ISSN 2447-746X
DOI: https://doi.org/10.20888/ridpher.v8i00.16726
1
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 8, p. 1-29, e022019, 2022.
Ridphe_R
“A INSTRUÇÃO, SÓ A INSTRUÇÃÇO FARÁ O HOMEM LIVRE SOBRE A TERRA
LIVRE”: A INFLUÊNCIA DE FRANCISCO FERRER E DO ANARQUISMO NA
FORMAÇÃO DE UM PROFESSOR EM TERRAS CAIPIRAS
Daniel da Silva Barbosa
Universidade Estadual Paulista, Bauru, Brasil
ds.barbosa@unesp.br
Macioniro Celeste Filho
Universidade Estadual Paulista, Bauru, Marília, Brasil
macioniro.celeste@unesp.br
RESUMO
Utilizando-se de Raymond Williams e sua Sociologia da Cultura este artigo investigou os
momentos que possibilitaram a formação de João Penteado como docente e sua inserção na
epistemologia anarquista. Segundo resultados obtidos por análises de fontes impressas como
folhas locais - como o Commercio do Jahu e Correio do Jahu - e libertárias da capital paulista
- como A Lanterna, A Guerra Social e A Terra Livre -, além da obra memorialista de João
Penteado Pioneiros do Magistério Primário, buscamos traçar uma linha entre as experiências
didáticas de Penteado como aluno e suas escolhas como docente libertário lecionando numa
escola isolada no meio rural de Jaú. Essas escolhas resultaram no Caso de Bica de Pedra e na
saída de Penteado de Jaú.
Palavras-chave: João Penteado. Anarquismo. Educação Libertária.
“LA INSTRUCCIÓN, SÓLO LA INSTRUCCIÓN HARÁ LIBRE AL HOMBRE EN
LA TIERRA LIBRE”: LA INFLUENCIA DE FRANCISCO FERRER Y EL
ANARQUISMO EN LA FORMACIÓN DE UN MAESTRO EN TIERRAS DE PATÁN
RESUMEN
A través de la Sociología de la Cultura de Raymond Williams, este artículo investigó los
momentos que posibilitaron la formación de João Penteado como docente y su inserción en la
epistemología anarquista. Según los resultados obtenidos a partir del análisis de fuentes
impresas como periódicos locales -como Commercio do Jahu y Correio do Jahu- y periódicos
libertarios de la capital paulista -como A Lanterna, A Guerra Social y A Terra Livre-, además
a la obra memorial de João Penteado Pioneiros do Enseñanza Primaria, buscamos trazar una
línea entre las experiencias didácticas de Penteado como estudiante y sus elecciones como
maestro libertario enseñando en una escuela aislada en la zona rural de Jaú. Estas elecciones
resultaron en el caso Bica de Pedra y la salida de Penteado de la ciudad de Jaú.
Palabras clave: João Penteado. Anarquismo. Educación Libertaria.
“INSTRUCTION, ONLY INSTRUCTION WILL MAKE MAN FREE ON LAND
FREE”: THE INFLUENCE OF FRANCISCO FERRER AND ANARCHISM IN THE
TRAINING OF A TEACHER IN BUMPKIN LAND
ABSTRACT
ISSN 2447-746X
DOI: https://doi.org/10.20888/ridpher.v8i00.16726
2
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 8, p. 1-29, e022019, 2022.
Ridphe_R
Using Raymond Williams and his Sociology of Culture, this article investigated the moments
that made possible the formation of the João Penteado as a teacher and his insertion in anarchist
epistemology. According to results obtained from analysis of printed sources such as local
newspapers - such as Commercio do Jahu and Correio do Jahu - and libertarian newspapers
from the capital of São Paulo - such as A Lanterna, A Guerra Social and A Terra Livre -, in
addition to the memoirist work of João Penteado Pioneers of the Primary Magisterium, we seek
to draw a line between Penteado's didactic experiences as a student and his choices as a
libertarian teacher teaching in an isolated school in the rural area of Jaú. These choices resulted
in the Bica de Pedra Case and the Penteado’s departure from Jaú.
Keywords: João Penteado. Anarchism. Libertarian Education.
"L'INSTRUCTION, SEULE L'INSTRUCTION RENDRA L'HOMME LIBRE SUR LA
TERRE LIBRE": L'INFLUENCE DE FRANCISCO FERRER ET L'ANARCHISME
DANS LA FORMATION D'UN ENSEIGNANT EN TERRE PLOUC
RÉSUMÉ
À travers la sociologie de la culture de Raymond Williams, cet article a enquêté sur les moments
qui ont rendu possible la formation de João Penteado en tant qu'enseignant et son insertion dans
l'épistémologie anarchiste. Selon les résultats obtenus par l'analyse de sources imprimées telles
que les journaux locaux - tels que Commercio do Jahu et Correio do Jahu - et les libertaires de
la capitale de São Paulo - tels que A Lanterna, A Guerra Social et A Terra Livre -, en plus de
l'œuvre mémorielle de Penteado Pionniers de l’École Primaire, nous cherchons à tracer une
ligne entre les expériences didactiques de João Penteado en tant qu'étudiant et ses choix en tant
que professeur libertaire enseignant dans une école isolée de la zone rurale de Jaú. Ces choix
ont abouti à l'affaire Bica de Pedra et au départ de Penteado de la ville de Jaú.
Mots clés: João Penteado. Anarchisme. Éducation libertaire
INTRODUÇÃO
A indagação sobre como o anarquismo - como forma de “utopia” - afetou a educação,
a cultura e as lutas sociais em todo o mundo, desde a primeira revolução industrial até o século
XXI, nos levou a investigar a seguinte temática: elucidar as práticas significativas e ideias
circulantes absorvidas e ressignificadas por João Penteado dentro de um sistema de
significações realizadas que lhe proporcionaram num palco de conflitos e relações mais amplas,
uma produção material e cultural libertária na sociedade jauense entre 1877 e 1913. A questão
que nos norteou foi: qual o peso da epistemologia anarquista na formação de João Penteado
como militante e docente ainda vivendo em Jaú, município do interior do Estado de São Paulo?
Em outras palavras, nos perguntamos o ponto de inflexão da intelectualidade e experiência de
vida de João Penteado que motivou sua escolha pelo anarquismo como filosofia de
interpretação da sociedade e da pedagogia racionalista como sua prática docente?
ISSN 2447-746X
DOI: https://doi.org/10.20888/ridpher.v8i00.16726
3
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 8, p. 1-29, e022019, 2022.
Ridphe_R
Como fundamentação teórica, fizemos uso da Sociologia da Cultura de Raymond
Williams (WILLIAMS, 1992), sobretudo os termos “cultura residual”, “cultura emergente” e
“círculo cultural restrito”, importantes para compreender os espaços de convivência que
permitiram a transitoriedade e troca de ideias que estabeleceram bases doutrinais, filosóficas e
formas próprias de interpretar a sociedade para certos interlocutores nos grupos culturais
restritos de Jaú, dos quais nosso sujeito histórico se relacionou. Fizemos uso das fontes
históricas impressas das folhas oficiais jauense (Commercio do Jahu e Correio do Jahu), bem
como de folhas anarquistas da cidade de São Paulo que circulavam nas mediações do município
de J(A Guerra Social, A Lanterna, A Terra Livre, A Voz do Trabalhador), assim como
literatura produzidas por alguns interlocutores desse círculo cultural restrito (PENTEADO,
1944, 1953; TEIXEIRA, 2009).
O historiador canadense George Woodcock (1912-1995) iniciou sua obra Anarchism,
de 1963, questionando a premissa de Sebastien Faure de que qualquer um que negue as
autoridades é um anarquista. Para Woodcock, é preciso considerar as bases epistemológicas e
filosóficas que norteiam as ações do libertário. Como o anarquista Piotr Kropotkin foi muito
lido pelo nosso sujeito histórico e seus contemporâneos libertários, faz-se preciso olhar para
sua a teoria social cuja afirmação é de que “há um sentimento moral no homem como a
sociabilidade e a própria sociedade” numa empatia recíproca entre os membros da espécie, essa
afirmação indica que o ser humano tem em sua natureza a cooperação (KROPOTKIN, 1913, p.
34). Pela premissa de Sebastien Faure, ao olhar para a vida do anarquista João Penteado ficaria
fácil justificar que Penteado conviveu com as mazelas e injustiças que o levaram interpretar o
mundo e a sociedade onde viveu de modo a muda-la. Entretanto, não seria preciso muitas
reflexões para indagar o porquê outras pessoas, que viveram no mesmo espaço social que ele,
não tiveram o mesmo caminho de interpretação de mundo sob bases libertárias. Daí citarmos
Woodcock e Kropotkin acima reconhecendo necessário percorrer os espaços culturais e
intelectuais que João Penteado transitou para compreendermos como se formaram as bases
filosóficas que confluíram com as epistemologias libertárias e sua pedagogia racionalista.
O PRIMEIRO “CÍRCULO CULTURAL RESTRITO”: O CÍRCULO DE PAULINO DE
OLIVEIRA MACIEL
Num breve histórico da história desse professor anarquista podemos dizer que ele foi
filho do terceiro casamento de Joaquim de Camargo Penteado com sua esposa Isabel. Seu pai
se mudou de Tiete para o município de Jaú, ambas cidades do interior do Estado de São Paulo,
ISSN 2447-746X
DOI: https://doi.org/10.20888/ridpher.v8i00.16726
4
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 8, p. 1-29, e022019, 2022.
Ridphe_R
em função de sua fidelidade com os Almeida Prado, família influenciadora da política agrária
da Província de São Paulo no ramo do café e que fundou o Partido Conservador no município
de Jaú. Entretanto, Penteado, primeiro filho desse casamento, ao nascer em 1877 não aproveitou
os tempos de seu pai de “parentela” política com essa família como mencionou a historiadora
Flávia Arlanch de Oliveira (1999) sobre o contexto jauense em questão. Seu pai investiu sem
sucesso na plantação de café e em fins da década de 1880 dirigiu o correio local, trabalho de
grande esforço e pouco retorno financeiro (TEIXEIRA, 2009). O historiador Fernando Peres
(2012) numa interpretação histórica das poucas fontes restantes deste período construiu o
cotidiano de João Penteado com seus 12 anos ajudando seu pai e os clientes do correio local
nas entregas, leituras e escritas das cartas que circulavam entre o pequeno correio e as poucas
ruas do espaço urbano de Jaú.
