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INSURREIÇÃO, AUTOGOVERNO E VIVER SEM ESTADO NA MESOAMÉRICA
COMUNALISTA
João Francisco Migliari Branco
Universidade de São Paulo, Brasil
joaobranco@usp.br
RESUMO
Barbárie, terror de Estado, ecocídio e a reiteração de figuras de fins de mundo vêm consumindo
as relações sociais na atualidade, em especial durante a pandemia. Em contrapartida, este
também é um tempo de insurreições e da existência de sociedades comunalistas que se
organizam em torno do autogoverno e da autonomia, especialmente no México; isto, é que
desprezam as instituições estatais para organizar a vida comunitária. Reiterando que são
pensamentos que envolvem humanidades, em que uma não se afirma sobre a outra, o viver sem
governo também é horizonte do pensamento anarquista; este texto procurar articular escritos de
Ricardo Flores Magón, David Graeber e Piotr Kroptkin para pensar em princípios como a
autogestão, a autonomia, o apoio mútuo e a livre associação em tempos brutos.
Palavras-chave: Autonomia. Apoio mútuo. Insurreição.
INSURRECCIÓN, AUTOGOBIERNO Y VIVIR SIN ESTADO EN LA
MESOAMÉRICA COMUNALISTA
RESUMEN
La barbarie, el terror de Estado, el ecocidio y la reiteración de figuras del fin del mundo han ido
consumiendo las relaciones sociales en la actualidad, especialmente durante la pandemia. Por
otro lado, esta es también una época de insurrecciones y de existencia de sociedades comunales
que se organizan en torno al autogobierno y la autonomía, especialmente en México; es decir,
desprecian las instituciones estatales para organizar la vida comunitaria. Reiterando que son
pensamientos distintos, en los que uno no se impone sobre el otro, vivir sin gobierno es también
el horizonte del pensamiento anarquista; Este texto busca articular escritos de Ricardo Flores
Magón, David Graeber y Piotr Kroptkin para pensar principios como la autogestión, la
autonomía, el apoyo mutuo y la libre asociación en tiempos difíciles.
Palabras clave: Autonomía. Apoyo mutuo. Insurrección.
INSURRECTION, SELF-GOVERNMENT AND STATELESS LIVING IN
COMMUNALIST MESOAMERICA
ABSTRACT
Barbarism, state terror, ecocide and the reiteration of end-of-the-world figures have been
consuming social relations today, especially during the pandemic. On the other hand, this is
also a time of insurrections and the existence of communalist societies that are organized around
self-government and autonomy, especially in Mexico; that is, they despise state institutions for
organizing community life. Reiterating that they are distinct thoughts, in which one does not
assert itself over the other, living without government is also the horizon of anarchist thought;
This text seeks to articulate the writings of Ricardo Flores Magón, David Graeber and Piotr
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Kroptkin to think about principles such as self-management, autonomy, mutual support and
free association in rough times.
Keywords: Autonomy. Mutual support. Insurrection.
INSURRECTION, AUTONOMIE GOUVERNEMENTALE ET VIE APATRIDE EN
MESOAMERIQUE COMMUNALISTE
RÉSUMÉ
La barbarie, la terreur d'État, l'écocide et la réitération des figures de la fin du monde ont
consumé les relations sociales aujourd'hui, en particulier pendant la pandémie. D'autre part,
c'est aussi une époque d'insurrections et d'existence de sociétés communalistes qui s'organisent
autour de l'autonomie et de l'autonomie, notamment au Mexique ; c'est-à-dire qu'ils méprisent
les institutions étatiques pour organiser la vie communautaire. Réitérant qu'il s'agit de pensées
distinctes, dans lesquelles l'une ne s'affirme pas sur l'autre, vivre sans gouvernement est aussi
l'horizon de la pensée anarchiste; ce texte cherche à articuler les écrits de Ricardo Flores Magón,
David Graeber et Piotr Kroptkin pour réfléchir à des principes tels que l'autogestion,
l'autonomie, le soutien mutuel et la libre association dans les moments difficiles.
Mots clés: Autonomie. Support mutuel. Insurrection.
Em memória de David Graeber, Gustavo Esteva, Don,
Bruno, Samir, Paulino, Nochixtlán e tantas e tantos que nos
faltam. E ainda faltam 43.
INTRODUÇÃO
Na nossa forma de ser naturalmente a não existência do
Estado já é fato. O Estado é sempre o capataz. Excludente
de ilicitude não é novidade prá gente. A coroa portuguesa
declarou guerra justa aos povos que não aceitavam a
conversão ao Cristianismo. Isso é excludente de ilicitude.
existe 521 anos. Miliciano? O que é o miliciano? O
que é o bandeirante? O que é o capitão do mato? Eles são
os milicianos! Por isto que não se trata de tomar poder, de
empoderamento, de apoderamento. Oxê…Trata-se da luta
cotidiana fortalecendo outras possibilidades de autonomia,
de construir esses outros mundos possíveis.
(Casé Angatu)
“Aquilo que você deveria saber é o seguinte: os mortos não
ficam onde estão enterrados.”
(John Berger)
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Pouco mais de dois anos atrás, enquanto parte do mundo podia se fechar em casa na
crise sanitária, e enquanto Big Techs e corporações transnacionais elevavam seus lucros, um
manifesto redigido por movimentos indígenas detonava a epidemia das figuras do fim do
mundo. “Por que podemos imaginar o fim do mundo, mas não o fim do colonialismo? Vivemos
o futuro de um passado que não é nosso. É uma história de fantasias utópicas e idealização
apocalíptica. É uma ordem social global patogênica de futuros imaginados, construída sobre
genocídio, escravização, ecocídio e ruína total.”. Virulento e realista, o manifesto identificava
o impulso apocalíptico de um projeto de sociedade que, de tão totalitária e etnocida, nos deixam
“ávidos por serem os sobreviventes solitários do “apocalipse zumbi” (INDIGENOUS
ACTION, 2020).
No fundo, a figura do apocalipse escamoteia algo muito pior, o curso de uma guerra de
extermínio contra determinados territórios, contra as periferias, o assassinato sistemático da
população negra e indígena como política de Estado. É evidente que estamos diante de um
colapso; mas este é apresentado como fatalidade, um curso da História, apartado da
responsabilidade que o capitalismo, o desenvolvimento e o progresso gestam: o desastre, o
ecocídio, o descarte de milhões de seres humanos. O apocalipse sugere a noção de que estamos
envolvidos em condição de igualdade na barbárie, assim presidindo uma sensação de
conformidade com o terror e a violência estatal-empresarial; no final das contas, o ar de fim de
mundo oferece a macabra sustentação para batermos a meta da sobrevivência a qualquer custo,
não importa como, sobre os ossos dos corpos daqueles que são “diferentes”. É assim que os
“sobreviventes solitários do apocalipse zumbi” incorporam o intolerável no cotidiano, e assim
vamos tocando em frente enquanto este projeto civilizatório segue a cada dia produzindo uma
notícia trágica, mortes e assassinatos de lutadores sociais, as chacinas nas favelas, a lama de
rejeitos que não cessa de escorrer, as balsas do garimpo na Amazônia arquitetando um
verdadeiro Mad Max fluvial, a draga da mineração tragando crianças ianomâmis, os indivíduos
estatizados, as zonas de sacrifício para o Deus Mercado materializando o sem-fim dessa marcha
destruidora que não irá parar enquanto nosso projeto de vida for sobreviver solitariamente na
guerra da gente contra gente.
