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EDUCAÇÃO E CULTURA POLÍTICA ANTIMILITARISTA: A CONTRIBUIÇÃO
DOS MOVIMENTOS SOCIAIS LIBERTÁRIOS E ANARQUISTAS
Fernando Bomfim Mariana
Universidade de Brasília, Brasil
fbmariana2009@gmail.com
RESUMO
Este artigo trata de alguns pressupostos da educação e da cultura política antimilitarista, a partir
de conceitos, significados e vivências cotidianas que residem nos movimentos sociais e nas
produções científicas libertárias e anarquistas pautados distintamente pela resistência
antiautoritária e anticapitalista. Para isso, evidencio dinâmicas contrárias às guerras, ao
militarismo e demais práticas de terrorismo de Estado, assinalando o significado político
indissociável das lutas sociais que promovam a paz a partir da justiça social, igualdade,
liberdade e outros valores que nos possibilite o reencontro com a arte de viver e o respeito
radical aos seres humanos e à vida no planeta Terra.
Palavras-chave: Educação libertária. Cultura política. Antimilitarismo.
EDUCACIÓN Y CULTURA POLÍTICA ANTIMILITARISTA: EL APORTE DE LOS
MOVIMIENTOS SOCIALES LIBERTARIOS Y ANARQUISTAS
RESUMEN
Este artículo aborda algunos presupuestos de la educación y cultura política antimilitaristas, a
partir de conceptos, significados y experiencias cotidianas que residen en los movimientos
sociales y en las producciones libertarias y científicas anarquistas claramente guiadas por la
resistencia antiautoritaria y anticapitalista. Para ello, muestro dinámicas contrarias a las guerras,
el militarismo y otras prácticas del terrorismo de Estado, señalando el significado político
inseparable de las luchas sociales que promuevan la paz basada en la justicia social, la igualdad,
la libertad y otros valores que nos permitan reencontrarnos la arte de vivir y el respeto radical
por el ser humano y la vida en el planeta Tierra.
Palabras clave: Educácion libertaria. Cultura politica. Antimilitarismo.
EDUCATION AND ANTIMILITARIST POLITICAL CULTURE: THE
CONTRIBUTION OF LIBERTARIAN AND ANARCHIST SOCIAL MOVEMENTS
ABSTRACT
This article deals with some assumptions of antimilitarist education and political culture, based
on concepts, meanings and everyday experiences that reside in social movements and in
libertarian and anarchist scientific productions distinctly guided by anti-authoritarian and anti-
capitalist resistance. For this, I show dynamics contrary to wars, militarism and other practices
of State terrorism, pointing out the inseparable political meaning of social struggles that
promote peace based on social justice, equality, freedom and other values that allow us to
reunite with the art of living and radical respect for human beings and life on planet Earth.
Keywords: Libertarian education. Political culture. Antimilitarism.
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ÉDUCATION ET CULTURE POLITIQUE ANTIMILITARISTE: L'APPORT DES
MOUVEMENTS SOCIAUX LIBERTAIRES ET ANARCHISTES
RÉSUMÉ
Cet article traite de quelques postulats d'éducation et de culture politique antimilitaristes, fondés
sur des concepts, des significations et des expériences quotidiennes qui résident dans les
mouvements sociaux et dans les productions libertaires et scientifiques clairement guidé par
la résistance anti-autoritaire et anticapitaliste. Pour cela, je montre des dynamiques contraires
aux guerres, au militarisme et aux autres pratiques du terrorisme d'État, en soulignant le sens
politique indissociable des luttes sociales qui promeuvent la paix fondée sur la justice sociale,
l'égalité, la liberté et d'autres valeurs qui nous permettent de retrouver le art de vivre et respect
radical de l'être humain et de la vie sur la planète Terre.
Mots-clés: Éducation libertaire. Culture politique. Antimilitarisme.
INTRODUÇÃO
A defesa de uma educação antimilitarista é uma das mais importantes e significativas
possibilidades de vínculos entre a educação e cultura política. Neste texto
1
reflito acerca de
alguns pressupostos da educação e da cultura política antimilitarista, a partir de conceitos,
significados e vivências cotidianas que residem nos movimentos sociais libertários e
anarquistas pautados distintamente pela resistência antiautoritária e anticapitalista.