Nesse momento João Penteado já tinha aprendido as primeiras letras com seu professor
Caetano Lourenço de Camargo (Figura 2) e se aproximava de sujeitos da rua onde ficava o
correio e sua moradia - Rua das Flores que formariam um “círculo cultural restrito” no qual
abriu transitoriedade para algumas ideias como o espiritismo, obras filosóficas e assuntos
científicos que preenchiam as prateleiras da biblioteca de Paulino de Oliveira Maciel (Figura
1), iniciador do espiritismo em João Penteado (PENTEADO, 1944). Nomeamos esse espaço
social restrito fomentador de um terreno cultural para organização de formas específicas de
olhar, significar e interpretar a sociedade e o mundo ao redor como “círculo cultural restrito”
(WILLIAMS, 2011, p. 56). Tal termo tomado de Raymond Williams se justifica, pois esse
sociólogo inglês o cunhou para definir espaços sociais restritos que promovem o trânsito de
ideias e experiências significativas dentro desse espaço construindo características específicas
em interpretar o mundo (WILLIAMS, 1992, 2011).
Essas ideias e experiências no “círculo cultural restrito” que Penteado frequentava
envolviam leituras específicas, apreços pela tipografia e expressão de ideias e ao espírito da
modernidade de forma ampla e esse caldo de ideias lhe fez mesclar, por influência das práticas
de Maciel na sociedade jauense, a moral cristã da bondade e da justiça com a ideia espírita de
evolução espiritual somados à prática do autodidatismo fomentada pelas leituras espíritas, o
que podemos encontrar tanto nas manifestações escritas e cotidianas de João Penteado como de
seu iniciador espiritual Maciel. Seu amigo o Vaz reafirmou isso no prefácio de João
Penteado, afirmando “emérito autodidata que é, [...] e cerceado por uma soma de nobres
escrúpulos e princípios morais e filosóficos que muito o dignificam, conseguiu ir acumulando
os elementos de uma bela cultura” (LÉO VAZ apud PENTEADO, 1944, p. 09). O primeiro
manteve escritos em jornais espíritas por diversas vezes (MORAES, 2013; PERES, 2012;
ISSN 2447-746X
DOI: https://doi.org/10.20888/ridpher.v8i00.16726
5
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 8, p. 1-29, e022019, 2022.
Ridphe_R
PIRES, 1983). o segundo, entrou para a memória histórica da sociedade jauense pela
liderança na fundação da primeira Santa Casa de Je por sua constante preocupação com os
mais pobres (FERNANDES, 1955).
Entre 1891 e 1897, com seu pai já falecido e tendo que assumir a frente de sua família
de mais três irmãos, João Penteado iniciou suas primeiras experiências com tipografia através
dos efêmeros jornais produzidos por Paulino de Oliveira Maciel (FERNANDES, 1955;
PENTEADO, 1953; TEIXEIRA, 2009). E, provavelmente por incentivo do professor Caetano
Lourenço de Camargo (PENTEADO, 1944), João Penteado realizou provas para ingressar no
ensino primário das escolas isoladas que abriam cadeiras concursadas na década de 1890. Essa
experiência docente, ao nosso ver, transformaria a vida e a forma de interpretar o mundo e a
educação do jovem professor João de Camargo Penteado, em especial pelo local de sua
docência e pelas escolhas que fez inserindo-o em outro “círculo cultural restrito” com debates
e ideias mais intensas: o anarquismo.
FIGURA 1 - Paulino de Oliveira Maciel
Fonte:
Centro Espírita Verdade e Luz, fundado por
Maciel no município de Jaú em 1905.
FIGURA 2 - Caetano Lourenço de
Camargo
Fonte:
Penteado, 1944.
O ANARQUISMO DE JOÃO PENTEADO
ISSN 2447-746X
DOI: https://doi.org/10.20888/ridpher.v8i00.16726
6
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 8, p. 1-29, e022019, 2022.
Ridphe_R
Os concursos públicos como o que João Penteado prestou e passou, exigiam
conhecimentos específicos como o próprio Penteado destacou em sua obra memorialista sobre
a professora Ernestina de Siqueira, cujas palavras eram “qualquer pessoa mais ou menos
alfabetizada, conhecendo as quatro operações fundamentais”, poderia passar na avaliação para
lecionar (PENTEADO, 1944, p. 41). Para os cargos normalistas exigia-se formação. Entretanto,
para assumir as cadeiras das escolas isoladas que eram salas multiseriais e extremamente
precárias, onde a preocupação era mais a disciplina e dividir os alunos e alunas segundo o sexo
e menos o grau de aprendizagem, bastava constatar ler, escrever e realizar as operações
matemáticas além de apresentar um “Atestado de moralidade”. Tudo indica que João Penteado
ainda não conhecia as ideias libertárias que embalavam mentes e práticas coletivas em outras
regiões do Brasil, América e Europa (CORREIO DO JAHU, 29/01/1908).
Temos também o fato de que a região onde João Penteado iniciou sua prática docente
era um bairro rural distante do espaço urbano de J cerca de 17 quilômetros, com uma
subprefeitura na qual a família fundadora do bairro rural e a paróquia local valiam de seus
poderes e influências. O fundador da fazenda Bica de Pedra, Antônio Joaquim da Silva Fonseca
(1820-1914), que havia cedido o espaço para a fundação do bairro Bica de Pedra e da primeira
igreja católica que se responsabilizou por escolher a quem seriam vendidos ou cedidos os
terrenos ao redor da praça. Seu filho, José Antônio da Silva Fonseca, se tornou subprefeito do
bairro (PRADO; PRADO, 2013). Diante da descrição deste espaço, como que o anarquismo
entrou na vida e mente de João Penteado?
A fazenda Bica de Pedra, assim como muitas outras fazendas de café do interior paulista
receberam imigrantes portugueses, espanhóis e italianos que trouxeram seus anseios, temores,
ideias e espírito moderno. Apesar do contexto sociocultural desfavorável da fazenda e do bairro
Bica de Pedra, foi justamente nessa região que identificamos manifestações e tentativas de
grupos de leituras e de transitoriedade de ideias anarquistas que formaram outro “círculo
cultural restrito” do qual João Penteado foi interlocutor. Nesse outro “círculo” de convívio que
Penteado passou a frequentar em Bica de Pedra, transitavam jornais libertários da capital
paulista e de outras partes, como A Lanterna, O Livre Pensador. A Terra Livre, A Guerra Social
e La Battaglia.
O jornal A Lanterna tinha como colaborador em Bica de Pedra um anarquista que
assinava por Schmidt e o farmacêutico Edgar Caldas que viria colaborar na fundação do
primeiro Centro Operário de Jaú, o Centro Operário Beneficente e Instrutivo de Jahu em 1908.
Edgar Caldas e Schmidt recebiam os exemplares e distribuíam para os assinantes cujos nomes
eram listados em vários exemplares da folha. “V. Curvello”, “Raphael da Cunha”, “Um livre
ISSN 2447-746X
DOI: https://doi.org/10.20888/ridpher.v8i00.16726
7
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 8, p. 1-29, e022019, 2022.
Ridphe_R
Pensador”, “Antonio Joaquim”, “Teixeira de Almeida”, Um Anticlerial”, “Inimigo”, “Angelo
Mendes”, “Avelino Pereira Souza”, Ângelo Coutini”, “Baptista Junior”, “Belmiro Coelho
Silva” e tantos outros nomes que facilitavam a transitoriedade de ideias anarquistas e
anticlericais em Bica de Pedra desde 1901
1
, ano de fundação do jornal.
Identificamos fragmentos da obra Prisões do russo Piotr Kropotkin vendida desde 1900,
em especial o capítulo A Moral Anarquista, onde o autor defendia uma natureza humana como
sendo o da cooperação e solidariedade (KROPOTKIN, s/d). Outra obra desse anarquista russo
que transitava pelas mãos dos assinantes dessas folhas era A Conquista do Pão, onde Kropotkin
procurou solidificar as alianças entre camponeses e operários na formação de uma família
humana desapropriando as riquezas da humanidade construídas coletivamente, justificando
que:
a herança da Humanidade são esses resultados do labor de milhares de
pessoas, mas que foi monopolizado por uns que passaram a defender o direito
de herança a si. Assim, o filho do capitalista tem herança, mas o filho do
trabalhador não tem. (KROPOTKIN, 2011, p. 23).
Outro autor anarquista lido neste tempo foi Élisée Reclus. Sua obra Evolução,
Revolução e o Ideal Anarquista, foi lido por Penteado. Para Reclus, evolução é o
desenvolvimento gradual e contínuo das ideias e dos costumes. Mas a revolução seriam as
mudanças bruscas dessa realidade contínua. A diferença entre ambas está que na segunda o
homem pode decidir e organizar melhor, em detrimento da primeira que segue lei superior e
fora do controle de alguém. Portanto, o ideal Anarquista seria uma forma de guiar as revoluções
quando estas se mostram surgindo na sociedade, pois Élisée Reclus diz que essas não
necessariamente são positivas ou negativas, dependem dos homens que agem nela. Na
passagem em destaque abaixo podemos averiguar a importância desta obra para a organização
das ideias e práticas anarquista do período:
Já não basta lançar-se furiosamente à batalha [...], chegou o tempo de prever,
calcular as peripécias da luta, preparar cientificamente a vitória que nos dará
a paz social. A primeira condição para o triunfo é nos livrarmos da ignorância:
é preciso que conheçamos todos os preconceitos a destruir. (RECLUS, 2002,
p. 151).
Seguiu Reclus afirmando que a ciência não deveria ser um privilégio de poucos, mas
uma ferramenta para todos que almejam libertar-se da ignorância. Esse trecho em destaque da
1
A Lanterna, 20/04/1901, n. 04; 19/05/1901, n.06; 24/06/1901, n. 08;
ISSN 2447-746X
DOI: https://doi.org/10.20888/ridpher.v8i00.16726
8
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 8, p. 1-29, e022019, 2022.
Ridphe_R
obra de Élisée Reclus defende uma interpretação científica e atenta do contexto histórico para
compreensão dos males sociais na organização da sociedade. Em destaque está a instrução
como arma primeira do revolucionário para destruição dos preconceitos, interpretação dos
males sociais e construção de uma cooperação solidária rumo à revolução. Em outra passagem
da mesma obra, Reclus identificou o lugar do anarquista nesse caminho.
Os anarquistas, os artesãos da nova sociedade, o que podem eles opor a todas
essas forças organizadas? Nada, segundo parece. Sem dinheiro, sem exército,
sucumbiriam, com efeito, se não representassem a evolução das ideias e dos
costumes. Eles não são nada, mas têm a favor deles o movimento da iniciativa
humana. (RECLUS, 2002, p. 91).