Conveniente, o ar do fim do mundo condensa o ar da falta de expectativa, da falta de
alternativas. É um ato desse projeto civilizatório sádico, que encarrega a indústria
cinematográfica de oferecer até à exaustão a avalanche dos multiversos fictícios, o aranhaverso,
o Dr. Estranho, o upside down, enquanto o cotidiano fora das telas é assolado pelo “deserto do
real” expresso pela hegemonia da monocultura humana. Na distopia nossa de cada dia, é
soberano o Estado que provê as duas palavras que Ferréz agrupou: dependência e repressão.
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Desastre e política de morte são convenientes para o estabelecimento de um mecanismo de
gestão que concilia contenção, projetos sociais e violência como partes que se complementam,
o fazer Estado, produzir ordem, na definição de Luana Motta (2017).
“Tudo vai desmoronar; é uma questão de tempo”, diz um filme da moda dos
multiversos. Entre as várias dimensões como consumo de entretenimento e a falta de
possibilidades como real consumo, Isabelle Stengers tinha razão: são as alternativas infernais.
Não paramos, não desaceleramos, não sentimos; e talvez isso tudo seja porque dizem que o
futuro foi definido, entre a ausência da autonomia e a inevitabilidade do destino. Como afirma
Stengers,
Por “alternativas infernais”, nós entendemos um conjunto de situações
formuladas e agenciadas de modo que elas não deixam outra escolha senão a
resignação, pois toda alternativa se encontra imediatamente taxada como
demagogia: “alguns afirmam que nós poderíamos fazer isso, mas olhem o que
eles estão escondendo de vocês, olhem o que aconteceria se vocês os
seguissem.” O que se afirma com toda alternativa infernal é a morte da escolha
política, do direito de pensar coletivamente o futuro. [...] descrevemos a
montagem dessas alternativas como um ataque de “feitiçaria” que captura as
potências de agir, de imaginar, de existir e de lutar. (STENGERS, 2017,
online).
Isso se faz com terrorismo de Estado, com o extermínio daquelas que são alvo da
sociedade sacrificial capitalista exatamente por também serem o sol, por existirem e oferecerem
um outro cenário ao fim do mundo: as sociedades sem Estado. Povos indígenas, assim, são alvo
e agredidos diretamente porque evidenciam a indissociabilidade entre Estado e totalitarismo:
este se move pela anulação da diferença, por reduzir o múltiplo ao unitário, por encapsular
diversos povos sob a artificialidade da nação. O projeto do Estado, afirma Viveiros de Castro,
impõe o absoluto: o indivíduo requer o Estado; o Estado requer o indivíduo. Já o selvagem
quer multiplicar os múltiplos (CASTRO, 2011, p. 304).
Fora de Hollywood e dos serviços de streaming, a multiplicidade vem enfrentando um
sério risco de esgotamento, por meio da ação predatória da mineração, do garimpo,
megaempreendimentos energéticos, o frenesi pelo crescimento e desenvolvimento, nossas
baterias de celulares que movem o extrativismo voraz de rochas e minérios em um processo
irreversível. Em suma, é como se Belo Monte fosse expandida para o mundo com a brutal
diferença que não sofremos a destruição que devastou os povos da bacia do Xingu. Não
sofremos e nem sentimos por eles.
Mas afinal, alguém tem que pagar pelo progresso, não? A draga capitalista move o
extermínio físico, avança na conquista territorial e também opera no terreno figurativo,
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capturando os signos da disrupção. A draga totaliza a experiência capitalista quando os próprios
agentes criminosos da devastação se colocam como os protagonistas da causa ambiental.
Enxurradas de propagandas de mudança do mundo, stakeholders, empresas cidadãs e
sustentáveis, a roupa atual do capitalismo corporativo engajado no salvamento do planeta
enquanto seu lodo sufoca famílias e culturas no estouro das barragens.
Mas os conceitos têm memória. Este texto tem a intenção de refletir sobre esta, porque
residem os princípios de uma ética revolucionária e ação política que é o anarquismo. Ao
mesmo tempo, e com todo cuidado de afirmar que não se trata da mesma coisa, o texto traz
referências de sociedades sem governo e lutas sociais que desafiam o Estado e a partidocracia
no México hoje, porque o tema “sociedade contra o Estado” não está confinado em prateleiras
de bibliotecas; elas existem hoje. o são anarquistas, não estão alinhadas à uma corrente
política de origem europeia; mas materializam, na atualidade, o que é viver sem governo
assim como os mapuches, Rojava e outras localidades. Práticas de extrativismo acadêmico, por
muito tempo, subestimaram e destinaram às questões indígenas uma prateleira “inferior” no
que se refere a fazer política; a preocupação, neste texto, não é colocar um sobre outro, nem
colar uma etiqueta anarquista sobre algo que outros povos não são. Entretanto, perspectivas
críticas às funções do Estado, ou melhor, a capacidade política de se auto-organizar sem a
regulação de instituições estatais, é um tema político que toca diversas formas de associação,
entre eles anarquistas e sociedades comunais. Um diálogo entre humanidades, bem longe de
unificar o que não pode ser absoluto.
No fundo, estamos refletindo sobre desastres e princípios, porque afinal este é o nosso
tempo. E assim, examinando a guerra entre a hegemonia capitalista que se instala mente adentro
e a força da organização coletiva das sociedades sem Estado e dos princípios anarquistas como
apoio mútuo, autogestão e ação direta, este texto propõe retomar a presença de Piotr Kropotkin
e seu livro “Apoio Mútuo: fator de evolução”, com leituras do antropólogo anarquista David
Graeber, a ação revolucionária de Ricardo Flores Magón e a formação de autogovernos em
algumas localidades do México de hoje.
A draga se move para tragar a importância e atualidade do “Apoio Mútuo”; este texto
procurar contribuir para enxergar algumas localidades que, com férrea disposição, colocam
algumas pedras para frear a sua engrenagem na atualidade.
“ESTOU CANSADA DO FUTURO”
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Agatha, precog de Minority Report.
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Convidado para escrever o prefácio de “A Conquista do Pão”, Elisee Reclus via na
revolução anarquista a consequência natural para o “fim de um mundo”: “Não é um século que
se termina, é uma época, é uma era da história que acabam. É toda a antiga civilização que
finda. O direito da força e o capricho da autoridade, a dura tradição judaica e a cruel
jurisprudência romana não nos dominam mais.” (RECLUS, 1975, p. 2). Épocas distintas e ainda
assim presididas pelo ar do fim. Talvez porque a história seja cíclica, Gustavo Esteva, falecido
na pandemia, também revoltado como Kropotkin, também escreveu sobre o fim de uma era,
mas desta era no século 21:
El mundo que conocemos llega a su fin. En todas partes se están sentando las
bases de un régimen autoritario sin precedentes, que se impondría como
sustituto del actual régimen político y económico aprovechando el miedo, el
caos y la incertidumbre propios de la transición a una nueva era[...]
No es una buena noticia. Lo que se ha instalado en su lugar es aún peor que el
capitalismo. Se regresa a las formas de despojo propias del pre-capitalismo,
de la acumulación originaria que dio lugar al modo capitalista de producción,
y se desmantela la fachada democrática que se mantuvo para la operación del
sistema, porque sólo con autoritarismo abierto y creciente control se puede
continuar con el despojo y la destrucción de la naturaleza que caracterizan al
nuevo régimen. (ESTEVA, 2015, p. 2).
“Declaro que não acredito nas narrativas que instituem um lugar que é depois, que é o
futuro”. Foi assim que Ailton Krenak respondeu ao ser perguntado recentemente sobre o que
gostaria de falar para os jovens sobre o futuro, clamando por um “um desmanche dessa ideia”
e questionando sobre o que é esse futuro “de quem, do futuro do colonizador, da Vale, desse
mercado comendo a gente? É esse que todos viramos mercadoria e o futuro tá logo ali. Discutir
essa narrativa de progresso, desenvolvimento, futuro. Que papo furado”
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.
