água e ar, movida a fogo de
liberdade.
nu-sol, com as letras minúsculas mesmo e sem o itálico, como gostamos de escrever
para uns e outros na correspondência eletrônica que se espalhou pelo planeta desde os anos
1990. nu-sol estava inscritos nos núcleos de pesquisa do CNPq, em 1997. Seria um dos
primeiros a experimentar ter um site: www.nu-sol.geocities.com.br. O nu-sol, tem um site:
www.nu-sol.org. O nu-sol era composto de doze ou treze pessoas, e raramente excedeu este
número fixo, por vezes chegou a 17; nunca soubemos quantas pessoas passaram pelo nu-sol,
porém lembramos de cada uma; não existimos para a estatística ou os escaninhos. Fazemos
reuniões semanais para conversações sobre nós e o planeta, nossas práticas, publicações,
pesquisas, incômodos.
No início, os amigos da PUC-SP e de outras universidades nos saudaram com vigor e
se dispuseram a estar conosco e estão até hoje. Certos colegas, de início, nos viam como efeito
do desbunde, talvez alternativos, gente que com o tempo tomaria jeito, mas bem-vindos pela
alegria. Enfim, fomos saudados com palavras a nós dirigidas diretamente. Os sussurros e
4
Sobre Louk Hulsman (1993), ver, também, algumas referências: wikipedia, disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Louk_Hulsman; revista Verve n. 1, 2, 3, 8 e 21, disponíveis em: http://www.nu-
sol.org/verve/; várias edições da revista Discursos Sediciosos do Instituto Carioca de Criminologia; o livro
Conversações abolicionistas publicado pelo IBCCRIM de São Paulo em 1993; a dissertação de mestrado de
Anamaria Salles (2011); Edson Passetti (org.) (2012, 2021).
5
Cruz Negra Anarquista, disponível em: https://www.anarquista.net/cruz-negra-anarquista/
6
Ver em especial a revista Verve, n. 9, p. 83-167, disponível: em http://www.nu-sol.org/wp-
content/uploads/2018/02/Verve9.pdf
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ressentimentos remoídos, trapaças, o dar as costas, os apostadores em nos levar para o
ostracismo e similares não faltaram, não faltam, não faltarão. Temos vinte e cinco anos.
O nu-sol veio para enfrentar as punições e inventar liberdades. Atiçar e ser atiçadx como
está expresso nas palavras que abrem verve nossa revista semestral autogestionária, que, neste
ano de 2022, completa 20 anos com as publicações dos números 41 e 42: “revista de atitudes.
transita por limiares e instantes arruinadores de hierarquias. nela, não dono, chefe, senhor,
contador ou programador. verve é parte de uma associação livre formada por pessoas diferentes
na igualdade. amigos. vive por si, para uns. instala-se numa universidade que alimenta o fogo
da liberdade. verve são labaredas que lambe corpos, gestos, movimentos e fluxos, como
ardentia. ela agita liberações. atiça-me! verve é uma revista semestral do nu-sol que estuda,
pesquisa, publica, edita, grava e faz anarquias e abolicionismo penal.”
Em agosto de 1999, aparecia nossa primeira publicação eletrônica hypomnemata (em
letras minúsculas), caderno público de anotações, http://www.nu-
sol.org/hypomnemata/page/68/, onde consta no número 1 o manifesto abolicionista
(atualmente, também, na seleta abolicionista penal libertária em PASSETTI, 2021) e as
primeiras ideias para produzir os verbetes do abolicionismo libertário (http://www.nu-
sol.org/abolicionismo-libertario-verbetes/).
Entre os cinco anos que sucederam o seminário abolicionismo penal internacional e a
publicação inaugural de verve, houve uma noite, em um bar, em volta de uma mesa com bebidas
e comidas em que nos propusemos a encontrar o nome do núcleo, seu logotipo e suas cores.
Tudo ao mesmo tempo agora, como se dizia, e vieram nu-sol, o nosso boneco de traço
minimalista, desenhado em um guardanapo de papel e as cores preto e azul. Houve também,
mais adiante, o encontro para a parceria com a Editora Imaginário para a Coleção Escritos
Anarquistas (1999-2004), e em muitos números com o Coletivo Brancaleone do grupo Soma.