Nas palavras de Reclus um lugar social onde o anarquista deve se colocar: o de
construtor dos caminhos da revolução e de vivência no presente de uma sociedade pós-
revolução. Piotr Kropotkin e Élisée Reclus organizaram a corrente anarco-comunista que
ganhou destaque após a Confederação do Jura de 1879, e suas obras ensejavam uma ética e uma
prática características dos militantes anarquistas de então. Conceitos como solidariedade (A
Greve, 10/10/1903, ANNO I, n. 08), felicidade (LEUENROTH, 1963), igualdade, altruísmo e
fraternidade (RODRIGUES, 1975) eram reinterpretados dentro dessa epistemologia anarquista.
Essas ideias transitavam nas folhas anarquistas e nos “círculos culturais restritos”
libertários que se formavam no bairro rural de Bica de Pedra. O ano de 1905 é significativo
para compreensão do anarquismo em nosso sujeito histórico. João Penteado publicava seu
jornal O Operário em Jaú e estava em Bica de Pedra quando Oreste Ristori fez sua primeira
visita neste bairro. Sobre esse seu jornal, a historiadora Luciana Eliza dos Santos publicou um
trecho que colocamos logo abaixo:
A nossa força, o nosso poder está na união, na solidariedade que nos deve
animar na concepção do nosso social, na conquista do nosso direito. Sejamos,
pois, observadores e dedicados ao estudo das coisas que nos interessam, a
exemplo dos nossos companheiros de Santos e de São Paulo, onde o
movimento operário na orientação de seus fios já é uma realidade, a despeito
das perseguições de quem tem sido vítima.
Aqui também, como em toda parte, faz-se necessária a criação de um centro
operário, como já o disse o nosso colaborador prof. Bento de Siqueira. Isso,
todavia, não é custoso. Basta boa vontade por parte da maioria dos
companheiros. A criação do O Operário foi baseada nesse escopo e por isso
mesmo trabalhamos com todo o ardor, sentindo cada vez mais a necessidade
de nos unir em associação para melhor cooperarmos em proveito da
coletividade trabalhadora. (PENTEADO, s/d apud SANTOS, 2009, p. 145).
ISSN 2447-746X
DOI: https://doi.org/10.20888/ridpher.v8i00.16726
9
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 8, p. 1-29, e022019, 2022.
Ridphe_R
O que vemos no trecho acima é que o conceito de solidariedade está em associação ao
objetivo social que é a coletividade trabalhadora. O sentido da existência do jornal O Operário
é sincrônico com o conceito de solidariedade, também visa a coletividade dos trabalhadores.
Temos que destacar o professor Bento de Siqueira. Este professor se mudou para Jaú com sua
esposa Ernestina, também professora, em setembro de 1896, para assumir cadeiras do ensino
estadual, que posteriormente abandonaram, em 1904, para investir no ensino particular com seu
Instituto Tomaz Galhardo, que o próprio João Penteado lecionou entre 1904 e 1906
(PENTEADO, 1944). Esse jornal não foi o único envolvimento de Bento de Siqueira com
questões dos trabalhadores, pois no ano de fundação do Centro Operário Beneficente e
Instrutivo do Jahu, Siqueira disponibilizava sua residência para eventuais reuniões e
assembleias do Centro até a construção de sua sede em 1909 (COMMERCIO DO JAHU,
10/11/1908).
Em abril de 1906, João Penteado publicou um texto especialmente significativo para
compreensão da escalada deste docente no seio do anarquismo. Vejamos alguns trechos:
Majestosa, sublime, a aspirão que nos embala, encorajando-nos através das
dificuldades, para a conquista de nossos direitos, para a luta que começa por
acender em meio da humanidade o facho da razão, cuja luz faz nascer em
nossos corações o amor, e termina por nos oferecer um futuro mais ou menos
breve, a posse da terra, tornando-a livre, cheia do sol da liberdade, cujas
delicias nos felicitaram e cuja perspectiva, entretanto, desde já, nos
conforto, alentando-nos em meio do elemento social da actualidade [...].
O homem livre sobre a terra livre, eis o ponto para onde devemos lançar
nossas vistas; eis a divisa desde jornal.
Tomemo-la para nós, que também nos serve. E que a frase de Goëthe, em
nossa alma, seja a evocação constante desse direito, pelo qual nós, os
operários, devemos combater.
O nosso ideal é puro e sublime: -nos coragem para a luta e anima-nos nas
organizações de resistência e propaganda, baseadas sempre em princípios de
liberdade e de moral a mais rigorosa. [...].
A nossa tarefa é árdua e tanto mais se torna necessário o nosso contingente,
quanto urge a nossa intervenção para que nessa luta que é toda nossa, porque
respeita ao nosso bem-estar, de amor, as quaes, há séculos já, foram lançadas
entre os povos deste planeta [...].
É tempo de pormos de parte os preconceitos inúteis e lançarmos um olhar
avante, investigando e medindo a vastidão do nosso campo, tendo em nossa
alma o ideal libertador, que nos vida, fazendo com que não nos
conformemos com o circulo estreito, acanhadíssimo, de relações sufocantes e
corruptoras nem participemos da obra da escravidão.
O nosso dever é ampliar o horizonte de nossos conhecimentos. É tempo disso.
Avancemos, portanto em busca da nossa liberdade! O tempo que nos sobrar,
empreguemo-lo na leitura dos livros e periódicos, cuja orientação perfeita,
clara e concisa nos interesse. A Terra Livre é um dos recomendáveis. (A Terra
Livre, 15/04/1906, n. 02).
ISSN 2447-746X
DOI: https://doi.org/10.20888/ridpher.v8i00.16726
10
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 8, p. 1-29, e022019, 2022.
Ridphe_R
Nessas palavras de Penteado é percebida a empolgação da luta por ideias que
ultrapassam a doutrina espírita. A defesa da razão liga-se à ciência, romantiza-se a liberdade e
a terra compartilhada de uma maneira à espera de um porvir que sentido à luta (sol da
liberdade). Penteado atacou a ordem estabelecida (elemento social da atualidade) com furor,
pois ele se colocou como operário (nós, operários), e como tal se falando por e para eles.
Essa luta, que dá sentido ao porvir, é a própria prática, onde sem ela, não se conquista o ideal:
a fraternidade humana sobre a terra livre. Essa luta também é um dever moral (nosso dever),
orientada na literatura anarquista (leitura de livros e periódicos) que embasa o ácrata nas formas
de pensar e olhar a sociedade. Encontram-se nesse texto os meios e os fins da epistemologia e
prática anarquista. Ação direta, fraternidade e romper com valores preconceituosos que
garantem a permanência da sociedade condenada pelos anarquistas. Percebe-se nas palavras
acima que João Penteado tem grande intimidade com as orientações ácratas.
Esse periódico lido por Penteado, foi criado em 1905 pelo anarquista Edgar Leuenroth
para incentivar a organização operária e disponibilizava vasta biblioteca anarquista contendo
autores como Élisée Reclus (Evolução, Revolução, Ideal anarquista; El Hombre y la Tierra; A
Anarquia e a Igreja), Errico Malatesta (A Anarquia), Oreste Ristori (Discurso e Socialismo),
Piotr Kropotkin (O Passado e seu Papel Histórico; As Prisões; O Comunismo Anárquico; A
Conquista do Pão), entre outros autores que igualmente propunham construir um olhar da
relação do homem com a terra diferente do praticado nas cercanias do município de Je do
bairro Bica de Pedra. Não à toa tal periódico circulava em Araraquara, Bocaina, Mineiros do
Tietê, Agudos, Barra Bonita, Bauru, entre outros municípios da região onde habitava nosso
sujeito docente e anarquista
2
. Na seção Ecos das Fazendas havia muitos desabafos e
reclamações da relação colonos-fazendeiros pelo interior paulista. Considerando que o jornal A
Lanterna explicitamente produzia textos teóricos e relatos sobre ações de excessos por parte de
alguns clérigos pelo Estado de São Paulo, destaca-se aqui o perfil de exploração e domínio de
poder centrado em grupos sociais específicos nessas regiões.
Observando as visitas do anarquista italiano Oreste Ristori em Jaú em suas três
aparições, podemos apreciar igualmente a escalada de João Penteado no seio do anarquismo e
na construção de uma característica forma de compreender e interpretar a sociedade na qual ele
compartilhava sua existência e seus anseios. No tocante à primeira visita de Oreste Ristori
temos o registro em seu jornal La Battaglia em 18 de agosto 1905 reproduzido pelo historiador
Carlo Romani:
2
A Terra Livre, 15/07/1910, n. 73.
ISSN 2447-746X
DOI: https://doi.org/10.20888/ridpher.v8i00.16726
11
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 8, p. 1-29, e022019, 2022.
Ridphe_R
Três viajantes agredidos dentro da floresta ficando um morto e dois feridos.
Este fato deixou uma impressão dolorosa em Jahu, onde chegou
imediatamente a notícia deste assassinato. Impressão tão dolorosa que
nenhum dos meus amigos que haviam prometido me acompanhar em Bico de
Pedras, quis ir. A estrada é terrível, ladeada de florestas impenetráveis
frequentemente batidas pelos assassinos, muito favorável às emboscadas, e
não se marcha senão de charrete. Os companheiros tinham temores
justificados. Mas que fazer? Eu havia prometido ir e parti, armado de fuzil
para Bico das Pedras. Depois de três horas de via crucis cheguei, fui recebido
por poucos mas bons amigos e de tarde dei a conferencia diante de um número
discreto de ouvintes. Então fui dormir. De manhã tinha de retornar a Jahu e
prosseguir depois para São João da Bocaina, onde também devia dar uma
conferencia; mas enquanto me preparava par partir, recebi uma carta do
companheiro Marchesano de Jahu, na qual me dizia: ‘Há uma pessoa em Jahu
que foi de casa dizendo: que o assalto da outra tarde foi devido à extensão da
propaganda anárquica, e procura indignar a opinião pública contra você. Olha
que pode te ocorrer algum mal sério, esteja em guarda no caminho e,
possivelmente não te arrisque a faze-lo’. Imediatamente li este comunicado
aos meus amigos de Bico de Pedras, os quais decidiram que era prudente
seguir aquele conselho e não se arriscar pela via de Jahu ou de Bocaina. [...]
era menos prudente ainda permanecer neste lugar [Bica de Pedra]. Que fazer?
Ir a Pederneiras. (ROMANI, 1998, p. 128-129).