Como escreveram Maldonado e Jaulin, a prefiguração do futuro escamoteia uma
retórica colonial, absoluta. Nega a perspectiva plural encarnada pelas sociedades indígenas,
aquelas que vivem sem o Estado:
Esta visión totalitaria del mundo por construir no es compartida por las
culturas originarias, salvo cuando han sido colonizadas y la enajenación ha
implicado penetración del imaginario. Al abundar en el universo que esas
culturas totalitarias, etnocidas y colonialistas persiguen, señala que “el
universo que tenemos que hacer puede ser la vida en el Más allá, en un paraíso,
o puede ser el paraíso de la cultura internacional del proletariado, o la visión
evolucionista y progresista de un mundo industrial, moderno, o lo que sea.
Pero siempre es un mundo único y por hacer, al contrario de las culturas
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UFMG, Diálogos pela (re)existência em um mundo comum.
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que corresponden a un mundo plural y hecho”. (MALDONADO, 2010, p.
28. Grifos meus).
Infernal, o destino levou o antropólogo anarquista David Graeber ainda no primeiro ano
de pandemia. É emblemático que um de seus últimos textos publicados tenha sido sobre “Apoio
Mútuo: fator de evolução”. Trazendo a importância de Kropotkin para questões latentes nos
dias de hoje, o artigo de Graeber e Grubacic oferece um título preciso: “A atualidade
revolucionária do conceito “apoio mútuo” de Piotr Kropotkin”. Para os autores, o radicalismo
da obra de Kropotkin é atual pelo horizonte apontado: a alternativa viável à barbárie
capitalista é o socialismo sem Estado. Também é revolucionário porque seu trabalho
contestou a competividade e a sobrevivência dos mais fortes, o “gene egoísta”, a
instrumentalização perversa promovida pela burguesia sobre o trabalho de Darwin. Kropotkin
comprovou o contrário: no mundo natural sobrevivem os mais organizados, não os mais fortes.
Isso se deve à cooperação. Em tempos de brutalismo puro, o vigor contra hegemônico de
“Apoio Mútuo” é marcante.
Nas palavras de Graeber e Grubacic, a versão dominante da ciência darwinista era uma
“tentativa de catapultar as perspectivas das classes comerciais à universalidade. Se não foi, no
fim de contas, completamente bem-sucedida, foi parcialmente devido ao próprio poder do
contra-argumento de Kropotkin” (GRAEBER; GRUBACIC, 2020, p. 3). Isto é: o contra-
argumento de Kropotkin é revolucionário e atual por desnaturalizar a figura do Estado, tendo
na cooperação, na livre associação a na ausência das instituições estatais os elementos
fundamentais da humanidade:
Por último, también traté de indicar brevemente la enorme importancia que
tienen todavia las costumbres de apoyo mutuo transmitidas en herencia por el
hombre a través de un periodo extraordinariamente largo de su desarrollo,
sobre nuestra sociedad contemporánea, a pesar de que se piensa y se dice que
descansa sobre el principio de: "cada uno para y el Estado para todos",
principio que las sociedades humanas nunca siguieron por entero y que nunca
será llevado a la realización, íntegramente (KROPOTKIN apud
MALDONADO, 2010, p. 273).
É que em “Apoio Mútuo”, a partir do estudo sobre como se exerce o poder, Kropotkin
faz uma reflexão sobre a condição humana: não se trata apenas da natureza do governo,
mas da natureza da própria natureza isto é, da realidade” (GRAEBER; GRUBACIC,
2020, p. 3). É revolucionário, por fim, porque mais de 100 anos atrás propunha, como
teoria radical e prática revolucionária, o “antídoto” para o ataque de “feitiçaria” que captura as
potências de “agir, de imaginar, de existir e de lutar” (STENGERS, 2017, online). E talvez isso
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seja possível recuperando a capacidade de... agir, imaginar, existir, lutar”. Foi o que
Kropotkin fez: observar os outros mundos que não só este devastado pelo desastre capitalista.
“SIN GOBIERNO”
Este é um dos significados da militância de Ricardo Flores Magón, do movimento
anarquista mexicano no início do século XX e sua participação na Revolução Mexicana. Magón
entendia que nos territórios indígenas repousavam os elementos que davam concretude à utopia
revolucionária anarquista. Mas não no sentido de progresso, de que a sociedade revolucionária
estabelecia um patamar posterior e avançado da humanidade. Magón aprendeu com outra
versão de anticapitalismo, realizado no presente e não em um imaginário futurista e utópico: a
vida comunitária indígena na Mesoamérica. Trânsito fluido entre passado e presente ofereciam
as bases para a sociedade anticapitalista e anarquista no México revolucionário.
Filhos de camponeses e de origem mazateca na atual Oaxaca, os irmãos Magón
conviveram com o coletivismo que caracteriza a vida índia e com o terror colonialista. Isso tudo
moveu entre os Magón o entendimento de que a revolução é inseparável da centralidade que a
população indígena ocupa no México, isto é, do comunalismo que praticam. Magón definia o
anarquismo como “ordem baseada no apoio mútuo” e viu no comunalismo seus elementos
centrais: a propriedade comum da terra e o apoio mútuo, às quais ele acrescentou o ódio à
autoridade:
Por muchas razones, para Ricardo Flores Magón estaban íntimamente ligados
la revolución y el indio, tanto por ser la mayoría de los explotados, como por
ser militantes en contra de ella y por tener ellos viva la práctica histórica de la
ayuda mutua. Los pueblos índios tienen en el magonismo una propuesta
revolucionaria que exige um conocimiento profundo de la realidad indígena,
porque no le interesan los indios como carne de cañon ni como imagen a
manipular, sino como comunidades y pueblos de gentes con una experiencia
histórica trascendental. (MALDONADO, 2011, p. 15).
“Sin Gobierno”, “SinAutoridad”, Muera la Autoridad” e Sin Jefes” são alguns dos
inúmeros textos e artigos nos quais Flores Magón expõe toda sua crítica ao poder burguês, como
em Gobierno?”, onde o anarquista critica a crença na necessidade do chefe supremo e
apresenta a vida comunitária mexicana como referência para a inutilidade da autoridade:
¿GOBIERNO? Hay personas que de buena fe hacen estas preguntas: ¿cómo
he de ser posible vivir sin gobierno?, y concluyen diciendo que es necesario
un jefe supremo, un enjambre de funcionarios, grandes y chicos, como
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ministros, jueces, magistrados, legisladores, soldado, carceleros, polizontes y
verdugos. (MAGON, 2014, p. 50).
Mexicanos: recordad cómo han vivido las poblaciones rurales de México. En
las rancherías se ha practicado el comunismo; la autoridad no ha hecho falta;
antes, por el contrario cuando se sabía que algún agente de la autoridad se
acercaba, huían los hombres al bosque, porque la autoridad solamente se hacía
presente cuando necesitaba hombres para el cuartel o contribuciones para
mantener a los parásitos del gobierno, y, sin embargo, se hacía la vida
tranquila en esos lugares donde no se conocían las leyes ni amenazaba el
gendarme con su garrote. La autoridad no hace falta más que para sostener la
desigualdad social. Mexicanos: ¡Muera la autoridad! ¡Viva Tierra y LibertaD!
(MAGON, 2014, p. 51).