Nossos primeiros eventos, registrados em DVD, aconteceram com conversações com o
anarquista brasileiro Jaime Cubero e a advogada Lia Junqueira. Eram estas as duas pessoas
fundamentais para existirmos. E assim, inauguramos nossas sessões de sextas-feiras, à tarde, na
universidade para gravar conversações, realizar saraus, receber libertários. No ano de 1998 os
saraus aconteciam sempre às “cinco em punto de la tarde”, festejando naquele ano a existência
libertária de Federico García-Lorca. E toda segunda-feira, desde então, nos reunimos para
conversações internas no nu-sol. “Sessões fechadas?”, perguntavam, provocativamente, alguns
adversários e inimigos, acrescentando: “não é contraditório com quem defende a liberdade?”.
Fechadas sim e sempre serão porque sabemos que infiltrados e alcaguetes não faltam numa
sociedade hierarquizada, com ou sem dialética. No nu-sol se sai livremente, sem ter cumprido
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fidelidade a um contrato. O nu-sol, enquanto uma prática libertária, experimenta e se aventura.
Não é um núcleo acadêmico e as pessoas não estão ali pela sua capacidade ou certificações,
mas para se arriscarem em edições, montar um site quando as pessoas achavam que a internet
era coisa passageira, fazer uma revista, em dirigir e editar vídeos, fazer teatro, almoços, jantares
e viagens juntos, cantar e dançar...
“Aquilo que veio ao mundo para não perturbar, não merece respeito, nem consideração.”
(René Char)
“Como respeito e consideração são demasiado difíceis para as pessoas, elas admiram, porque
admirar lhes sai mais barato.”
(Thomas Bernhard)
O nu-sol veio para perturbar e soube lidar com a admiração dos que usam desta
artimanha acadêmica para contornar o respeito e a consideração. Deixava-nos satisfeitos o
respeito entre alguns próximos e dos interessados nesta entrada dos anarquismos na
universidade, conectado ao abolicionismo penal, implodindo simultaneamente o cadinho das
ideologias muito bem vigiado pelos liberais e o dos movimentos pré-políticos dos autoritários
sentinelas socialistas. Seguimos em busca de eco, não de elogios.
7
O nu-sol é um grupo de pesquisa, como dito acima, registrado no CNPq desde 1997, e
um espaço de pesquisa e ação direta contra autoritarismos e prisões para jovens e demais
encarceramentos. Em pouco tempo, estabeleceu uma parceria duradoura com o mais aguerrido
segmento da criminologia crítica composta por Nilo Batista, Vera Malaguti Batista, Sérgio S.
Shecaira, Maria Lucia Karam e com pessoas desbravadoras dos limites autoritários a partir de
Cecilia Coimbra e Heliana Conde. Tínhamos o respaldo dos colegas e amigos do departamento
de Política na PUC-SP, de muitos outros na Pós-Graduação em Ciências Sociais, de nossos
amigos libertários em outras universidades, de quem não era anarquista, porém respeitava as
análises e práticas libertárias, e o povo do Centro de Cultura Social e a Editora Imaginário.
Começamos muito fortes, com cerca de 12 pessoas, realizando nossas reuniões às
segundas-feiras e preparando eventos públicos, quase sempre nas dependências internas e pátio
do Museu da Cultura, com sua diretora Dorothea Voegeli Passetti, na montagem de exposições
e preparação de sessões de conversações ao ar livre; no TUCA, com Sergio Resende nos
garantindo as realizações de colóquios no Tucarena e depois de aulas-teatro semestrais.
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NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 1992 [99. “fala o desapontado: eu espero por um eco, e ouvi apenas elogio], p. 72.
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Recebíamos da Fundação Cultural São Paulo (hoje extinta) apoios fundamentais e das
coordenações do Programa de Estudos Pós-Graduados, no passado e no presente, parceria em
eventos e nos saraus. Dos pesquisadores que estiverem na formação inicial do nu-sol
permanecem: Edson Passetti, Lucia Soares, Salete Oliveira, e, com idas e voltas, Beatriz
Scigliano Carneiro e Marcia Lazzari.