Muitos pontos podem ser destacados neste trecho. Primeiro é o risco real de um
anarquista se revelar defensor da filosofia e da prática libertária na região, passível de
perseguições e tocaias, no bilhete do “companheiro Marchesano” fica evidente. Segundo é que,
apesar de poucas informações, Ristori registra a existência de anarquistas e simpatizantes em
Jaú e no bairro Bica de Pedra. O município de Jna virada do século XIX para o XX, houve
grande entrada de imigrantes, seja para colônias rurais de café seja para o ambiente urbano no
comércio ou prestação de serviços. Tanto colonos como pequenos comerciantes eram
prejudicados com a política dos coronéis do café. Não à toa pequenos comerciantes e até
pequenos proprietários rurais tinham simpatia com ideias libertárias que buscavam romper com
esse controle característico de regiões do café. No ano de 1907, Ristori fez conferência em
Bauru para anarquistas e comerciantes, João Penteado auxiliou no regimento da Sociedade
Mútua de Bica de Pedra em 1909, onde comerciantes, pequenos proprietários rurais e qualquer
interessado a partir de 16 anos (COMMERCIO DO JAHU, 21/05/1909).
Em agosto de 1907, Oreste Ristori retorna para Bica de Pedra para a conferência O
Cristianismo perante a história e a sociologia e João Penteado envia uma carta para o Jornal
La Battaglia relatando com entusiasmo a conferência (ROMANI, 1998). Romani escreveu
sobre essa visita:
ISSN 2447-746X
DOI: https://doi.org/10.20888/ridpher.v8i00.16726
12
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 8, p. 1-29, e022019, 2022.
Ridphe_R
Durante as conferências que realizou, Ristori conheceu os mais diversos tipos,
desde os ferrenhos adeptos da causa anarquista até alguns simpatizantes não
ortodoxos mas que se aproximavam dele mais em função do caráter
racionalista e anticlerical das propostas libertárias. Esse movimento pela
racionalização das ideias, Ristori frequentemente deparou-se com educadores,
não necessariamente libertários, mas muito propensos a usar os mesmos
fundamentos pedagógicos utilizados pelos professores ácratas. Em sua
passagem por Jaú, em agosto de 1907, Oreste impressiona muito um educador
local chamado João Penteado, que passa, a partir de então, a criar vínculos
mais profundos com o movimento libertário. (ROMANI, 1998, p. 160).
Em março de 1909, Ristori retornou novamente em Jaú para a conferência Prostituição,
Alcoolismo e Criminalidade, ironicamente chamado pela folha local Commercio do Jahu de
“publicitário italiano” acabou o chegando no dia marcado, 17 de março, devido ao “mal
tempo” segundo essa mesma folha. Realizou a conferência no dia 20 com nova temática,
Socialismo e Anarchismo
3
. Ristori seria expulso do Brasil em 1912, pela Lei Adolfo Gordo
criada para intimidação e vingança contra os militantes anarquista que ameaçavam o controle
do fazendeiro sobre o colono e do industrial sobre o operário (DIAS, 1997). João Penteado
pediu sua exoneração nesse mesmo dia 20 de março. Para compreender a sincronia desses dois
fatos devemos visitar a formação e experiências docente de João Penteado em Jaú, entre 1896
e 1909.
A DOCÊNCIA DE JOÃO PENTEADO EM JAÚ: A CONSTRUÇÃO DE UMA ÓTICA
PEDAGÓGICA RACIONALISTA
A primeira cadeira de instrução pública do município de Jaú surgiu em março de 1859,
sendo de primeiras letras para o sexo masculino e tendo como professor João Roldão de Lara
que ficou apenas até 1861 (TEIXEIRA, 2009). Em 1870, surge a primeira cadeira de primeiras
letras para o sexo feminino, com a professora d. Margarida de Sá Brandão. Entre 1889 e 1895,
foram criadas diversas cadeiras também de primeiras letras no espaço urbano e rural no
entornou de Je iniciou-se a construção do primeiro Grupo Escolar do município (TEIXEIRA,
2009). Em 1883, o professor Caetano Lourenço de Camargo vem para Jaú em 1883 para a
cadeira de Lara, vaga 11 anos
4
. João Penteado foi aluno de Caetano numa sala do curso
preliminar do sexo masculino entre 1884 e 1888 (dos 7 aos 12 anos) e no intermédio entre 1888
e 1892 (entre 12 e 16 anos) quando funcionava numa sala do prédio da Câmara Municipal de
Jaú, visto que Penteado nasceu em 1877. Numa obra memorialista, Pioneiros do Magistério
3
Commercio do Jahu, 20/03/1909, n. 64.
4
Commercio do Jahu, 23/10/1913, n. 574.
ISSN 2447-746X
DOI: https://doi.org/10.20888/ridpher.v8i00.16726
13
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 8, p. 1-29, e022019, 2022.
Ridphe_R
Primário (1944), João Penteado deixou registrado em retrospecto o cotidiano das aulas do
professor Caetano e seus alunos:
Havia escassez de escolas e o analfabetismo imperava de tal modo que havia
pequena porcentagem de indivíduos que sabiam ler.
Para agravar essa circunstância havia, ainda, a imensa dificuldade de
transportes para as grandes distâncias dos centros mais povoados, não
havendo para isso outros recursos senão o lombo de cavalo, a canoa, a tropa e
o carro de bois.
Assim era que, qualquer pessoa mais ou menos alfabetizada, conhecendo as
quatro operações fundamentais, inclinando-se para o magistério primário,
alvorava-se logo em professor e vivia modestamente dos subsídios auferidos
das mensalidades dos alunos.
E como estávamos afastados dos benefícios da civilização de que hoje
dispomos, não tinham outro recurso senão seguir a rotina, aplicando métodos
antiquados a par de uma disciplina dura e cruel, mas compatível com a época,
pondo em voga os castigos físicos mais bárbaros, dentre os quais
invariavelmente apareciam a vara de marmelo, a palmatória e outros
instrumentos de suplícios. (PENTEADO, 1944, p. 41).
A situação escolar cotidiana descrita por Penteado não seria tão incomum nas décadas
seguintes: condições precárias no exército da instrução, além da sobreposição de diversos
métodos didáticos que se misturavam segundo as experiências oriundas da formação precária
dos professores. Só na capital e em outras poucas cidades havia a formação mais específica do
professorado e mesmo assim incipiente para a demanda. Caetano não teve contato nesse período
com o método intuitivo, muito divulgado a partir da década de 1890 por brasileiros defensores
da uma reforma na instrução brasileira, como Ruy Barbosa e Rangel Pestana (SANTOS, 2015;
PERES, 2020). Portanto, se destaca na memória de Penteado o ultrapassado método
lancasteriano e seu estilo de disciplina através dos castigos físicos que persistiram devido à
ausência de formação mais sistemática do corpo docente e novas formas de enxergar o ensino.
Mas também tal persistência se dava porque era o que a experiência apresentava na hora de
encarar situações escolares de salas volumosas (SOUZA, 1998; FARIA FILHO, 2010). Segue
Penteado em sua lembrança:
E o professor Caetano, para dar conta de sua árdua tarefa, além de precisar
fazer grande esforço, necessitava, também, do auxílio de decurião, que sempre
era escolhido entre os discípulos mais adiantados, como, por exemplo, no
nosso tempo, Artur Sebastião de Almeida, neto do sr. Antônio Luiz Pereira,
ambos já falecidos, de quem ainda nos lembramos perfeitamente. [...]
[Iniciavam as aulas] por uma prece ao Divino Espirito Santo [...] para que nos
esclarecesse a inteligência. [...] Costumávamos fazer esforços inauditos afim
de estudarmos bem as nossas lições e nos livrarmos de alguma remessa de
bolos ou de outros castigos. [...] Aprender a lêr, naquele tempo, não era
brinquedo, [...] porque os castigos nos apavoravam e nos enchiam de excitação
ISSN 2447-746X
DOI: https://doi.org/10.20888/ridpher.v8i00.16726
14
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 8, p. 1-29, e022019, 2022.
Ridphe_R
e de receios, dando-nos motivo de dissabores ais que às vezes nos
desencorajavam e faziam perder a boa vontade e o ânimo ante o rigor férreo
da disciplina. A escola era-nos quase sempre um suplício. [...] Estávamos no
tempo do Império e sob o regime da escravidão, cujos horrores influíam no
tratamento observado entre professores e alunos. O trato recebido pelos alunos
da movimentada escola do prof. Caetano Lourenço de Camargo não havia
diferença alguma do que também se verificava na sua família com relação aos
próprios filhos. Ia de extremo a extremo. Ora todo bonança e afetuosidade, ora
cheio de exigências e recriminações, tornando-se inexorável na punição das
faltas cometidas (PENTEADO, 1944, p. 47-48).
Os decuriões eram auxiliares utilizados pelo método lancasteriano, inserido
oficialmente no Brasil em 1827, mas persistiu fracionado ou adaptado nos períodos
subsequentes (SAVIANI, 2013). Maria Lúcia de Arruda Aranha (2006) caracterizou o método
lancasteriano como empírico, mecânico, sem valor educativo, baseado em receitas e fórmulas
e transmissão de conhecimentos superficiais, onde o aluno é a grande vítima de um sistema de
bases militares de conduta. Sem diálogos no processo de aprendizagem, a mecanicidade desse
método se justificava pela prioridade nas habilidades de memória ao invés da influência verbal.
A persistência desse método se deu, apesar da Reforma Leôncio de Carvalho de 1879 que visava
a instrução como “civilizatória”, pela sua praticidade e eficiência dentro de um espaço escolar
autoritário em uma sociedade acostumada com a violência da escravidão (OLIVIATO, 2017,
p. 852).
Ao destacar o uso da “prece ao Divino Espírito Santo” para esclarecer a inteligência,
vemos que a concepção de conhecimento em Caetano era algo ligado à essência transcendental,
cujo objetivo do docente e da religião era elucidar na mente da criança e não resultado de um
procedimento realizado conjuntamente aluno e professor. Em suas memórias, observamos que,
apesar de Penteado defender o método intuitivo usado na pedagogia racionalista de Ferrer -,
sua experiência como aluno foi com o método lancasteriano. Resta-nos a pergunta: qual foi o
ponto de inflexão entre a experiência como aluno e a prática docente de João Penteado para que
esse passasse a ser defensor assíduo de uma prática inovadora na educação?