A luta antimilitarista fulgura dentre as mais radicais e atuais. Radicais porque
pertencem à gênese de tais movimentos, e atuais pelo desdobramento da cadeia produtiva da
violência transnacionalizada em larga escala e incorporada economicamente nas condições
gerais de produção nos principais Estados capitalistas sejam de capitalismo liberal (Estados
Unidos, Europa e outros), sejam de capitalismo de Estado (Rússia, China e outros). Decodificar
alguns aspectos da cadeia produtiva da violência é um trabalho de pesquisa de enorme
envergadura, porém as ideias aqui circunscritas procuram minar tal cadeia e imaginar uma
sociedade para além de seus imperativos. Recentes produções acadêmicas de minha autoria
apontam para essa busca utópica (MARIANA, 2008, 2014, 2017, 2020), e penso que a
decodificação dos sistemas de terrorismo de Estado seja uma temática de investigação
elementar para as Ciências Humanas. Os pensamentos científicos libertários e anarquistas
invariavelmente contribuem para isso.
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Pesquisa realizada com apoio da Universidade de Brasília através do edital DPI/DPG 02/2022.
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ANARQUIA EM DEFESA DA VIDA E CONTRA A GUERRA
Inicialmente, ressalto a singularidade do anarquismo enquanto contraponto das
guerras. Mesmo em momentos históricos peculiares cujas práticas anarquistas fizeram uso da
violência, o anarquismo jamais derivou ditaduras ou sistemas políticos autoritários e
sanguinários ao contrário das ideologias capitalistas liberais, fascistas, nazistas ou
bolcheviques. Estas ideologias permitiram o surgimento de guerras e atrocidades militares
inigualáveis na História. E mesmo o marxismo, que tanto inspira uma sociedade comunista, se
desenvolve à sombra dos Gulags e dos massacres do imperialismo russo-soviético: seus
significados teóricos jamais estarão alheios às suas práticas sociais e históricas. Mesmo com
suas infindáveis contradições e derivações ideológicas, o anarquismo pressupõe uma sociedade
antiautoritária, autogerida socialmente e de amabilidade mútua entre os seres vivos do planeta.
Os anarquistas opuseram-se sempre à guerra, mas não se opõe todos à
violência. São antimilitaristas, mas não necessariamente pacifistas. Para eles,
a guerra é o exemplo supremo da autoridade fora de uma sociedade e ao
mesmo tempo uma poderosa confirmação da autoridade dentro da sociedade.
A violência e a destruição organizadas da guerra são uma versão imensamente
aumentada da violência e da destruição organizadas do Estado: a guerra é a
saúde do Estado. O movimento anarquista tem uma sólida tradição de
resistência à guerra e à preparação da guerra. Alguns anarquistas apoiaram
guerras, mas foram sempre considerados como renegados pelos seus
camaradas, e esta total oposição às guerras nacionais é um dos grandes fatores
unificadores dos anarquistas. Mas os anarquistas distinguiram as guerras
nacionais entre Estados das guerras civis entre classes. (WALTER, 2000,
p. 27-28).
Ao mesmo tempo, a desobediência civil possui importante contribuição na recusa ativa
dos dispositivos do sistema capitalista. Henry Thoreau em sua célebre obra “A desobediência
civil” (1849), marca as reflexões acerca do repúdio ao pagamento de impostos exigidos pelo
Estado para financiamento de guerras anexação de territórios do México pelos Estados Unidos
em seu contexto histórico , e aponta para diversas outras formas de renúncia ao Estado através
do posicionamento da condição do ser humano para além de uma cidadania coagida.
O serviço militar obrigatório é um dos pressupostos dos Estados Nacionais ora para
organização política dos corpos de sua população, através da composição de suas Forças
Armadas, ora para efetivar guerras e “operações especiais” (aspas pelo eufemismo utilizado
pelos burocratas para eventuais morticínios). A obrigatoriedade do serviço militar generalizado
a toda população adulta é algo peculiar do Estado Moderno, e talvez essa seja a primeira mais
significativa ingerência sobre o controle dos sujeitos. Uma das mais importantes contestações
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desse sistema de controle massivo da população é o ato de não alistamento nas Forças Armadas,
ou a deserção. Contestação rara na atualidade, uma vez que a ausência de certificação de
alistamento acarreta na marginalização do sujeito, e nas suas mais diversas formas de
destituição dos direitos mais elementares para a vida. A deserção, e o abandono das ações
repressivas e mortíferas das Forças Armadas, por sua vez, caracteriza ato criminoso.