Isso não significa que povos do território mesoamericano sejam anarquistas. Significa
observar seu cotidiano de autogestão, autogoverno e democracia direta. Os magonistas
entenderam isso e construíram relações com diversos povos, a se destacar os yaquis e as
comunidades de Morelos reunidas em torno do Exército Libertador do Sul e seu general
Emiliano Zapata. O Plan de Ayala, o documento fundamental do zapatismo revolucionário,
trazia para suas linhas o que Magón tinha exposto em seus escritos e militância, com especial
presença das teses agraristas reunidas no emblema Tierra y Libertad, cunhadas por Magón e
levadas adiante por Emiliano Zapata e seus aliados. A propriedade coletiva da terra e seu uso
comum davam o sentido ideológico da revolução para magonismo e zapatismo, no
entendimento de que todo es de todos, garantido por um poder exercido como serviço,
submetido à tomada de decisão coletiva em assembleias comunitárias. Uma proposta política
tão forte que atravessou o século XX e sobreviveu a um mundo destruído por fascismos e super
potências industriais que causaram a primeira, a segunda e a “terceira guerra”, arrastando golpes
e invasões territoriais, ameaças nucleares e paranoia global. E ali, no final do culo XX,
comunidades organizadas de ascendência maia em Chiapas pegaram em armas, traçaram a linha
onde de um lado ficava o território autônomo e de outro lado o Estado e, por meio de sua cultura
política maia secular, reconstituíram os lemas magonistas e zapatistas como “el pueblo manda
y el gobierno obedece”, “para todos todo, nada para nosotros”, por onde trafega desde os anos
oitenta o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN).
Hoy la lucha índia en México es por autonomía y la autonomía no puede ser
entendida sin autogestión, por lo que el anarquismo --en tanto corriente de
pensamiento y como experiencias históricastiene mucho que aportar en el
alumbramiento de la nueva sociedad mexicana; la más consistente corriente
anarquista en México, el magonismo, puede ser una forma de identidad capaz
de recoger experiencias en función de nuevos planes. La definición magonista
de anarquía como “orden basado en el apoyo mutuo” (Ricardo Flores Magón,
1980:96) sintetiza el aporte de Kropotkin con la característica histórica de
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organización de los pueblos indios y abre una perspectiva de discusión sobre
estas sociedades, que no son un paraíso pero se han esforzado y organizado
para tratar de serlo. (MALDONADO, 2011, p. 15).
O comunalismo indígena, que Benjamin Maldonado define como a coluna vertebral do
ser índio, se materializa no uso da terra, na propriedade comunal, no poder como reciprocidade,
nas tomadas de decisões coletivas em assembleia, nas festividades comunais. Utopia praticada
e remoção do Estado no horizonte: no México revolucionário a vida indígena é fundamental
para a definição ideológica da luta expropriadora e da revolução. Não é uma referência idílica,
mas sim política ao oferecer um horizonte autônomo e sem governo, por meio da organización
de la vida a través de la ayuda mutua, la prueba de que es posible construir una sociedad
distinta y propia(MALDONADO, 2012, p. 49). Magón entendia as estruturas organizativas
índias como referência para uma sociedade revolucionária que teria que exercitar uma vocação
comunal, como os povos originários da Mesoamérica ainda fazem: mentalidade comunal e
território comum mantendo uma estrutura antiestatal antes da luta de classes.
O comunalismo índio de Oaxaca finca na terra a contribuição fundamental de
Kropotkin. Fácil explicar porque David Graeber abre um de seus livros mais importantes,
“Fragmentos de uma Antropologia Anarquista”, recorrendo a Kropotkin para ilustrar a
sociabilidade sem governo:
“Anarquismo: Nombre dado al principio o teoría de la vida y la conducta que
concibe una sociedad sin gobierno; sociedad en la que la armonía se obtiene
no por la sumisión a la ley, ni por la obediencia a la autoridad, sino mediante
acuerdos libres entre los diferentes grupos, territoriales y profesionales,
constituidos libremente para la producción y el consumo, así como para la
satisfacción de la infinita variedad de necesidades y aspiraciones de un ser
civilizado.” (Piotr Kropotkin, EncyclopediaBritannica). (GRAEBER, 2011, p.
3).
Quando redigiu este livro, Graeber via um contexto de aproximação de diversas lutas
sociais aos princípios políticos do anarquismo (autonomia, associação voluntária, autogestão,
ajuda mútua, democracia direta), nos movimentos antiglobalização nos países do Atlântico
Norte e também no México tomado pelas cores zapatistas. A característica política comum é
que apresentam outros referenciais para o que significa revolução, a partir da recusa à toma do
poder:
Los principios básicos del anarquismo autoorganización, asociación
voluntaria, ayuda mutua se refieren a formas de comportamiento humano
que se consideraba habían formado parte de la humanidad desde sus inicios.
Lo mismo se puede decir de su rechazo del Estado y de todas las formas de
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violência estructural, desigualdad o dominio (anarquismo quiere decir,
literalmente, “singobernantes”), y también del reconocimiento de que todas
estas formas se relacionan y refuerzan hasta certo punto entre sí. [...] el rechazo
de certo tipo de relaciones sociales, la confianza en que otras serán mucho
mejores para construir una sociedade habitable, la creencia de que tal
sociedade podría realmente existir. (GRAEBER, 2011, p. 10).
Para isso, é preciso olhar as práticas e deixar de se boicotar na imaginação. Entendido
por Graeber como um “discurso ético sobre a prática revolucionária”, o anarquismo mantém
seu vigor e importância em tempos de barbárie generalizada por seguir inspirado e antenado
com as diversas geografias anticapitalistas que habitam o mundo. E um dos pontos importantes
é algo que Mauss e Clastres, como lembra Graeber, reuniram com tantas evidências. E que
foram reforçadas graças à atuação de indígenas que se “meteram” dentro da antropologia e
amoldaram esta ciência ao seu interesse etnopolítico: as sociedades sem Estado e sem Mercado
assim o são porque se organizam politicamente para isso. A coluna vertebral da sua vida
coletiva é perpassada por um refinado pensamento político voltado para afastar a possibilidade
da existência desses deuses ocidentais. São teorias e práticas do contra poder:
Si uno combina esta actitud con una resistencia pasiva constante a las
instituciones estatales y la elaboración de formas de autogobierno autónomas
y relativamente igualitarias, ¿no estaríamos acaso ante una revolución? El
mundo contemporáneo está lleno de esos espacios anárquicos, y cuanto más
éxito tienen, menos oímos hablar de ellos. (GRAEBER, 2011, p. 42).
A obra de Graeber foi precocemente encerrada com uma espécie de retorno a
Fragmentos, o que significa resgatar a atualidade revolucionária de Kropotkin em busca da
“recriação do mundo”. Assim, se a única alternativa viável à barbárie capitalista é o socialismo
sem Estado, é porque esta não é perspectiva utópica. É orientação para a teoria radical e a
prática política; o que significa reconhecer, como Kropotkin fez, as “tendências aparentes agora
na sociedade” e que estiveram “sempre, em algum sentido, iminentes no presente”. E Graeber
arremata: “Para criar um novo mundo, podemos começar redescobrindo o que está, e sempre
esteve, diante de nossos olhos.” (GRAEBER; GRUBACIC, 2020, p. 5).