Nesse fim de século, a responsabilidade pela instrução publica estava sendo passada
para os municípios, e ao mesmo tempo propagava os Grupos Escolares como “templos da
civilização” dentro do discurso modernizador e civilizatório (SOUZA, 1998). Entretanto, o
primeiro Grupo Escolar de Jaú, fundado em 1903, absorvia um número inexpressivo de vagas,
sendo completadas pelas escolas isoladas, mesmo assim era apenas 27,7% do necessário para
as crianças em idade escolar em Jaú (TEIXEIRA, 2009). Essas escolas isoladas foram criadas
em 1892 pela lei estadual 88 para completar as matrículas não atendidas pelos Grupos
Escolares. Essas escolas eram regidas por um professor que ministrava o ensino elementar,
ISSN 2447-746X
DOI: https://doi.org/10.20888/ridpher.v8i00.16726
15
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 8, p. 1-29, e022019, 2022.
Ridphe_R
instruindo um grupo de alunos em estágios diferentes de aprendizagem, em salas com até 40
alunos, bem diferente dos Grupos que se organizavam segundo estágio de aprendizagem e num
espaço físico criado para esse fim (SAVIANI, 2013). Os professores dessas escolas isoladas,
além das condições precárias, também recebiam menos que os professores dos Grupos. E toda
categoria teve rebaixamento salarial de 15% em 1904 e 1905 por decreto (ALMEIDA, 1998, p.
136).
Segundo José Fernandes (1955), Penteado “não tardou a fazer concurso para professor
primário e, aprovado, lecionou incialmente numa das primeiras escolas de Capim Fino (atual
Vila Ribeiro) e, posteriormente, em Itapuí, então Bica de Pedra, (FERNANDES, 1955, sem
página). A cadeira na qual Penteado lecionou em Bica de Pedra não tem data definida. Teixeira
(2009) diz que foi criada em 1891, Léa de Hungaro de Almeida Prado e José Renato de
Almeida Prado (2013) afirmam ser em 1896. Seja como for, é na década de 1890 que o Estado
de São Paulo passou a investir progressivamente na educação pública, entre 889:807$102 em
1891 e 6.344:338$265 em 1905, permitindo a criação de várias salas (INSPETORIA GERAL
DO ENSINO DO ESTADO DE SÃO PAULO, p.1908). O nome de registro da escola isolada
onde Penteado lecionou em Bica de Pedra pode ter sido Escola do Sexo Masculino de Bica de
Pedra, segundo a legislação do período (INSPETORIA GERAL DO ENSINO DO ESTADO
DE SÃO PAULO, 1909, p. 56). E as condições materiais foram registradas pelos próprios
documentos produzidos pelo órgão do Estado de São Paulo. Observe:
O material didactico de que podemos dispor para uso dos alumnos é mais ou
menos suficiente. Entretanto, livros para os professores, ninguém os escreve.
Terminado o curso profissional, os professores vão reger escolas isoladas, e
ahi têm de formar, pela observação própria, o cabedal de sua orientação, sem
uma única fonte que lhes forneça as indicações e preceitos que devem pôr em
prática, pra dirigir proveitosamente a escola que lhes foi confiada.
(INSPETORIA GERAL DO ENSINO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 1909,
p. 61).
Sobre as instalações:
Em regra geral, as escolas isoladas do Estado funcionam mal instaladas, em
salas acanhadas, sem luz e sem cubagem suficiente de ar. O fornecimento de
material para essas escolas tem sai feito de maneira irregular. [...] Dentre os
estabelecimentos particulares que o Estado subvenciona, alguns mantêm-se
com abastança e até com luxo, emquanto as nossas escolas estão na indigência.
(INSPETORIA GERAL DO ENSINO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 1909,
p. 66-67).
ISSN 2447-746X
DOI: https://doi.org/10.20888/ridpher.v8i00.16726
16
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 8, p. 1-29, e022019, 2022.
Ridphe_R
O que se percebe no texto acima é que as escolas isoladas eram realmente tapa-buracos
da instrução pública e não havia programa para solucionar esse problema. O público dos Grupos
Escolares era urbano e fixo, pois tinha uma frequência de 83%. as escolas isoladas chegavam
à 50% no mês de junho devido à migração, em busca de emprego, por parte dos familiares em
período de plantações e colheitas. E isso assustava os professores, pois o Regulamento de 11
de janeiro de 1898 previa o fechamento dessas escolas caso chegassem a menos de 15% de
frequência (INSPETORIA GERAL DO ENSINO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 1909), e
não havia nenhuma política pública que diminuísse esses números, até porque o que importava
para os Governos Estadual e Municipal era exibir os prédios dos Grupos Escolares como
símbolos da civilidade urbana nos relatórios anuais da Inspetoria. Apesar do alto investimento
por parte do Governo do Estado, as escolas isoladas, que eram o grande sustentáculo do volume
de matrículas da instrução pública, permaneceram desvalidas de apoio e até ocultadas das obras
memorialistas. Sebastião Teixeira (2009), na obra em comemoração da virada do século, e José
Fernandes (1955), com sua obra ambientada no primeiro centenário do município de Jaú,
tomados pelo discurso civilizatório e modernizador frente a instrução pública em Jaú apenas
deixaram um registro pífio dessas salas.
Dentro desse quadro, destaca-se em João Penteado uma preocupação notória sobre a
instrução. A situação que Penteado se viu frente no cotidiano das escolas isoladas foi de
impossibilidade de qualquer resultado com os métodos que aprendera como aluno do professor
Caetano. Assim, ao mesmo tempo que despertava para o anarquismo, a instrução como
ferramenta transformadora da sociedade e do indivíduo se mostrava mais clara. O trecho de seu
jornal O Operário, em 1905, e seu artigo no jornal A Terra Livre, em 1906, já citados, mostram
essa preocupação. Não queremos fazer associação direta do interesse de Penteado por um
ensino transformador com a pedagogia de Francisco Ferrer, mas a uma leitura da educação
segundo a epistemologia anarquista, até porque muitos pensadores anarquistas presumiam
tal função social e subjetiva da instrução. Essa visão da educação esteve nos “galhos da árvore
genealógica” dos escritores que ajudaram a cultivar as ideias anarquistas, mesmo sem escrever
diretamente sobre educação. A educação anarquista quase sempre repousou sobre cinco
arrimos: autonomia individual, autogestão social, internacionalismo, ação direta e a instrução
integral (GALLO, 2015). O primeiro defende uma dialética essencial entre indivíduo e
sociedade; o segundo a autogestão dos cidadãos sobre sua sociedade em oposição à hierarquia
exploradora; o terceiro defende o fim dos limites geopolíticos, motivo das guerras e xenofobia;
o quarto é o princípio da propaganda e a ão pela transformação da sociedade; o quinto é a
ISSN 2447-746X
DOI: https://doi.org/10.20888/ridpher.v8i00.16726
17
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 8, p. 1-29, e022019, 2022.
Ridphe_R
Instrução Integral, desenvolvimento intelectual, físico e moral do ser humano (GALLO, 2015).
Sobre esse conceito de Instrução Integral, há um discurso de Bakunin em 1869:
Enquanto houver dois degraus de instrução para os diferentes estratos da
sociedade, haverá necessariamente classes, isto é, privilégios econômicos e
políticos para um pequeno número de eleitos, e escravidão e miséria para a
maioria [...]. Onde tanto o trabalho manual como o trabalho intelectual são
deformados pelo isolamento absolutamente artificial a que ambos foram
condenados.
Mas estamos convencidos de que o homem vivo e completo, cada uma destas
duas atividades, muscular e nervosa, deve ser igualmente desenvolvida e que,
longe de se anularem mutuamente, cada uma delas deve apoiar, alargar e
reforçar a outra; a ciência do sábio se tornará mais fecunda, mais vasta quando
o sábio deixar de ignorar o trabalho manual, e o trabalho do operário instruído
será mais inteligente e por conseguinte mais produtivo do que o do operário
ignorante. (BAKUNIN, 1979, p. 37-39).
Em outra obra Bakunin escreveu também sobre instrução:
Eternizar o regime da menoridade humana e da autoridade pretensamente
divina, enquanto a educação e a instrução da escola, não tendo, ao contrário,
outro fim senão a emancipação real das crianças quando chegarem à
maioridade, não serão outra coisa senão sua iniciação gradual e progressiva à
liberdade pelo triplo desenvolvimento de suas forças físicas, de seu espírito e
de sua vontade. (BAKUNIN, 2009, p. 57).
A Instrução Integral se debruçou na ideia de construção de um ser humano livre e
defensor da cooperação; Kropotkin dizia que “o homem é um ser essencialmente sociável; que
sua vida se compõe de fios inumeráveis que continuam visível e invisivelmente na vida dos
outros (KROPOTKIN, 2007, p. 50), compondo que chamamos de Humanidade. Dos cinco
arrimos, o último pareceu costurar os outros e por isso ganhou destaque nas pedagogias
modernas. Mas não foi Bakunin ou Kropotkin os iniciadores de pedagogias atreladas ao
anarquismo. Essas diversas práticas pedagógicas anarquistas tinham pontos em comuns sobre
o ensino tradicional, visto como excludente e autoritário. William Godwin (1756-1836),
Charles Fourier (1772-1837), Leon Tolstoi (1828-1910), Pierre-Joseph Proudhon (1809-2865),
Paul Robin (1837-1912) e Francisco Ferrer y Guardia (1859-1909) (WOODCOCK, 1998;
TOMASSI, 1998; LIPIANSKY, 2007). Em 1864, esse tipo de ensino passou a ser pauta da
Primeira Internacional dos Trabalhadores. Nessa convenção, Bakunin e Paul Robin
apresentaram essa proposta educacional no Congresso da Basileia (VALVERDE, 1996). Em
1898, Élisée Reclus, Grave, Louise Michel, Tolstoi e Kropotkin criaram um comitê para a
educação integral (SANTOS, 2009; MARTINS, 2010).
ISSN 2447-746X
DOI: https://doi.org/10.20888/ridpher.v8i00.16726
18
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 8, p. 1-29, e022019, 2022.
Ridphe_R
O espanhol Francisco Ferrer y Guardia dialogou com essas concepções pedagógicas
anarquistas, mas também abriu colaborações para seu movimento educacional de “franco-
maçônicos, livre-pensadores, espíritas e protestantes” (VALVERDE, 1996, p. 56), pondo em
prática mais tarde em sua Escola Moderna de Barcelona. Escreveu Ferrer y Guardia que a
missão da escola de Barcelona era de “fazer com que meninos e meninas [...] se tornem pessoas
instruídas, verdadeiras, justas e livres de qualquer preconceito”. Para isso, o estudo deveria ser
“racionalizado das ciências naturais”, pois “estimulará, desenvolverá e dirigirá as aptidões
próprias de cada aluno, a fim de que, com a totalidade do próprio valor individual, não somente
seja um membro útil à sociedade, mas que [...] eleve propriamente o valor da sociedade”
(FERRER Y GUARDIA, 2014, p. 37).