Maria Lacerda de Moura, em seu magnífico escrito “Serviço militar obrigatório para
mulher? Recuso-me! Denuncio!” (1933), desenvolvia alguns princípios radicais da luta
antimilitarista. Em primeiro lugar, Lacerda de Moura não poupou as ditaduras nazistas, fascistas
e bolcheviques, nem mesmo as iniciativas militares estadunidenses e outras que denominava
“organização social de canibais civilizados e intoxicados da ciência de matar”, ou “o suicídio
coletivo do gênero humano através da gigantanásia da técnica de guerra científica” (MOURA,
1999, p. 34). Importante ressaltar o contexto histórico entreguerras dos escritos da anarquista
Maria Lacerda de Moura, em que a indústria bélica empregava mão-de-obra masculina,
feminina e infantil. Notadamente na União Soviética observa-se o êxodo forçado de
camponesas para as fábricas de armamentos porém algo não tão diferente nos demais Estados
que consolidavam suas economias nacionais na cadeia produtiva da violência. A lucidez
antimilitarista e antinacionalista de Lacerda de Moura chega a desafiar o serviço militar
obrigatório com a própria vida:
Recuso-me a me alistar ou comparecera chamada geral de mobilização.
Recuso-me a cooperar, de qualquer modo, no exército de extermínio da vida
humana e do desrespeito a liberdade individual. Desde me considero
alistada ao lado daqueles que serão sacrificados, voluntariamente, a sanha
nacionalista. Prefiro morrer a matar. [...] Quem me poderá convencer de que
devo matar alguém? Que força humana pode armar meu braço para que eu tire
a vida de meu irmão? Quem tem o direito de impor a minha consciência o
dever de pegar em armas, de fabricar armas ou contribuir para o massacre de
uma guerra? (MOURA, 1999, p. 36-38).
Mas a sanha nacionalista não acalma os corações ressentidos e perversos. A fúria em
defesa de uma bandeira patriótica pode alcançar desvarios organizacionais na própria política
interna de segurança social do Estado, e são nesses desvarios que se emolduram as polícias
militares. Financiados para a manutenção da ordem hierárquica capitalista, ora alienados de
seus propósitos, ora vorazes na materialização de seus desejos atrozes: o polícia se apresenta
na vida cotidiana enquanto sujeito empoderado no monopólio da violência. No caso específico
do Brasil, a Polícia Militar opera para além das legalidades instituídas nas esferas estatais.
Responsável por numerosas execuções extrajudiciais, os denominados “esquadrões da morte”
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representam uma facção paramilitar que assassina impunemente todo e qualquer cidadão que
afronta a ordem estabelecida pela casta militar. Para além dos “esquadrões da morte”, diversos
grupos paramilitares se organizam em torno de trabalhos de segurança para setores da elite
financeira: as milícias protegem empresários e políticos profissionais que não poupam esforços
para garantirem seus interesses privados. As milícias privadas ostentam uma permissão velada
das autoridades judiciais para se apropriarem do monopólio da violência do Estado em
benefício escancarado à proteção de seus privilégios e usuras.
Importante destacar as diferenças entre milícias privadas e milícias populares. Se a
primeira volta-se para a consolidação da desigualdade social, as milícias populares se auto-
organizam em prol de plataformas de lutas sociais por direitos e pela igualdade social. A
principal diferença histórica entre as milícias privadas e as milícias populares reside na situação
de ordem social hegemônica em que estão configuradas. As milícias populares (em geral
compostas por trabalhadores e trabalhadoras de diversas origens, além de populações
originárias) são formadas a partir das necessidades de defesa dos direitos sociais, de territórios,
de bens públicos em geral. As milícias privadas (em geral compostas por militares e policiais
parte destes exonerados de suas instituições devido a comportamentos de extrema violência ou
de demência) são formadas a partir das necessidades de defesa dos privilégios capitalistas, ou
para apropriação de terras públicas e garantia de bens privados no geral. Milícias populares, ou
até mesmo exércitos populares, podem representar rupturas sociais antagônicas ao militarismo
mesmo que suas aproximações no que se refere ao uso de armamentos sejam delicadas zonas
de fronteira (como na Revolução dos Cravos, em Portugal).