A associação nu-sol não se restringe às exigências de pesquisa: responde ao que se
espera de um núcleo de pós-graduação, mas é uma associação libertária que atiça ação direta e
provoca urgências. Produz arquivos anarquistas, por meio de entrevistas gravadas em parceria
com a TV PUC, programas libertários para a TV Universitária e arquivados, também no Canal
nu-sol (https://www.youtube.com/c/nucleodesociabilidadelibertarianusol), como as três séries
de Ágora, agora, a Os insurgentes, os quatro programas da série Ecopolítica (Ecologia,
Segurança, Direito e A céu aberto), vídeos como Fucô, ficô, Foucault, Lorca e a revolução
espanhola, a de entrevistas esparsas e registros em colóquios. O nu-sol realizou em parceria
com editoras, contando com demais pesquisadores universitários, os eventos: Um incômodo
(registrado na revista verve n. 6), Kafka-Foucault, sem medos e A tolerância e o intempestivo
(Ateliê Editorial), Terrorismos (Educ), Curso livre de abolicionismo penal (Revan), Pandemia
e anarquia e Anarquistas na América do Sul Hedra). Atento às imagens e às suas variadas
importâncias na sociedade de controle (DELEUZE, 1992), realiza ciclos de cinema e vídeo
sobre revolução espanhola, situação de crianças e jovens, e a política brasileira.
A vida no nu-sol é uma existência federada e mutualista que acontece em um espaço
universitário, a PUC-SP, um espaço propício não só às resistências à ditadura civil-militar, mas
às experimentações de liberdade, entre os anos 1970-1990. Propiciou a emergência do nu-sol e
o nu-sol levou adiante seu modo de fazer libertarismos no espaço de trabalho. Anarquia somente
é o que é ou pode ser, quando se a partir do espaço de trabalho dxs associadxs, e é isto que
xs lançam para as redes sociais digitais para afirmar suas perspectivas.
O nu-sol não disputa hegemonias ou domínio da verdade, não se restringe à prática
disciplinar da ciência da história que é a de abordar os temas com século de distância. Os
anarquismos se fazem no presente, por humanos que se distinguem dos demais animais por seu
instinto de revolta, como sublinhou Mikhail Bakunin. Por vezes, os anarquistas estão marcados
pelo domínio atual do ideal universal do imperialismo estadunidense (BOURDIEU, 2003) em
torno da democracia; noutras, ecoando as práticas libertárias no Brasil do início do século XX;
em certos momentos, reiterando estudos e comentários sobre as autorias chamadas clássicas na
anarquia; também relacionando educação e cultura anarquistas; a respeito de práticas
anarquistas e as minorias contemporâneas, muitas delas na aceitabilidade institucional; e nas
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proximidades com a filosofia da segunda metade do século XX, em especial desde Michel
Foucault (1977, 1977a, 2011) e Gilles Deleuze (1992), além de trazer a anarquia nos
anarquismos por meio de Max Stirner (2004). Enfim, os anarquismos marcam suas presenças
nos combates entre as forças sociais e políticas na sociedade, assim como o nu-sol, do seu jeito.
Ao falar do nu-sol temos de citar as suas publicações regulares, além da revista verve
iniciada em 2002, numa primeira fase impressa e hoje em dia eletrônica e arquivada
(http://www.nu-sol.org/verve/). As publicações eletrônicas são: o boletim mensal
hypomnemata, desde agosto de 1999 (http://www.nu-sol.org/hypomnemata/); flecheira
libertária. comentários semanais do nu-sol sobre pessoas, coisas e o planeta (http://www.nu-
sol.org/flecheira-libertaria/), desde fevereiro de 2007; o informativo quinzenal, observatório
ecopolítica (https://www5.pucsp.br/ecopolitica/observatorio-ecopolitica/), desde novembro de
2015.