Sobre os fundamentos, escreveu Ferrer que a ciência é patrimônio de todos, assim não
deveria se restringir a grupos de privilegiados e sim levar a todos o “Procedimento da
experiencia e da observação”. O método empregado privilegiava as práticas experimentais
como meio de busca da verificação das informações, contrapondo aos grupos inimigos que
utilizavam uma “pedagogia medieval subjetiva, dogmática que ridiculamente se gaba de um
critério infalível” (2014, p. 41). A anarquista Maria Lacerda de Moura destacou que Ferrer
chamou para seu programa cultural e editorial de material para a Escola Moderna pesquisadores
e cientistas mais notáveis do velho continente para ajudar na “serie dos livros editados
especialmente para a escola racionalista e os nomes que os subscrevem atestam a altura dos
ideais pedagógicos” propostos pelo pedagogo espanhol (MOURA, 1934, p. 09)
5
. Eram
produções que iam desde revistas, jornais escolares, manuais didáticos e produções didáticas
baseadas em pesquisas científicas atualizadas. Essas ideias pedagógicas de cunho político
transformador se tornaram práticas inerentes ao movimento anarquista na virada do século. Para
Jomini (1989), os libertários se viam no papel de fomentar a ão das massas para a construção
de uma sociedade alternativa à sociedade atual e suas desigualdades.
No Brasil, em 1906, junto com greves pelo país afora, a Confederação Operária
Brasileira (COB) editou jornais e organizou o Comitê pró Escolas Modernas do Rio de Janeiro
e a Associação Pró Escola Moderna de São Paulo (JOMINI, 1989). Ainda em 1907, a Liga
Operária de Campinas criou a Escola Social tendo o professor Renato Salles, Adelino de Pinho
que viria a ser grande amigo de João Penteado e professor da Escola Moderna n°2 de São Paulo.
5
Essa movimentação que Francisco Ferrer fez pode ser vista na tese de Rodrigo Rosa da Silva. Ver em: SILVA,
Rodrigo Rosa da. ANARQUISMO, CIÊNCIA E EDUCAÇÃO: Francisco Ferrer y Guardia e a rede de
militantes e cientistas em torno do ensino racionalista (1890-1920). 2013. 379 f. Tese (Doutorado) Faculdade
de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
ISSN 2447-746X
DOI: https://doi.org/10.20888/ridpher.v8i00.16726
19
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 8, p. 1-29, e022019, 2022.
Ridphe_R
Como destacamos, Oreste Ristori também foi ativo na propaganda da Escola Moderna
fazendo conferências sobre o assunto instigando criações (MORAES, 1999; SANTOS, 2009;
ROMANI, 1998).
Como vimos acima, o professor João Penteado sinalizava no início do século XX
simpatia por uma pedagogia síncrona com as ideias anarquistas para a educação. Penteado se
aproximou do professor Bento de Siqueira, provavelmente desde que este chegou a Jaú em 1896
vindo de São Paulo (JAHU MODERNO, 12/02/1914, n. 96; PENTEADO, 1944). Os jornais
anarquistas que circulavam em Bica de Pedra publicavam diversos artigos de cunho pedagógico
libertário, sob prisma anticlerical, citando exemplos de experiências educacionais que
superassem o ensino religioso e autoritário, as próprias obras de anarquistas como Élisée
Reclus, Piotr Kropotkin e Malatesta que colocavam explicitamente a instrução como fator
preponderante na transformação da sociedade
6
. Os historiadores Rodrigo Rosa da Silva,
Guilherme Amaral e Adriano Skoda reuniram na obra Escritos Sobre Educação e Geografia
(RECLUS; KROPOTKIN, 2014) diversos textos de Élisée Reclus e Kropotkin sobre educação,
incluindo cartas desses para Francisco Ferrer. Esses dois anarquistas foram muito lidos por João
Penteado. Mas também colunas como do anarquista do município de Limeira A. Viotti que, por
vários números do jornal O Livre Pensador, discorreu sobre o caráter do ensino à maneira
anarquista como ferramenta político-transformadora (O LIVRE PENSADOR, 13/05/1904;
06/06/1904; 12/06/1904; 17/07/1904).
Portanto, em agosto de 1907, o professor João Penteado, que Ristori encontrou na sua
conferência de Bica de Pedra sobre o Ensino Racionalista, não foi somente um entusiasta de
uma pedagogia alternativa. Penteado e Siqueira teriam bases teóricas para interpretar o ensino
à luz de uma pedagogia próxima ao racionalismo ferreriano, o que certamente facilitou o
entusiasmo de Penteado pela pedagogia racionalista de Ferrer y Guardia.
O CASO DE BICA DE PEDRA
6
A Lanterna 10/10/1901.
ISSN 2447-746X
DOI: https://doi.org/10.20888/ridpher.v8i00.16726
20
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 8, p. 1-29, e022019, 2022.
Ridphe_R
FIGURA 3 -Primeira missa do bairro Bica de Pedra, em 13 de junho de 1890. O que se
percebe é o fomento religioso intenso que posteriormente se evidenciaria no Caso Bica de
Pedra como uma militância radical ultramontanista.
Fonte: Prado; Prado, 2013.
A pedagogia de Francisco Ferrer não se limitava ao círculo anarquista; para atrair
adeptos para sua pedagogia aproximou-se de republicanos, livre-pensadores e qualquer
indivíduo que desejasse uma educação científica e livre de dogmas. O ambiente histórico
espanhol no qual Ferrer viveu nos compreensão de seus objetivos. Era uma Espanha com
80% da educação sob o ensino privado da Igreja, em especial Barcelona que tinha 489 escolas
confeccionais e apenas 137 estatais ou privadas. Abrir uma escola racionalista era possibilitar
uma instrução que fosse alternativa ao apresentado por instituições externas aos interesses e
necessidades da população (SAFÓN, 2003). Em 1901, Ferrer fundou uma escola de ambos os
sexos em Barcelona, com 30 anos, para combater o ensino sob domínio da instituição religiosa
que, segundo Ferrer, por culos usou de seu domínio da educação como ferramenta de
“adestramento, doutrinação e polimento da sociedade em valores que muitas vezes promoveram
o preconceito e a discriminação religiosa, sexual, regional, de pensamento e de menosprezo
pelo trabalho” (FERRER Y GUARDIA, 2014, p. 46). Para Ferrer, uma coeducação dos sexos
romperia o aprisionamento que o homem converteu a mulher por toda a história, sendo sua
proposta resgatar a mulher dessa inferiorização historicamente construída (SAFÓN, 2003). E
uma coeducação das classes sociais, outro princípio na pedagogia de Ferrer, viria no sentido de
estabelecer a igualdade de oportunidade e de desenvolvimento intelectual (FERRER Y
GUARDIA, 2014). Para Ferrer, o ensino científico não era apenas meio de lutar contra os
ISSN 2447-746X
DOI: https://doi.org/10.20888/ridpher.v8i00.16726
21
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 8, p. 1-29, e022019, 2022.
Ridphe_R
dogmas da igreja, mas também ferramenta de compreensão da realidade das crianças, pelas
próprias crianças. Há questão de higiene, a ciência era instrumento didático na compreensão do
universo das bactérias e vírus. Usava-se jogos de forma didática para despertar o
desenvolvimento da solidariedade, altruísmo e cooperação ao invés da competitividade.
Excursões escolares nas indústrias e no campo serviam para compreender de forma empírica
através do método de observação e descrição a natureza geográfica e biológica, o processo
industrial e a precariedade do trabalho operário (FERRER Y GUARDIA, 2014).
Percebe-se que Ferrer passou a se tornar um inimigo tanto para o Clero como para a
monarquia espanhola, e um atentado realizado por Mateo Morral, ex-funcionário da biblioteca
escolar da Escola Moderna de Barcelona, em 1907, foi usado como pretexto para o fechamento
da Escola Moderna de Barcelona em 10 de julho de 1907, mesmo sem qualquer indício da
ligação entre o atentado de Mateo e a escola ou com Ferrer. Num contexto de intensa
manifestação política do povo espanhol, num evento conhecido por Semana Trágica, em junho
de 1909, Ferrer foi acusado de mentoria e preso. O julgamento foi interpretado da seguinte
forma pelo historiador inglês Antony Beevor:
Embora fosse evidente que Ferrer não podia ter nada a ver com os tumultos, a
hierarquia católica exerceu por pressão sobre o governo para condenar seu
adversário educacional. Ele foi condenado à morte com base em testemunhos
obviamente falsos e a sua execução provocou uma onda de protestos na
Espanha e no exterior. (BEEVOR, 2007, p. 52).
A Espanha era um barril de pólvora: uma estrutura tradicional de governo baseada num
autoritarismo eclesiástico que perdurava por séculos, e que atravessou o século XIX e chegou
ao XX sem parecer cativado por qualquer inovação política e social que buscasse
transformações mais sérias. A incompatibilidade do discurso da “Espanha Velha” e os novos
movimentos políticos que exigiam transformações evoluiu para um choque que rachou o país
mais tarde. A defesa dessa “Espanha Velha” era cara, com o preço de uma expectativa de vida
de apenas 35 anos, 64% de analfabetismo, grande parte das terras sob domínio do clero e de
uma nobreza atrasada, um rei que começou seu reinado em 1902 aos dezesseis anos de idade
(BEEVOR, 2007). Francisco Ferrer foi a bandeira de uma ira que tomou não apenas a Espanha,
mas diversas partes do mundo.
O ano que antecedeu a execução de Ferrer, Penteado lia e escrevia no jornal A Voz do
Trabalhador, da Confederação Operária Brasileira, sediada no Rio de Janeiro. Neste jornal era
publicado obras da editora da Escola Moderna de Barcelona, o jornal Boletin de la Escuela
Moderna, a revista L’Ecole Rénovée e a revista internacional de propaganda pela instrução
ISSN 2447-746X
DOI: https://doi.org/10.20888/ridpher.v8i00.16726
22
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 8, p. 1-29, e022019, 2022.
Ridphe_R
racionalista La Scuola Laica eram vendidos neste jornal
7
. Neste jornal também foi publicado
vários protestos em decorrência do fuzilamento de Francisco Ferrer, o que também ocorreu no
jornal A Lanterna
8
que também publicava artigos de Ferrer da revista L’Ecole Rénovée. O jornal
A Terra Livre publicava artigos sobre escola livre e disponibilizava a também obras da editora
de Ferrer
9
em 1908.