É o que afirma Harold Barclay em People Without Government- an anthropology of
anarchy”. Também antropólogo e também anarquista, Barclay escreveu sobre como os modos
de ação e pensamento anarquista se materializam em inúmeras sociedades, formulando uma
crítica ao eurocentrismo acadêmico:
Como creen que el orden social solo puede existir donde existen el gobierno
y la ley, amplían el significado de estos términos para cubrir lo que claramente
no es gobierno en absoluto. Hoebel, que luego cambió de opinión, redefinió
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la ley y el estado para hacer de toda sociedad un estado con ley (1958, 467ss),
con los que interpretó los datos de numerosas culturas. Y anteriormente Clark
Wissler y George Murdock incluyeron al 'gobierno' como un "universal" de la
cultura (Wissler, 1923; Murdock, 1945). Sin embargo, mi experiencia en más
de 30 años de enseñanza de la antropología ha sido que, entre los estudiantes
el mito más arraigado es el de que ninguna sociedad puede existir sin gobierno,
y su corolario de que toda sociedad debe tener un centro director. Si los
estudiantes de hoy en día han abandonado la religión de la iglesia, no se han
alejado de la religión del nacionalismo y el estatismo. (BARCLAY, 1990, p.
14).
Na antropologia reversa de Davi Kopenawa, reside exatamente o mesmo pensamento,
mas por sinais trocados: os “brancos dormem demais, mas sonham consigo mesmos”. O que
está “diante de nossos olhos”, nesse sentido, é a existência das sociedades sem Estado e sem
governo documentadas ao longo da história, confirmadas pela etnografia. Isso não tem a ver
com evolução e progresso, com etapas de desenvolvimento social, mas com a criação da vida
cotidiana. São “exposiciones de las actitudes de los humanos que no han encontrado la
necesidad del poder. Vemos probablemente en nuestro tiempo muchos ejercicios locales y de
vecindario cuya forma es clásicamente anarquista” (CONFORT, 1990, p. 12). A não
necessidade de poder, assim, é o que faz com que antropologicamente a anarquia seja possível.
Porque já tem lugar na História:
Yo sugeriría que la anarquía no es de ninguna manera inusual; que es una
forma de sistema de relaciones u organización política perfectamente común.
No solo es común, sino que es probablemente el tipo de organización de la
polis más antiguo y precisamente el que ha caracterizado la mayor parte de la
historia humana. (BARCLAY, 1990, p. 14).
Por serem anticapitalistas e anti-estado, povos originários são referências de
organização sem a mediação de instituições. Uma manutenção da ordem baseada na
coletividade, na coexistência, no trânsito diplomático entre este e outros mundos, como diria
Viveiros de Castro. Uma reciprocidade que, no pensamento anarquista é o apoio mútuo; e que
Barclay, ao recorrer à etnografia, confirma que são “sistemas de relações e organizações
políticas comuns ao longo da História”. Por isso, o próprio antropólogo afirma que suas
investigações se somam e dão continuidade ao trabalho pioneiro de Kropotkin, tanto em “Apoio
Mútuo” como em “Estado: seu papel histórico”.
De Kropotkin a Graeber, passando por Barclay, persiste o interesse anarquista em
reconhecer as “tendências aparentes na sociedade” que nos permite resgatar o sentido do
trabalho político e acadêmico. “Apoio Mútuo”, nas palavras de Kropotkin, é uma obra
preocupada em “recuperar as verdadeiras proporções entre o conflito e a união”. É essa a última
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observação que Graeber destaca sobre o anarquista russo: muito além de dogmas e julgamentos
apocalípticos sobre a condição humana, radicais devem
recorrer à análise minuciosa de milhares de pequenos fatos e de indícios vagos
acidentalmente preservados no que restou do passado, a interpretá-los com a
ajuda da etnologia comparada e, depois de tanto ouvir falar sobre o que
dividia os seres humanos, reconstruir, pedra sobre pedra, as instituições
que os uniam. (KROPOTKIN apud GRAEBER; GRUBACIC, 2020, p. 3).
Diferentemente do apocalipse zumbi capitalista e seus multiversos de entretenimento,
para o anarquismo nem tudo vai desmoronar. Kropotkin nos instiga a pensar na radicalidade
das socialidades possíveis sem o Estado e de como isso acontece hoje.
INGOVERNABLES BREVE HISTÓRIA RECENTE DE OAXACA E CHERÁN
“Organize! Here's the rest of our lives!” (Chumbawamba)
O problema é achar o mundo comum e a socialidade dentro do capitalismo.
Mixe, linguista e escritora, Yasnaya Elena Aguilar Gil tem sido uma das diversas
lutadoras sociais que reúnem em textos, entrevistas e eventos públicos a forma como o
comunalismo mesoamericano define sua relação com o Estado-Nação. Para Yasnaya, os
Estados produzem nações artificiais, uma vez que unificam arbitrariamente diferentes culturas
sob uma noção de “país”. Encapsulam outras maneiras de se organizar comunalmente e os
submetem dentro do território nacional, o que significa que o Estado agride as culturas
indígenas porque estes povos negam o aparelho estatal: “Las naciones del mundo que no
conformaron Estados son la negación de los proyectos de Estado” (AGUILAR, 2020, p. 6).
Na região hoje chamada de Oaxaca, habitada por 17 etnias, a criação da vida cotidiana
atende pelo nome de comunalidad: uma forma própria de descrever o modo de vida destas
sociedades. O “ser índio” em Oaxaca não é etiquetado por rasgos culturais (como a língua, a
dança, as vestimentas), mas por suas características essencialmente políticas: a propriedade
coletiva da terra, o trabalho coletivo para a comunidade por meio do tequio, o poder coletivo
comunal entendido como um serviço (sistema rotativo de cargos e a assembleia como tomada
de decisões acima da autoridade) e as festas como reiteração cíclica de pertencimento ao lugar.
Autonomia e livre determinação significam assumir a característica política das nações sem
Estado: gerem sua vida sem a necessidade das instituições. Comunal e sistema próprio deixam
de ser confinados na gaveta dos rasgos culturais e o modo de vida índio é entendido como
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categoria política: “Lejos ya del significado etimológico, la categoría "indígena" es una
categoría política, no una categoría cultural ni una categoría racial (aunque ciertamente ha
sido racializada). Indígenas son las naciones sin Estado.” (AGUILAR, 2020, p. 6).
De origem maya quiche, a socióloga Gladys Tzul oferece uma leitura importante sobre
a relação conflituosa entre a autonomia indígena, suas políticas próprias e seus atos, que vão
erodindo o Estado-nação. Tratam-se de arquipélagos contra o Estado:
lo comunal indígena no aparecerá como una esencia que se tenga que
mantener, que se tenga que cuidar para que no se contamine confuerzas
externas, tampoco es una forma arcaica del pasado. Por ello propongo que
pensemos lo comunal indígena como el funcionamiento de las estrategias de
hombres y mujeres que cotidianamente gestionan, autorregulan y defienden
su territorios. [...] Lo comunal indígena tampoco es una forma arcaica del
pasado o que yaha sido superada, contrario a ello, lo comunal indígena
funciona como una estrategia política. (TZUL, 2018, p. 129).
Isto significa cuidar “que el Estado no se entrometa en la gestión de su vida cotidiana
(p. 130). Gladyz Tzul define a gestão própria do território como Sistemas de Governo Comunal
Indígena, uma forma própria de “produzir governo” que sabota os projetos de dominação: “por
una parte, despojado de una mirada idílica, la autora nos advierte que lo comunal, lejos de ser
ideología o una esencia, es una forma concreta de organizar la vida” (MANZONI, 2019, p.
3).
Cultura política maia e comunalismo oaxaquenho são algumas das referências dos
arquipélagos que erosionam o Estado. E se estão constituídos sistemas próprios de governo, por
que integrar-se a um Estado Nacional que lhes retira o que é o próprio? Ao invés de “nunca
mais um México sem nós”, o famoso lema zapatista, Yasnaya pergunta se não é mais adequado
o Nosostros Sin México. Falar em Estado Nação, para Yasnaya, evidencia que nuestra
imaginación ha sido cooptada. Necesitamos imaginar otras formas posibles de organización
política y social, un mundo pos Estados nacionales, un mundo que no esté dividido en países.”