As aulas-teatro, começaram a ser preparadas a partir de 2007, inicialmente como
recurso para a apresentação de um tema ou pessoa com texto teatralizado e inserção de imagens
de filmes de arquivos. Foi assim que apareceu a aula-teatro 1 Emma Goldman. Constatamos
que foi uma experiência imprescindível, mas não era o que queríamos. Fartos do lugar comum
da chamada didática escolar, pensávamos em oferecer algo de acesso múltiplo a estudantes,
pesquisadores e às pessoas interessadas. Passamos a compor aulas-teatro semestrais, com
aproximadamente 100 minutos, a partir de um tema, incorporando pesquisa literária, musical,
visual, e, obviamente, das humanidades. Daí aparecia o material inicial produzido pelos
integrantes do nu-sol a ser roteirizado por dois ou mais pesquisadores, ensaiado durante um
breve tempo e apresentado pelos integrantes do nu-sol no palco do Tucarena, em dois dias
seguidos. Cabia e cabe ao nu-sol elaborar os figurinos, cenários e adaptação da luz instalada no
teatro a partir de alguma peça em cartaz; às vezes, contávamos com convidadxs para estas
funções e, também, como operadores de luz; eram especialmente amigxs na encenação como
uma apresentação, jamais uma representação. Nudez. De 2007 a 2019 foram 26 (todas
publicadas em verve), interrompidas com a chamada pandemia pelo novo coronavírus entre
2020 e 2022 (voltará?). As duas últimas aconteceram em 2019 e abriram uma nova
experimentação: estudos sobre Hécuba de Eurípedes, a tragédia e a liberdade transhistórica.
Durante a pandemia produzimos na companhia dos amigos João da Mata (SOMA) e do
fundamental anarquista português José Maria Carvalho Ferreira, com a presença de
pesquisadores daqui e do exterior Pandemia e anarquia (Editora Hedra, 2020) e Anarquistas
na América do Sul (v. 1 Editora Hedra e v. 2 e-book da Editora Pedro e João), com os coletivos
LASInTec (Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de
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Monitoramento, da Unifesp) e o L.I.M.A. (Laboratório Insurgente de Máquinas Anarquistas,
da Unicamp).
Na primeira década deste século, em companhia de colegas da Unicamp, pensamos
propor um Projeto Temático à Fapesp sobre a atualidade dos anarquismos. Não deu certo.
Insistimos no percurso traçado libertariamente. Surgiu o Ecopolítica aprovado e realizado entre
2011 e 2016, cujo livro veio a público em 2019, com o mesmo tulo, pela editora Hedra de São
Paulo. Desta publicação aconteceu a coleção do mesmo nome que se encontra em seu início,
contendo os volumes dos eventos realizados durante a chamada pandemia. Assim como foi
no passado, em companhia da Editora Imaginário, e por vezes do Coletivo Brancaleone, quando
contribuímos para a publicação de quase 30 volumes de análises anarquistas históricas, neste
momento estamos confiantes em mostrar este fluxo acentuadamente atual. Christian Ferrer
(2004) disse, certa vez, que mesmo uma breve passagem pelo anarquismo faz qualquer jovem
ficar mais interessante, e que em qualquer lugar do planeta e sempre haverá uma pereba
negra anarquista.
O nu-sol está próximo dos múltiplos anarquismos, do abolicionismo penal proveniente
de Louk Hulsman, produzindo o abolicionismo penal libertário e da anarquização libertária de
Max Stirner (publicado em verve, ao menos quatro de seus artigos). A prática da parrésia,
recuperada por Michel Foucault (2011) em seu derradeiro curso, amplia nossos percursos,
seguindo e acompanhando a trans historicidade do cinismo, o militantismo (invenção de novas
práticas libertárias), as reviravoltas dos anarquismos desde 68, as mobilizações antiglobalização
no final do século passado, as surpreendentes aparições black bloc ao redor de junho de 2013,
no Brasil...
“(Não foram os europeus o apocalipse dos índios?)”
(Victor Heringer)
No universo em expansão, o planeta Terra é o alvo principal do controle dos Estados,
de organizações internacionais e do capitalismo, sustentável ou não, governamentalizado pela
inovadora racionalidade neoliberal, educando para práticas resilientes. As anarquias
permanecem resistentes e saúde para cada pessoa que se revira e abole o castigo a partir de si
própria. São invenções libertárias da existência.
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Imaginário, 1995.
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PASSETTI, Edson (coord.); AUGUSTO, Acácio; CARNEIRO, Beatriz S.; OLIVEIRA,
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Recebido em: 20 de julho de 2022
Aceito em: 16 de dezembro de 2022