Nesse ano de 1908, João Penteado sob esse tipo de leituras vivenciou um fato histórico
que iria colocá-lo de vez nos caminhos militantes do anarquismo. Esse fato ficou conhecido nos
jornais de circulação local como O Caso de Bica de Pedra. A sala onde João Penteado lecionava
em Bica de Pedra, apesar de ser estadual, ficava dentro de uma igreja presbiteriana e isso era
comum. No dia 24 de março de 1909 o prefeito de Jaú postou um texto no jornal Commercio
do Jahu explicando e defendendo uma posição do subprefeito do bairro rural de Bica de Pedra
que pedia a troca da professora Ana Sampaio que lecionava na Escola Isolada do Sexo
Feminino de Bica de Pedra sob a alegação de “incompatibilidade existente” da pessoa da
professora enquanto profissional e “parte de população de Bica de Pedra”. Em defesa ao
subprefeito José Antonio da Silva Fonseca, o prefeito Constantino Fraga afirmou que o pedido
de Fonseca estava dentro da qualidade do cargo exercido, sendo um homem “reconhecido de
inteira boa fé”. Segundo Fraga, o inspetor de ensino Colombo de Almeida assumiu a mesma
posição. Ana Sampaio foi removida para o município de Barra Bonita (COMMERCIO DO
JAHU, 24/03/1909).
O fato ocorreu em 12 de dezembro de 1908. E essa explicação veio ocorrer porque
no jornal de Rio Claro O Alpha, que circulava também em Jaú, Penteado postou um texto com
uma explicação bem diferente da escrita pelo prefeito Fraga. No dia 20 de março, portanto,
quatro dias antes da explicação de Fraga, o jornal rio-clarense publicou o artigo O Caso de Bica
de Pedra - título que passou a ser utilizado também pelo jornal Commercio do Jahu. Com o
subtítulo “grave escândalo administrativo padre indigno politiquice e fanatismo
professorado perseguido” deixa evidente que a explicação de Fraga passou longe da versão de
Penteado. Em resumo, no artigo de João Penteado, o vigário de Bica de Pedra, o padre Nicolau
Tarloni, teria usado o “fanático e ignorante” subprefeito Fonseca e o escrivão de paz Caetano
Pereira com objetivo de perseguir a professora Ana Sampaio por ser ela presbiteriana. E que
essa questão repercutiu entre a população jauense, muito em função de seu amigo Argymiro
7
A Voz do Trabalhador, 01/08/1908; 22/11/1908; 29/11/1908; 13/01/1909.
8
A Voz do Trabalhador, 15/11/1909; A Lanterna, 17/10/1909; 30/10/1909; 13/11/1909; 20/11/1909.
9
A Terra Livre, 14/03/1908; 03/09/1908.
ISSN 2447-746X
DOI: https://doi.org/10.20888/ridpher.v8i00.16726
23
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 8, p. 1-29, e022019, 2022.
Ridphe_R
Acayaba ter esclarecido o fato através do jornal Correio do Jahu
10
. O desfecho da história pode
ser lido nas palavras escritas pelo próprio Penteado:
[...] As exmas, sras. d. Anna Sampaio, desta povoação e Malvina Morato
Ferraz, de Barra Bonita, não aceitaram a permuta ordenada e pediram sua
demissão; o professor João Penteado, que estas linhas escreve, também
accusado, obteve ordem de remoção desta povoação para a de Villa Ribeiro,
em permuta com o professor Agostinho Xavier, sendo que, porém, ambos, por
espírito de solidariedade, pediram egualmente sua demissão. [...].
Bica de Pedra, 22/3/909.
João Penteado (O Alpha, 25/03/1909).
O vigário Nicolau Tarloni foi o primeiro padre a residir no bairro Bica de Pedra (em 27
de setembro de 1902) e um dos primeiros padres da paróquia, atuando entre 1903 e 1910. E o
subprefeito era filho do fundador da fazenda Bica de Pedra que deu origem ao bairro cujo
terreno foi cedido pelo próprio fundador (PRADO; PRADO, 2013). De fato, o subprefeito
Fonseca pediu a exoneração ou remoção do professor João Penteado
11
do cargo de docente da
Escola Isolada do Sexo Masculino de Bica de Pedra, o qual, nas palavras do próprio Penteado,
agiu pelo mesmo motivo do pedido de remoção da professora Ana Sampaio, mas também é
passível de interpretação como perseguição de sua opção filosófico-política.
No dia 20 de março de 1909, mesmo dia da conferência de Oreste Ristori sobre
Anarchismo e Socialismo, João Penteado pediu exoneração, após ter se removido para lecionar
em Capim Fino. Penteado ficou alguns meses dando aulas particulares em Jaú, mas seus irmãos
se mudaram para São Paulo onde fundaram juntamente com João Penteado uma escola, a
Escola Nova
12
. Sete meses depois da exoneração resultante perseguição religiosa e filosófica,
acontece a execução de Francisco Ferrer y Guardia, na Espanha, pelos mesmos motivos. Claro
que a intensidade do caso de Ferrer foi mortalmente maior, mesmo assim podemos interpretar
como um contexto de situações que proporcionaram a João Penteado opções segundo sua base
filosófica e política de escolhas nas ações e posicionamento frente ao que ele identificou como
sendo imoralidades, injustiças e excessos de poderes, seja político seja religioso, por parte das
personalidades envolvidas. O anarquismo de João Penteado o conduziu para tal posição.
10
O Alpha, 25/03/1909.
11
Commercio do Jahu, 19/03/1909/ 20/03/1909.
12
PERES, 2012; MORAES (org.), 2013.
ISSN 2447-746X
DOI: https://doi.org/10.20888/ridpher.v8i00.16726
24
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 8, p. 1-29, e022019, 2022.
Ridphe_R
FIGURA 4 - Jornal de Rio Claro que circulava em Jaú.
Capa da edição que publicou a explicação de João Penteado sobre o Caso Bica de Pedra.
Fonte: Arquivo Público e Histórico de Rio Claro
Em 09 de outubro de 1909 Ferrer foi fuzilado na fortaleza de Montjüic em Barcelona.
No dia 11, podemos ver textos expondo a perplexidade do fuzilamento no jornal local
Commercio do Jahu e no dia 20 de outubro o mesmo jornal publicou um texto baseado no
depoimento de uma testemunha que esteve na fortaleza espanhola detalhando os momentos
finais de Ferrer e nomeando os personagens envolvidos na trama
13
. E nesse mesmo dia, o
Centro Operário de Jrealizou um protesto contra o fuzilamento terminando com conferências
realizadas pelo farmacêutico Edgar Caldas e João Penteado (O COMMERCIO DO JAHU,
20/10/1909). As manifestações seguiram nos dias seguintes. Em dezembro ainda havia
manifestações em protesto ao fuzilamento de Ferrer, e no dia 4 de dezembro de 1909, seria
exibido no Teatro Carlos Gomes uma fita chamada A Execução de Ferrer para alguns espanhóis
residentes em Jaú, mas o delegado de polícia proibiu a exibição (O COMMERCIO DO JAHU,
04/12/1909).
No ano seguinte, no aniversário de fuzilamento do pedagogo espanhol, o Centro
Operário de Janunciou a instalação de uma Escola Moderna em Jaú, que ocorreu em junho
de 1913 tendo duração até dezembro do mesmo ano quando o professor José Garzone se mudou
para a cidade de Jundiaí. Seguiram-se manifestações de jovens passeando pelas ruas de Jaú pela
13
Commercio do Jahu, 20/10/1909.
ISSN 2447-746X
DOI: https://doi.org/10.20888/ridpher.v8i00.16726
25
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 8, p. 1-29, e022019, 2022.
Ridphe_R
morte de Ferrer
14
. E João Penteado, agora inteiramente envolvido no movimento anarquista da
capital, mas deixando sempre sua defesa pela Escola Moderna em diversos textos publicados
em folhas anarquistas.
Na época do evento ocorrido em 1908 com Penteado e a professora Sampaio, havia 49
mil habitantes em Jaú, sendo 7 mil em idade escolar. Mas apenas 22,3% frequentavam as
escolas, porcentagem que seguia a média do Estado, em especial das cidades do entorno do
município (INSPETORIA GERAL DO ENSINO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 1909). Em
1909, a porcentagem caiu para 14,4%, enquanto que a média do Estado e das demais cidades
do entorno de Jalcançou 23,3% da frequência (INSPETORIA GERAL DO ENSINO DO
ESTADO DE SÃO PAULO, 1910). O círculo cultural anarquista deste bairro rural deu bases
epistemológicas para João Penteado lidar com questões pedagógicas que encontrou em seu
cotidiano. “A instrução, a instrução fará o homem livre sobre a terra livre”, escreveu
Penteado num artigo para o jornal A Guerra Social em 1912, mesclando Reclus e Ferrer,
compreendendo o problema social e a instrução integral como solução para esses problemas
15
.
No Caso de Bica de Pedra, os únicos que pareciam se preocupar realmente com a instrução do
bairro de Bica de Pedra eram os professores exonerados.
CONSIDERAÇÕES
Retornando à questão que nos norteou neste artigo, nos propomos compreender qual o
município de Jaú. Caminhamos na busca de um ponto de inflexão da intelectualidade e
experiência de vida deste sujeito histórico que motivou sua escolha, não apenas pelo
anarquismo como filosofia e interpretação de sociedade, mas também como uma de suas
propostas pedagógicas para formação humana e de sociedade: a pedagogia racionalista de
Francisco Ferrer.
Este ponto de inflexão teve como referenciais contextos históricos diversos. A
intensificação da lavoura do café que trouxe a imigração europeia para uma região afastada
grande centro urbano que era a capital do Estado de São Paulo. Esses imigrantes trouxeram não
somente ideias modernas visando reformas nas mentalidades, mas sobretudo ideias radicais no
tocante as formas de interpretar e lidar com os problemas sociais, políticos e econômicos que
assolavam não apenas a Europa como o Brasil. Num primeiro momento, João Penteado toma
14
Commercio do Jahu, 11/10/1910; 12/10/1910; 14/10/1910.
15
A Guerra Social, 03/04/1912.
ISSN 2447-746X
DOI: https://doi.org/10.20888/ridpher.v8i00.16726
26
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 8, p. 1-29, e022019, 2022.
Ridphe_R
de algumas ideias modernas quando frequentava o “círculo cultural restrito” na residência de
Paulino de Oliveira Maciel e essas foram algumas de suas bases humana.