Exemplos recentes de organizações populares armadas vinculadas aos propósitos de
Revolução Social encontramos no Exército Zapatista de Libertação Nacional e na luta das
mulheres no Curdistão, em Rojava muito bem analisadas em GENNARI (2002) e em
COMITÊ DE SOLIDARIEDADE À RESISTÊNCIA POPULAR CURDA DE SÃO PAULO
(2016), respectivamente. O controle territorial e as dinâmicas de autonomia social ancorada
em fundamentos de horizontalidade e de autorregulação do poder político são elementos
antagônicos ao militarismo do Estado e suas hierarquias e alienações. Tais movimentos sociais
possuem ampla contribuição para um sentido educativo focado na preparação para a vida social,
e dessa maneira transcendem as escolas, as práticas de educação popular, as memórias e
cadernos pedagógicos.
Para além das palavras é no reencontro da poesia da vida que as criações
históricas destes movimentos sociais materializam as heterotopias de um
mundo novo, em que o ser humano esteja construindo continuamente a
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resistência contra o urbanocentrismo, contra o especismo e, em última análise,
contra todas as formas de biofobia que se alastram através da cadeia produtiva
da violência. E ao ressignificar o pacifismo a partir da ótica da crítica radical
tais movimentos enredam um cotidiano de dignidade de luta social, e que
certamente nos inspira. (MARIANA, 2014, p. 200).
O aprendizado de lutas populares mais agudas pode ser significativo em situações de
resistência contra opressões do Estado, e muitas vezes são cruciais para desaguarmos em uma
das principais idealizações da educação: a preparação para a vida social.
PAZ E ANTIMILITARISMO
A cultura política libertária congrega um conjunto de habilidades para o fortalecimento
da autonomia social em relação ao sistema capitalista. Os coletivos anarquistas e libertários
permitem uma educação antimilitarista não apenas através da produção de conhecimento em
periódicos, revistas, fanzines, vídeos, etc., mas em especial nas ações diretas. As ações diretas
nos espaços públicos expressam outros olhares sobre a violência: os olhares desvirtuados que
se dilatam e condenam o estilhaçar de um vidro de uma agência bancária ou uma ocupação de
trabalhadores sem-terra em latifúndios são os mesmos que se cegam perante um momento de
violência cotidiana contra minorias ou de violações contra a vida e os direitos humanos.
Nesse sentido, o conceito de paz se complexifica, e se distancia em absoluto de apatia
ou passividade. A paz, no significado aqui proposto, engendra sua indissociabilidade com
justiça social, igualdade, alteridade, antiautoritarismo e respeito aos demais pressupostos
libertários. Ou seja, jamais concebemos a paz enquanto algo neutro, mas sim como uma práxis
determinada por significado político.
Em “Pacifismo e equilíbrio do terror”, Maurício Tragtenberg exalta a importância do
movimento pacifista mundial na contramão daquilo que denomina “equilíbrio do terror”, seja
o equilíbrio estabelecido pelas indústrias armamentistas estadunidense e soviética. Tragtenberg
denuncia os exorbitantes gastos bélicos, a venda e proliferação de armas para os países de
capitalismo atrasado entre as décadas de 1960 a 1980, e a contradição do emprego de recursos
ao complexo militar industrial incluindo pesquisas científicas para finalidades militares em
relação às necessidades de superação da fome endêmica no mundo. O texto faz importante
referência a manifestos de movimentos pacifistas que pedem “paz sem armas, substituição da
educação militar pelo ensino da paz nas escolas, desmantelamento dos arsenais nucleares a
Leste e Oeste, a interdição de mulheres prestarem o serviço militar” (TRAGTENBERG, 2011,
p. 449).
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Surpreendentemente o artigo de Tragtenberg, publicado originalmente em 1984,
possui uma atualidade excepcional, uma vez que afirma que
O movimento pacifista tem futuro na medida em que, além de suas
reivindicações expressas, mostrar seu esforço na superação das estruturas
capitalistas obsoletas no Ocidente e de capitalismo de Estado na URSS e
Leste. Sem isso, corre o risco de converter o pacifismo em retórica vazia.