(AGUILAR, 2020, p. 14). Esta é uma proposição que ao mesmo passo escancara a centralidade
da autonomia política e também o caráter transitório da forma como são definidas as nações
sem Estado, isto é, agrupadas sob a etiqueta “indígena”:
“Nosotros sin México" significa un nosotros sin Estado, sin el Estado
mexicano, pero sin crear otros Estados. A diferencia del modelo
integracionista, el modelo "Nosotros sin México" no busca integrar a los
pueblos y a los individuos indígenas a los mecanismos estatales sino
confrontarlos y prescindir lo más posible de ellos. En un mundo sin Estados,
la categoría "indígena" deja de tener sentido. Somos indígenas en la medida
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en que pertenecemos a pueblos que no crearon Estados. (AGUILAR, 2020, p.
14).
Isso exige redefinir a relação com o Estado. Não é uma questão ingênua de mera
emancipação, porque isso seria a senha para a invasão territorial total de garimpeiros,
madeireiros, mineração se bem que estes cada vez mais são braços paraestatais. Yasnaya
entende como arrebatar funções do Estado: apoiar-se nos modelos políticos de autogestão,
das tomadas de decisões e da organização do trabalho comunitário praticadas ao longo da
História na Mesoamérica, ao mesmo tempo reconhecendo que o Estado o tem interesse em
preservar a autonomia política. Para Yasnaya, os povos originários mesoamericanos “perderam
esforços” ao reivindicar uma autonomia que o Estado não irá reconhecer até porque o aparelho
estatal jamais iria atuar contra sua própria natureza. Assim, para além da resistência às “ações
e símbolosdo Estado em territórios indígenas, a própria existência dos espaços autogeridos
que foram criados por comunidades indígenas ao longo da História firma o horizonte em que
as funções do Estado são ocupadas pelas autonomias indígenas:
Incluso es posible ir más allá y arrebatarle las funciones con las que ejerce la
opresión: crear un sistema educativo para cada nación indígena, y sistemas de
salud y de administración de justicia gestionados de manera autónoma. Si bien
combatir la ideología nacionalista es fundamental, también lo es plantear
algunos ejes rectores para la gestión de la vida autónoma. (AGUILAR, 2020,
p. 16).
Ou, como me resumiu um morador de Puebla: “o povo entendeu que o Estado é
incapaz de garantir condições de vida; então trata de se autogovernar”.
E eles sabem o que deve ser feito - para eles, não para nós. Esse pensamento está
expresso nas paredes adornadas e embelezadas com pixo e stencil da cidade de Oaxaca, a
“Oaxaca Ingovernable” eternizada por esta arte nas ruas da capital. Está expresso na história
política do povo oaxaquenho, em sua comunalidad, na luta magonista e nas barricadas erguidas
em um território que mantém a contracorrente. Gustavo Esteva costumava utilizar uma história
para ilustrar essa forma de fazer política:
Oaxaca es el único estado de México en que predomina la población indígena.
Los pueblos índios representam dos terceras partes de la población total. Hace
20 años, por primera vez en más de un siglo, un índio fue candidato a governar
el estado. Al iniciar su campaña política convocó a representantes de los 16
pueblos índios de Oaxaca. Entro ellos es normal que una persona hable dos,
três o hasta cuatro lenguas índias, pero nadie habla las 16, que son muy
distintas. En la ceremonia que organizaron, los pueblos hablaron en sus
lenguas por más de diez horas sin interpretación. Al final, un viejo mixteco
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cruzó lentamente el inmenso salón y cuando estaba cerca del candidato le dijo,
apuntándole con el dedo: “queremos que seas para nosotros como la sombra
de un árbol”. Y eso fue todo.
Nada entendi, como los demás. Corrí a buscar a mis amigos, a preguntarles
por el sentido del ritual. Se sorprendieron de mi sorpresa. La primera parte,
me explicaron, intentaba hacerle saber al candidato de que no podia tener
seriamente la pretensión de gobernarlos. Como hacerlo, si para hablar con
ellos tenía que usar el español, la lengua de los colonizadores? Como
gobernarlos, sí no hablaba su lengua, la expresión suprema de su cultura? Por
eso hablaron más de diez horas, para poner en claro que no los entendia. La
segunda parte, me dijeron, fue aun mas simples. Querían decirle que no era
una rebelión. Querían un gobernador, y mejor que fuera uno de ellos, un índio.
Pero debía estar a la cabeza de un gobierno distinto. No sería un gobierno que
tratara de gobernarlos 24 horas al día, en todas partes, aun contra su voluntad.
Tendría que estar en un lugar, a la vista de todos, bien enraizado en el pueblo.
Si enfrentaban una calamidad, un terremoto, una sequía, o tenian algun
conflicto entre ellos, entre comunidades, acudirían a el y les darían protección,
como la que oferece la sombra de un árbol.
He usado desde entonces esta historia como teoria política alternativa. Si la
gente tiene los cuerpos políticos adecuados puede gobernarse a si misma.
(ESTEVA apud SANCHEZ, 2009, p. 14).
Esteva escreveu essas linhas para se referir à Comuna de Oaxaca. Ali, nas barricadas,
estiveram combinadas a radicalidade do movimento docente oaxaquenho com a força da
comunalidad indígena, conferindo uma dimensão auto gestionária que foi destruída pela
única ação na qual o Estado é de fato capaz: repressão e terror.
Era maio de 2006. O movimento de professoras e professores reunidos em torno da
Seção 22 da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação do México se alojou no
zócalo, a praça central da capital, paralisando o ano letivo e exigindo melhores condições de
trabalho. Comandado por Ulisses Ruíz, o governo de Oaxaca não abriu diálogo com o
movimento docente, que seguiu seu acampamento na praça e se comunicando por meio da
Radio Plántón. Passadas semanas de políticas de negação, o governo finalmente enviou seus
negociadores: policiais e helicópteros para desocupar o zócalo. Por meio de sua rádio, o
movimento docente conseguiu comunicar a população, que desceu para apoiar os professores
contra a desocupação violenta:
Por primera vez, oaxaqueños y oaxaqueñas de las más diversas condiciones
se unieron sin la necesidad de ningún líder en contra de Ulisses Ruíz y su
gobierno. Mientras se lanzaban gases lacrimógenos diretamente contra la
población desde un helicóptero alquilado para la ocasión, y la polícia hacía
ostentación de sus armas de alto calibre, las piedras y las barricadas hacían su
primer acto de presencia em Oaxaca como forma de defensa ante el ataque
indiscriminado de las fuerzas repressoras. “El pueblo organizado”, tal y como
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se repetiria tantas veces durante las marchas que se sucederían en los meses
siguientes, repelió la agresión y la policía tuvo que desistir en su intento de
desalojar a los maestros del Zócalo oaxaqueño. Se habló de muertes que no se
confirmaron, pero las detenciones y los heridos fueron numerosos.
(SANCHEZ, 2009, p. 55).
E uma vez repelida a polícia, os insurgentes decidiram repelir outras estruturas
administrativas: ocuparam prédios públicos e secretarias de governo, obrigando a classe política
a se retirar da cidade. O Estado foi dissolvido em Oaxaca no dia 16 de julho de 2006.