Suas experiências escolares foram inócuas quando precisou lidar com a realidade
escolar das escolas isoladas no bairro Bica de Pedra. Apesar de amante da forma de interpretar
a sociedade, João Penteado ainda se dividia entre duas culturas: a cultura emergente produzida
no “círculo cultural” de Maciel, tolerado pela comunidade jauense que se formava após a
reformulação do espaço urbano de Jaú, e os grandes proprietários rurais e seus palacetes no
entorno da matriz que se restaurava, e o novo “círculo cultural” marginal dos anarquistas e
simpatizantes do anarquismo em Bica de Pedra que facilitavam a transitoriedade de ideias
inversas e prejudiciais para a nova comunidade que se formava no centro político e social de
Jaú. João Penteado soube absorver um caldo de ideias de ambos os “círculos” e formar seus
valores éticos que colocaram a instrução como ponto fundamental na construção de uma nova
sociedade.
Para Penteado, um sujeito docente transformador da sociedade deveria o somente
pensar e escrever seus anseios e sim atuar de maneira prática nessa transformação e em defesa
de seus pontos éticos. O ponto que provocou essa mudança de comportamento foi a perseguição
que passaram a sofrer os docentes no bairro rural de Bica de Pedra no final de 1908.
Pontualmente, Penteado se colocou segundo as bases éticas anarquistas e isso lhe causou um
atrito no ambiente social de Jaú, sobretudo com o vigário e o subprefeito de Bica de Pedra. Em
outubro de 1909 João Penteado morava em São Paulo quando ocorreu a execução do pedagogo
espanhol criador da Escola Moderna de Barcelona, Francisco Ferrer y Guardia, pelos motivos
mesmos de perseguição religiosa que sofrera em Bica de Pedra, evidentemente com
intensidades e consequências diferentes, o que fez o professor anarquista jauense se aproximar
ainda mais da pedagogia do pedagogo espanhol. Podemos dizer que uma simpatia não apenas
pela pedagogia de Ferrer se enraizou em Penteado, mas sim pela figura do educador espanhol,
cuja defesa e lembrança Penteado fez questão de trazer à luz por toda sua vida.
O anarquismo em João Penteado, nos momentos iniciais de sua vida docente e de
militância política, foi de fundamental importância, dando-lhe um caminho segundo seus
valores éticos e humanos para agir não somente como militante dentro do movimento libertário,
mas sobretudo como ser humano amante da Humanidade e isso fez o caráter de Penteado. Não
pretendemos esgotar neste artigo o assunto sobre a entrada do anarquismo na vida e na docência
de João Penteado, apenas contribuir para clarear as condições históricas das quais tornaram
possível formar este professor anarquista.
ISSN 2447-746X
DOI: https://doi.org/10.20888/ridpher.v8i00.16726
27
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 8, p. 1-29, e022019, 2022.
Ridphe_R
REFERÊNCIAS
A Guerra Social, 1904-1910.
A Lanterna, 1901-1912.
A Terra Livre, 1906-1910.
A Voz do Trabalhador, 1908-1910.
Commercio do Jahu, 1908-1913.
Correio do Jahu, 1908.
O Alpha, 1908-1909.
SÃO PAULO. Inspetoria Geral do Ensino do Estado de São Paulo. Annuario do Ensino do
Estado de São Paulo: 1907-1908. São Paulo: Tipografia Augusto Siqueira & Cia,1908. 250p.
SÃO PAULO. Inspetoria Geral do Ensino do Estado de São Paulo. Annuario do Ensino do
Estado de São Paulo: 1908-1909. São Paulo: Tipografia Siqueira, Salles & Cia, 1909. 416p.
SÃO PAULO. Inspetoria Geral do Ensino do Estado de São Paulo. Annuario do Ensino do
Estado de São Paulo: 1909-19010. São Paulo: Tipografia do Diário Official, 1910. 436p.
BAKUNIN, Mikhail. O socialismo libertário. São Paulo: Global, 1979. 67 p.
BAKUNIN, Mikhail. Catecismo Revolucionário: programa da Sociedade, da Revolução
Internacional. Tradução e organização de Plínio Augusto Coêlho. São Paulo: Imaginário, 2009.
96p.
BEEVOR, Antony. A Batalha pela Espanha. Trad. Maria Beatriz de Medina. Rio de Janeiro:
Record, 2007. 711p.
DIAS, Everardo. História das Lutas Sociais no Brasil. 2. ed. São Paulo: Alfa-Ômega,
1977. 330p.
FARIA FILHO, Luciano Mende de. Instrução Elementar no Século XIX. In: LOPES, E. M.
T; FARIA FLHO, L. M de; VEIGA, C. G. 500 anos de educação no Brasil. 4. ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2010. p. 135-150.
FERNANDES, José. Vultos e fatos da história de Jaú: capital da terra roxa. [s.l.]:, 1955.
Edição conjunta do Correio do Noroeste, Correio da Capital e Correio de Garça.
FERRER Y GUARDIA, Francisco. A Escola Moderna. Trad. Camilo Alvares. São Paulo:
Biblioteca Livre, 2014. 153p.
GALLO, Sílvio D. de O. Pedagogia Libertária: Anarquistas, Anarquismos e Educação. São
Paulo: Intermezzo, 2015. 272p.
ISSN 2447-746X
DOI: https://doi.org/10.20888/ridpher.v8i00.16726
28
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 8, p. 1-29, e022019, 2022.
Ridphe_R
JOMINI, R. Uma Educação para a solidariedade. 1989. 190 f. Dissertação (Mestrado).
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Campinas
UNICAMP, 1989.
KROPOTKIN, Piotr. A conquista do pão. Trad. Cesar Falcão. Rio de Janeiro: Achiamé, 2011.
151p.
KROPOTKIN, Piotr. A questão social: o humanismo libertário em face da ciência. Rio de
Janeiro: Mundo Livre, 1913. 72p.
KROPOTKIN, Piotr. Las prisiones: el salariado la moral anarquista. Valencia: F. Sempere
Y C Editores, s.d. (1897). 197p.
KROPOTKIN, Piotr. O princípio anarquista e outros ensaios. São Paulo: Hedras, 2007.
146p.
MORAES, Carmen Sylvia Vidigal (et al). Educação Libertária no Brasil - acervo João
Penteado: inventário de fonte. São Paulo: Fap-Unifep: Edusp, 2013. 384p.
LIPIANSKY, Edmond Marc. A Pedagogia Libertária. Trad. Plínio Augusto Coêlho. São
Paulo: Imaginário, 2007. 88p.
LEUENROTH, Edgar. Anarquismo roteiro de libertação social. Rio de Janeiro, Mundo
Livre, 1963. 236p.
MOARES, José Damiro. A trajetória educacional anarquista na Primeira República: das
escolas aos Centros de Cultura Social. Dissertação (Mestrado) Pós-Graduação em Educação
pela Universidade Estadual de Campinas UNICAMP. Campinas, 1999. 76p.
MOURA, Maria Lacerda de. Ferrer e o Clero Romano e a Educação Laica. São Paulo, 2012.
77p.
OLIVEIRA, Flávia Arlanch Martins de. Faces e dominação da terra (Jaú 1890-1910). São
Paulo: FAPESP, 1999. 171p.
PRADO, Léa De Ungaro Almeida; PRADO, José Renato de Almeida. De Bica de Pedra a
Itapuí: 100 anos de história. Jaú, SP: Editora do Autor, 2013. 131p.
PENTEADO, João. Pioneiros do Magistério Primário. São Paulo, 1944. 92p.
PENTEADO, João. Digressão História Através do Jahu e de seus Pró-Homens. São Paulo,
1953. 90p.
PERES, Fernando Antônio. João Penteado: o discreto transgressor de limites. São Paulo:
Alameda, 2012. 336p.
PIRES, José Herculano. Introdução à filosofia espírita. São Paulo: Paideia, 1983. 86p.
RECLUS, Élisée. A evolução, a revolução e o ideal anarquista. São Paulo: Imaginário, 2002.
136p.
ISSN 2447-746X
DOI: https://doi.org/10.20888/ridpher.v8i00.16726
29
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 8, p. 1-29, e022019, 2022.
Ridphe_R
RECLUS, Élisée; KROPOTKIN, Piotr. Escritos Sobre Educação e Geografia. Rodrigo Rosa
Silva, Adriano Skoda e Guilherme Amaral (organizadores). Terra Livre, São Paulo, 2014. 78p.
RODRIGUES, Edgar. ABC do Anarquismo. Lisboa: Assírio & Alvim, 1975. 96p.
ROMANI, Carlo. Oreste Ristori: uma aventura anarquista. Dissertação de Mestrado
Universidade Estadual de Campinas. Campinas, SP: UNICAMP, 1998. 242p.
SAFÓN, Ramón. Francisco Ferrer y Guardia: o racionalismo combatente. Trad. Plínio
Augusto Coêlho. São Paulo: Editora Imaginário, 2003. 96p.
SANTOS, Luciana Eliza dos. A trajetória anarquista do educador João Penteado: leituras
sobre educação, cultura e sociedade. 2009. 309 f. Dissertação de Mestrado Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo, 2009.
SAVIANI, Dermeval. História das ideias pedagógicas no Brasil. Campinas, SP: Autores
Associados, 2013. 475p.
SILVA, Rodrigo Rosa. Anarquismo, Ciência e Educação: Francisco Ferrer y Guardia e a rede
de militantes e cientistas em torno do ensino racionalista (1890-1920). 2013. 379 f. Tese
(Doutorado) Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo USP, 2013.
SOUZA, Rosa Fátima de. Templos de civilização: a implantação da escola primária graduada
no Estado de São Paulo (1890-1910). São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1998. 304p.
TEIXEIRA, Sebastião. O Jahu em 1900. Jaú: VHK Editora, 2009. 159p.
TOMASSI, Tina. Breviário del Pensamento educativo libertário. Trad. Marta Martin. Cali,
Colombia: Ediciones Madre Tierra, 1988. 240p.
VALVERDE, Antonio José Romera. Pedagogia Libertária e Autodidatismo. 1996. 332 f.
Tese (Doutorado). Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Campinas
UNICAMP, 1996.
WILLIAMS, Raymond. Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. 239p.
WILLIAMS, Raymond. Cultura e Materialismo. São Paulo: Editora UNESP, 2011. 408p.
WOODCOCK, George. Anarchism: a history of libertarian ideas and movements. Londres:
Pelican Books, 1962. 505p.
WOODCOCK, George. Os grandes escritos anarquistas. Trad. Júlia Tettamanzi e Betina
Becker. São Paulo: L&PM Editores S/A, 1998. 377p.
Recebido em: 26 de julho de 2022
Aceito em: 19 de dezembro 2022