(TRAGTENBERG, 2011, p. 449).
Impossível não contextualizar a ideia do autor na atualidade, em especial na conjuntura
da guerra na Ucrânia iniciada pela Rússia em 2022. As retóricas dos defensores da OTAN e dos
defensores da Rússia convergem unicamente na busca de algo infame: uma suposta justiça na
guerra e uma justificativa para gastos do complexo militar industrial. No caso do Brasil, o que
mais evidencia a retórica vazia da maioria dos denominados setores políticos da esquerda é,
por um lado, se pronunciarem favoráveis à justiça social, e por outro apoiarem as operações
militares russas na Ucrânia. Sob uma ingênua (ou cúmplice) ideia de que o inimigo do meu
inimigo é meu amigo ou seja, o imperialismo russo nos auxilia na luta social ao combater o
imperialismo estadunidense tais setores políticos negligenciam as atrocidades militares de
ambos os países envolvidos nesta guerra (que, aliás, concentram o maior número de
organizações nazistas e fascistas no planeta), além de se alienarem perante as dinâmicas de
transnacionalização das grandes empresas bélicas (que operam a partir de capital misto nos
conflitos mundiais e, numa macabra dinâmica econômica, se nutrem mutuamente da
concorrência de seus produtos no mercado do complexo militar industrial).
Em minha tese de doutorado (MARIANA, 2008) já discorri sobre certas dinâmicas de
transnacionalização de empresas armamentistas, em particular ao problematizar os impactos
socioambientais das indústrias bélicas no contexto dos Acordos Internacionais de
Desarmamento Nuclear. O caso da usina Kirovskii zavod (usina de incineração de sseis
nucleares na cidade de Perm, região dos montes Urais, Rússia) é exemplar: o programa de
queimamento de mísseis nucleares onde se queima a sucata do armamento e se recondiciona
a ogiva nuclear possui verba da transnacional Washington Group International repassada para
a empresa russa Mashinostroitel. Por um lado, os resultados são catastróficos para os habitantes
da região de Perm, que recebem os dióxidos altamente tóxicos liberados durante o queimamento
dos mísseis. Por outro lado, o capital rentabilizado nas empresas bélicas estadunidense e russa
reaquece a economia armamentista global.
Os coletivos antimilitaristas sensibilizavam a opinião pública sobre a importância do
fechamento da usina Kirovskii zavod.
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As estratégias de ação organizadas pela população, contrária à queima dos
mísseis e foguetes em Perm, estão impulsionadas pelo sucesso de protestos
populares antecedentes. A resistência contra o programa de queimamento de
mísseis em Perm possui amplo apoio popular, principalmente da comunidade
de Zakamsk, além das ações de cinco grupos de ativistas que atuam na cidade:
Movimento Resistência Anarco-ecológica, União da Segurança Química,
Movimento Autônomo de Moscou e outras cidades russas, Movimento contra
a Violência de Ekaterinburgo, Guardiões do Arco-Íris. As atividades
realizadas pela população de Perm e pelos grupos de ativistas englobam uma
gama muito variada de ações: acampamentos permanentes de protesto na
frente da usina Kirovskii zavod, bloqueios de prédios da administração,
panfletagem, reuniões públicas, performances teatrais, atos e manifestações.
(MARIANA, 2008, p. 42).
No texto “O futuro do movimento antinuclear”, Murray Bookchin problematiza a
dinâmica de tais movimentos e os interpreta na importância central das ações diretas. Exalta
que a “riqueza do movimento antinuclear consiste em dar conta quase intuitivamente da
necessidade de romper com o sistema e de agir eficazmente fora dele” (1998, p. 16). Para
Bookchin, não bastam os slogans “Não ao Nuclear” e restringirmos nossa crítica política ao
tema específico da luta antinuclear. Se trata, em realidade, de uma superação das relações de
exploração hierárquica da sociedade sobre a natureza, assim como da exploração do ser humano
sobre o ser humano. E o princípio da ação direta, nesse sentido, facilita o desenvolvimento de
uma outra cultura política sensível às nossas capacidades de auto-organização da vida social
para além de uma burocracia técnica de “experts” e políticos profissionais descomprometidos
com a garantia do equilíbrio ecológico da vida planetária.