O cenário de cidade ocupada exigiu a conformação de uma estrutura política que desse
conta desse arranjo popular que reconfigurou a administração da capital. E essa foi a Comuna:
difícil definir se foi uma insurreição, uma revolução, os dois, qual seria seu destino se o curso
da História não tivesse novamente caído à repressão. O fato é que a Comuna durou cerca de
seis meses, e a forma mais precisa para compreender o seu arranjo político foi o de Sérgio
Sánchez: um movimento de movimentos. Os insurrecionistas se viram com o desafio de
organizar uma cidade que enfim expulsou o poder por meio da aliança de diversas organizações
populares contra hegemônicas: movimentos indígenas, sindicatos, estudantes, trabalhadores
rurais, movimentos feministas e a APPO: Asamblea Popular de los Pueblos de Oaxaca.
O grande componente organizativo da Comuna era a forma própria encontrada pelos
insurgentes para reagir às caravanas da morte organizadas pelo governo. Como forma de
proteção, a população passou a formar barricadas em diversos pontos da cidade, para evitar que
as caravanas da morte circulassem com facilidade. Também cada barricada se comunicava com
a outra para informar a situação, e foi nesse cotidiano que os barricaderos associaram-se da
forma mais horizontal possível e constituíram o setor mais radical da Comuna. Dali surgiram
figuras públicas aglutinadoras e foram elaboradas ações mais contundentes contra as
articulações de Ulisses Ruiz, fruto de um processo auto gestionário e horizontal de tomada de
decisões dentro das barricadas (Cf. SANCHEZ, 2009).
De medida de defesa as barricadas de Oaxaca passaram a operar como espaços de livre
associação e de tomadas de decisão no cotidiano de Oaxaca. Uma proposta política que passava
à margem dos espaços institucionalizados e dos engessamentos provocados pelo descolamento
entre dirigentes e as pessoas que de fato faziam o enfrentamento. Esta é uma característica
fundamental das barricadas: não se trata de espontaneísmo ou de falta de estratégia; trata-se de
repousar nas mãos de quem estava nas lutas a capacidade de decidir sobre sua própria atuação
coletiva. E isso passa pelo apoio mútuo tecido a partir das relações de solidariedade construídas
entre barricaderos, senhoras, jovens, homens e mulheres que organizavam a alimentação, os
turnos nas barricadas e as ações a serem tomadas. Se a Comuna de Oaxaca resistiu por cerca de
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5 meses, é porque sua força discorreu da atuação destes coletivos. Como bem descreveu
Abrahan Nahón:
La diversidad también se manifestó en las barricadas, que conformadas de
toda clase de elementos y artefactos (piedras, troncos, láminas, muebles
viejos, ramas, ladrillos, alambres con clavos, esqueletos de autos, camiones
confiscados, llantas incendiándose...), se multiplicaban al caer la noche y se
enclavaban en las arterias principales de la ciudad, en el centro histórico y en
las colonias populares donde pudiera cancelarse el paso de automóviles y
transeuntes, declarando la ciudad en estado de sítio, inmóvil, acorralada. Estos
bastiones de resistência, que afectaran durante meses el libre transito por la
ciudad, no solo evidenciaron el amplio descontento de diversos sectores, sino
que representaron una táctica de lucha para detener e impedir en los más
agudos momentos del conflicto, el paso de las llamadas “caravanas de la
muerte”, conformadas por una hilera de vehículos y motocicletas que
transportaba polícías, sicários y grupos paramilitares protegidos con chalecos
antibalas, fuertemente armados con pistolas así como Rifles R-15, quienes
disparaban a la población, tratando de aterrorizar y reventar la revuelta
popular. Las imágenes son contundentes, registrando también barricadas
como lugar de encuentro, como espacio para olvidar las diferencias sociales
tan remarcadas en la vida cotidiana; para que los vigias, el calor de las llamas,
conversaran y entablaran relaciones afectivas, recibiendo la atención de
señoras, ancianos o ciudadanos que les convidaban café, atole y alimentos,
solidários en la angustia y la desolación, durante frias y extenuantes
madrugadas... (NAHON, 2008, p. 22).
A APPO e as barricadas foram um “movimiento cuya proposta miraba mucho más allá
de la salida de Ulisses Ruiz”, conforme deixa claro este longo depoimento colhido por Sanchez:
Queremos demonstrar que frente al sistema neoliberal, en nuestros pueblos sí
existe realmente la democracia. Nosotros no elegimos nuestros presidentes
municipales a través de los partidos y las campañas electorales, sino que el
pueblo decide quién será su representante com la calidad moral y que haya
dado los servicios necesarios para representar al pueblo. Pero esse cabildo no
tiene la facultad de decidir, sino que solamente acuerdan propuestas que deben
ser aprobadas por la asamblea comunitária. El Estado debe tener en cuenta
estas formas de gobiernos populares. Y por eso, el pueblo indígena juega un
papel muy importante al mostrar que no es necessário que unos cuantos tomen
las decisiones sino que deben ser los pueblos (los que los hagan).
Los indígenas jugamos un papel muy importante en estos momentos, porque
nuestras reivindicaciones como pueblos indígenas son un ejemplo a nível
nacional. Pensamos en lo que se busca es que no haya poder. Somos los
pueblos de base, los dueños de esta tierra y debemos decidir nosotros cual és
el rumbo que debe seguir Oaxaca y sus políticas económicas, culturales, etc.
(SANCHEZ, 2009, p. 76. Depoimento de César Luis Díaz, militante índio de
Oaxaca).
Com a invasão da Polícia Federal Preventiva, ação de paramilitares, assassinatos,
estupros, sequestros e perseguições a militantes mesmo nos anos posteriores, a Comuna foi
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destruída pelo terrorismo de Estado. A intencionalidade política de produzir o trauma social
tinha o objetivo de ameaçar para que isso não fosse repetido; ação de quem teme o desafio que
a Comuna impôs ao poder - e ainda assim, mais barricadas seguiram sendo levantadas por toda
Oaxaca ao longo dos anos que seguiram.
Esteva chama a atenção para o momento histórico que envolveu a Comuna de Oaxaca:
esta ocorreu alguns meses antes do colapso econômico que atingiu as potências em 2008. Como
se as comunidades e os trabalhadores oaxaquenhos conjugassem a percepção de que um mundo
estava a ruir, entre o caos do cassino financeiro global e as carcomidas e putrefatas estruturas
de organização do poder político - aliadas ao esgotamento que as populações exploradas
sentiam frente a esse modelo. Como se os oaxaquenhos tivessem funcionado numa antena para
o que estava acontecendo no mundo (Cf. ESTEVA apud SANCHEZ, 2008).
A corrosão do Estado mexicano está emitindo sinais tempos: falência da
representatividade, partidocracia agônica, hegemonia de setores empresariais e relações
umbilicais com a contravenção que configuram um Estado narcotizado, para além de um narco-
estado. Sim, são coisas diferentes na medida em que a segunda forma sugere uma separação
semântica (há o narco, o Estado), de que são coisas que voltarão um dia a não coexistirem
em uma mesma instância; tudo voltaria ao normal na coisa pública. Um Estado narcotizado traz
a “evolução” do poder. Crime e narco viram assuntos de Estado: têm legitimidade e operam à
luz do dia. O que significa repressão, genocídio e ocupação territorial.