O princípio da acção direta o é outra coisa senão o alargamento da
assembleia da cidade livre, o meio pelo qual cada indivíduo redescobre as
energias escondidas em si próprio e readquire a confiança nas suas
capacidades e nos seus próprios conhecimentos. A acção direta é o meio pelo
qual o indivíduo pode assumir diretamente o controlo da sociedade sem
recorrer a representantes que usurpam não o poder, mas também a
personalidade de um eleitorado passivo e espectador que vive na sombra do
eleito. (BOOKCHIN, 1998, p. 18).
O princípio educativo intrínseco à cultura política da ação direta libertária
complexifica as noções restritas de cidadania voltada para a mera atuação nas esferas do Estado,
expandindo as potencialidades da educação para a vida social. A condição humana reduzida à
condição cidadã imposta pelas ordens estatais passa a ser questionada, e a própria possibilidade
de uma sociedade contra o Estado (CLASTRES, 1988) pautada em pressupostos da democracia
direta para além de aristocracias da democracia representativa (GRAEBER, 2011), reergue-se
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perante uma civilização alienada nos nacionalismos e seus decorrentes militarismos. E imaginar
a possibilidade de outras configurações societárias para além do Estado selvagens, nômades,
indomáveis, rebeldes é o ponto central de uma educação antimilitarista.
A ordenação do vivente depende da consciência humana. A preocupação de
harmonizar as espécies segundo um equilíbrio de vida recusa o equilíbrio
estatístico que a miséria, a epidemia, a guerra, os massacres opuseram até
agora à proliferação selvagem da flora, da fauna e da sociedade dos homens.
[...] Assim se perpetua por inércia o velho reflexo de obediência que durante
tanto tempo ocultou a vontade e a consciência de conceder ao vivente o
privilégio de fundar um projecto social. (VANEIGEM, 2003, p. 129-130).
O pressuposto nacionalista de organização social é o mesmo pressuposto do
militarismo. Nasce da subjugação que ambos imprimem a outras formas de ser e estar na
sociedade. Pensar um lugar autônomo para comunidades, populações e povos coexistindo no
mesmo território da Nação torna-se temerário para a soberania nacional. Aliás, a
autodeterminação dos povos sempre se configurou como algo arriscado nos projetos
nacionalistas, pois colocam em xeque a lógica da centralização do poder político e do
monopólio do uso da violência. Enquanto possibilidades de construção de autonomia política
que apontam para o futuro, os territórios indígenas e quilombolas no Brasil representam tal
contradição mesmo incrustrados num Estado genocida, racista e escravocrata.
A ideologia nacionalista se institucionaliza no Estado-Nação e se autonomiza perante
seu próprio povo: sua preponderância perante a vida humana é exortada pela necessidade do
ato de morrer pela Pátria em casos de guerra. Tal alienação se corrobora, ainda, na tríade
sentença “Deus, Pátria e Família”: um único Deus que captura todas as outras formas de
espiritualidade humana; uma única Pátria que esmaga as demais experiências de organização
social; uma única família pautada por laços de sangue que renega a autoconstrução identitária
de agrupamentos humanos. Aliás, imprescindível evidenciar a irracionalidade perpetuada por
tais institucionalidades, e que atingem suas mais expressivas perversidades nas ideias
incompatíveis entre si das “guerras justas” ou das “guerras santas”.
A alienação militarista atinge sua ostentação no lema ideológico “ordens são ordens”
em que as patentes inferiores cumprem ordens das patentes superiores sem poder questioná-
las, e nem mesmo nos casos de violação dos direitos humanos. E muitas vezes as ordens
militares se autonomizam em relação aos seus sujeitos, que nem sequer compreendem a
natureza e o objetivo de determinada ordenação. O lema militar “ordens são ordens” é satirizado
magistralmente na obra cinematográfica de Jorge Furtado, seja o curta-metragem “O dia em
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que Dorival encarou a guarda” (1986), e que se tornou uma obra de arte antimilitarista
atemporal.
CONCLUSÃO
A alienação social e a hierarquia são características fundamentais do capitalismo e, por
sua vez, do militarismo. Todas as práticas educativas que se oponham a estes elementos
contribuem para o exercício da consciência/responsabilidade de nossos atos e para uma
sociedade igualitária e horizontal. Mas no contexto das guerras e do desenvolvimento da
cadeia produtiva da violência observamos dois deslocamentos diferentes na área da educação.
Por um lado, a dinamização de experiências escolares inovadoras que incorporam uma cultura
de paz para afrontar e transcender uma sociedade agressiva; por outro, uma cultura de
hostilidade marcada pelas escolas militarizadas, e pelas guerras e conflitos que ocasionam
desestruturações ou mesmo destruições de sistemas escolares inteiros, e mortes de estudantes,
professores e trabalhadores da educação.
Em nossa memória antimilitarista elemento significativo para nossa reflexão o
fuzilamento de Francisco Ferrer Y Guardia, Janusz Korczak e seus estudantes no campo de
extermínio, a experiência educacional da Colméia fundada por Sébastien Faure “vítima, como
tantas outras obras edificadas com amor, da guerra odiada para sempre” (FAURE apud
MORIYÓN, 1989, p. 144) jamais estarão relegadas ao esquecimento. E que essa memória
jamais esteja pautada por ódio ou desespero. Peço licença para transportar a ideia de
(re)existências indígenas de Case Angatu para agraciar todas as vítimas das hostilidades acima
referidas através de nossa sublime ancestralidade: “Ao invés do rancor deveríamos cultivar a
memória como uma planta que brota e cria raízes em nossas angas (almas). Quando deixarmos
esta forma física humana... encantaremos e faremos parte da natureza” (ANGATU, 2017, p.
129).
As experiências escolares libertárias aportam uma tradição de práticas pedagógicas
humanizadoras e emancipatórias. Diversos estudos discorreram sobre tais práticas que
permanecem guardiãs de uma educação antiautoritária, tais como Tolstoi (1977), Solà (1978),
Moriyón (1989), Lipiansky (1999) e outros. Na atualidade, a Escola Paidéia escola anarquista
situada em Mérida, Espanha incorpora em um de seus pressupostos uma educação para a não
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La ira nos genera la violencia y su materialización es la guerra; pero la guerra
no es únicamente la confrontación de los ejércitos para imponer la hegemonia
de su domínio, la guerra es la actitud cotidiana que confronta constantemente
a cada persona con l@s semejantes que le rodean, y esa guerra subterránea y
persistente es el germen de cualquier acto de muerte; cuando se aniquila la
alegría, que es un sentimento congratulante, lo único que se produce es la
tristeza; por lo que a la hora de elegir se opta por lo que nos desvalora e
negativiza, en lugar de concentrar las energías en engrandecer el valor y el
sentimiento positivo. [...] Si fuéssemos capaces de erradicar de nuestra esencia
personal el deseo de poder y la cambiásemos por el de crear, posiblemente las
guerras de ejércitos no podrían llegar a materializarse. (MATEO apud
LUENGO, 2006, p. 123).
Vivemos um momento histórico único na História da Humanidade: a possibilidade
efetiva de extinção da espécie humana e das infinitas formas de vida na Terra. Tal potencial
inédito é possibilitado pelo desenvolvimento das forças armadas planetárias em especial pelos
armamentos nucleares, químicos, biológicos e outros.
O militarismo nos ultraja: desde suas ditaduras militares aos exércitos humanitários e
suas “operações especiais”, das violências sexistas às veleidades disciplinares e uniformes
ensanguentados. As guerras são crimes contra a humanidade. Mesmo que o desenvolvimento
da cadeia produtiva da violência atinja proporções monstruosas, a educação e a cultura política
antimilitaristas sempre representarão um dos movimentos fundamentais para que possamos
repensar a condição humana e nossos desígnios enquanto seres vivos.
Humanizar a sociedade é não hierarquizar seres humanos. Emancipar a sociedade do
capitalismo é, antes de tudo, combater os fundamentalismos políticos e religiosos, abolir as
fronteiras, desmilitarizar o mundo em todos os seus extensos tentáculos sombrios. E superar a
condição humana significa reencontrar a legitimidade de vida plena em todos os seres vivos
que estejam em harmonia ecológica.
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