Esta era a realidade da comunidade purépecha de San Francisco Cherán, no Estado de
Michoacán, e resultou em uma forma bem delineada do autogoverno hoje. O levantamento de
Cherán resultou em uma combinação de enfrentamento físico, organização popular e
reapropriação das suas antigas tradições indígenas que configuram até hoje um movimento
etnopolítico (HUIZAR, 2014); partiu da defesa dos bosques e dos territórios para se consolidar
como o pleno exercício de autogoverno nos dias atuais, com estratégias políticas para afastar e
intromissão do Estado e garantir as tomadas de decisão e a gestão própria do território:
La mañana del a 15 de abril del 2011, loscomuneros y comuneras hartos del
saqueo de sus bosques, de los abusos de poder, de la extorsión del crimen
organizado, de los levantones, secuestros y del clima de violencia que azotaba
a la comunidad pues de 2009 a la fecha más de 20 comunero shan sido
asesinados desaparecidos o secuestrados, aun sin esclarecerse lo shechos- y
toda la región purhépecha; ante laomisión de las autoridades del Estado (tanto
municipal, estatal y federal) para proporcionar seguridad y compromiso con
la comunidad y, más allá todavía, cuando las mismas autoridades municipales
estaban coludidas con las organizaciones criminales que tenían el control
territorial de esa zona, las comuneras y los comuneros decidieron decir ¡ya
basta!, imponiendo de inmediato las medidas necesarias para contrarrestar los
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ataques y todo tipo de abusos por parte del crimen organizado y hasta de las
mismas autoridades locales. (HUIZAR, 2014, p. 8).
Cherán assumiu os “assuntos de Estado” e tomou a gestão da educação, segurança e
governo. Policiais foram destituídos, as armas confiscadas pelos comuneros e assim Cherán
resgatou outra de sua característica política própria: os cuidados de segurança para enfrentar o
crime organizado no território. Estava retomada a Ronda Tradicional, ou Rodín. Os bairros
passaram a se organizar em “fogatas” e assembleias que culminaram na construção de um
modelo próprio de organização da vida cotidiana, fundada nas características purépechas e
descartando a participação de partidos políticos mesmo em períodos eleitorais. É um
proceso de transformación social tan dinámico que vive la comunidade em
estos três años de lucha y autogestión, se dirige a considerar y elaborar
estrategias políticas, económicas, educativas y culturales que conviertan a la
comunidade nun ente autónomo y cada vez menos dependiente del Estado.
(HUIZAR, 2014, p. 11).
Seguindo o modus operandi para quando é desafiado, o governo mexicano age como se
não pudesse conter as agressões que Cherán vem sofrendo, com assassinatos de lideranças
comunitárias, assédio de madeireiros, ameaças de despojo. No México vigora um padrão de
repressão que falha em frear as autonomias, mas exporta para outros países as políticas de contra
insurgência: violência nos campos, assassinatos de jornalistas e ativistas por todo o país,
tratando como se fossem questões internas nas quais o Estado (só nestes casos!) não pode se
intrometer. A consolidação dos autogovernos vem pagando um preço alto, com assassinatos,
massacres em comunidades, invasões de megaempreendimentos para geração de energia, o
Trem Maya, as eólicas, a mineração: o atual governo apenas operou para dar uma feição própria
ao projeto desenvolvimentista da pátria mexicana. O que no fundo é apenas uma outra roupa
para falar da eterna meta do Estado-Nação, qual seja, arrebentar a vida comunal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Las instituciones han sido a tal grado contaminadas por
la lógica del crimen, cuyo catálogo es interminable, que la
única opción efectiva es desmantelarlas, construir otras”
(Gustavo Esteva)
“O my soul, do not aspire to immortal life, but exhaust the
limits of the possible”
(Pindar, Pythian Hi)
ISSN 2447-746X
DOI: https://doi.org/10.20888/ridpher.v8i00.17373
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Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 8, p. 24, e022017, 2022.
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Nas palavras de Casé Angatu, tupinambá de Olivença (BA),
O medo do Estado e dos capitalistas não é você se auto-assumir afro-
descendente ou indígena. É o seu direito originário ao território. E você
assumir formas de viver que o Capitalismo não quer. Que é ter as coisas não
como propriedade, mas como pertencimento. Nós precisamos estar vivos prá
fazer a luta. Não estou falando de micropolítica. Esta palavra me incomoda
muito. É igual ecologia sem luta com o Capitalismo. Ecologia sem luta com o
Capitalismo é jardinagem. Nós indígenas não somos ecologistas. Nós somos
lutadores pela defesa do território originário. Nós temos essa cor porque nós
somos a terra, nós somos o território. Cabe a nós fazer a militância. Temos
que ter o orgulho de militar. existe um outro mundo sendo construído. As
autonomias já existem. (ANGATU, 2021, p. 11).
Já existem, e resguardam o entendimento de Kropotkin sobre as diversas possibilidades
da experiência humana. Nunca houve um sistema tão sacrificial como este, onde Estado e
empresas agem determinados a empilhar corpos em oferenda ao Deus Mercado. É porque, como
faz questão de frisar Casé Angatu, “nossas vidas se opõem ao capitalismo”.
“Morrer apenas o estritamente o necessário”, escreveu Wislawa Szymborska (2015)
em Autonomia. A poetisa polonesa se referia ao perigo de tempos brutos e à capacidade de
criar. O exercício comunal do poder político nas sociedades sem Estado e a formação de
territórios autônomos fundados no autogoverno apresentam horizontes outros, recuperam os
sentidos que foram consumidos pela tormenta. Prescindem do depois; ou melhor, em nome do
“depois” é que correm risco, por estarem na mira do progresso, do desenvolvimento, do PIB,
da necessidade de energia, das baterias dos nossos Iphones, da marcha rumo à sexta extinção,
presos no unitarismo do futuro:
la predicción de los acontecimientos futuros o la preexistencia de un destino
únicamente suponen determinismo, y, por consiguiente, una decisiva pérdida
de libertad, cuando el tiempo es unilineal. Si hay una pluralidad de tiempos, o
si el tiempo es cíclico, la profecía y el destino pueden coexistir con la libertad
de elección. (BERGER, 2017, p. 56).
Ainda conseguiremos ter a capacidade de nos guiar pelo tempo que a gente consegue
imaginar? Para que o apoio mútuo tenha um sentido revolucionário ele precisa ser
anticapitalista, antimercado; as situações concretas onde isso acontece nos ensinam que o
“comum” não basta, se não romper com a lógica de vida capitalista e de competição. Antes de
partir, Graeber ainda teve a oportunidade de refletir sobre a militância anarquista e sua
correspondência teórica: a prática organizativa e o trabalho intelectual crítico, estes que podem
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recompor, “pedra a pedra, a parte que nos une”. O que requer olhar não apenas para o que
desprezamos, mas reconhecer o que se cria hoje, politicamente:
Nas últimas décadas, ouvimos pouco mais do que exortações implacáveis de
estratégias cínicas usadas para aumentar o nosso respetivo capital (social,
cultural ou material). Estas são publicadas como “críticas”. Mas se tudo que o
que estás disposto a falar é o que dizes estar contra, se tudo o que consegues
imaginar é o que dizes estar contra, então em que sentido é que realmente te
opões a isso? Às vezes parece que a Esquerda académica acabou, como
resultado disto, por internalizar e reproduzir gradualmente todos os mais
angustiantes aspetos do economismo neoliberal a que se diz opor, até ao ponto
em que, ler tantas análises (vamos ser simpáticos e não mencionar nomes),
nos faz perguntar o quão diferente tudo isto realmente é da hipótese
sociobiológica de que o nosso comportamento é controlado por “genes
egoístas”! (GRAEBER; GRUBACIC, 2020, p.5).
Sociedades sem Estado estão não apenas para nos “fazer pensar”; não apenas para a
sociedade urbana valorizar “sua defesa da natureza”. É também isso, mas muito mais. Estão
vivas contra o sistema de morte que é o capitalismo; questionam e oferecem concretude, outra
possibilidade frente ao colapso que nos espreita. A forma política mais refinada frente ao
“abismo que nos cerca” (SZYMBORSKA, 2015). A forma que ainda estará lá, viva, depois do
fim do mundo.
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Recebido em: 05 de outubro de 2022
Aceito em: 19 de dezembro de 2022