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LES PACIFIQUES (1914) DE HAN RYNER: UTOPIAS ANTIAUTORITÁRIAS E
ANARQUISMO INDIVIDUALISTA
Gilson Leandro Queluz
Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Brasil
gqueluz@gmail.com
RESUMO
O objetivo deste artigo é refletir sobre a obra Les Pacifiques (Os Pacíficos) de Han Ryner,
publicada em 1914, procurando ressaltar as intersecções entre utopias literárias antiautoritárias
e anarquismo individualista. A utopia libertária imaginada foi instaurada na ilha de Atlântida e
é caracterizada pela ausência do estado, pela inexistência de propriedade privada, pelo
compartilhamento de bens, por uma tecnologia avançada, pelo amor livre e pela coexistência
harmônica entre os seres humanos e a natureza. Esta utopia apresenta uma dimensão política
educativa em sua própria organização, mas também se constitui em espaço de demonstração de
experimentos educacionais libertários. O deslocamento trazido pelo estranhamento cognitivo
provocado por esta sociedade igualitária, calcada na filosofia individualista da harmonia
preconizada por Ryner, possibilita uma crítica radical e irônica à civilização europeia e ao
capitalismo, no momento que se apresenta no horizonte a I Guerra Mundial.
Palavras-chave: Han Ryner. Les Pacifiques. Anarquismo individualista. Utopias libertárias.
LES PACIFIQUES (1914) DE HAN RYNER: UTOPÍAS ANTIAUTORITARIAS Y
ANARQUISMO INDIVIDUALISTA
RESUMEN
El propósito de este artículo es reflexionar sobre Les Pacifiques de Han Ryner, publicado en
1914, buscando resaltar las intersecciones entre las utopías literarias antiautoritarias y el
anarquismo individualista. La utopía libertaria imaginada se instauró en la isla de la Atlántida
y se caracteriza por la ausencia del Estado, la ausencia de propiedad privada, el compartir
bienes, la tecnología avanzada, el amor libre y la convivencia armoniosa entre el ser humano y
la naturaleza. Esta utopía tiene una dimensión política educativa en su propia organización,
pero también constituye un espacio de demostración de experimentos educativos libertarios. El
desplazamiento que trae consigo el extrañamiento cognitivo provocado por esta sociedad
igualitaria, basada en la filosofía individualista de la armonía defendida por Ryner, permite una
crítica radical e irónica de la civilización y el capitalismo europeos, en el momento en que se
vislumbra la Primera Guerra Mundial.
Palabras clave: Han Ryner. Les Pacifiques. Anarquismo individualista. Utopías libertarias.
LES PACIFIQUES (1914) BY HAN RYNER: ANTI-AUTHORITARIAN UTOPIAS
AND INDIVIDUALIST ANARCHISM
ABSTRACT
The purpose of this article is to reflect on Han Ryner's Les Pacifiques (The Pacifists), published
in 1914, seeking to highlight the intersections between anti-authoritarian literary utopias and
individualist anarchism. The imagined libertarian utopia was established on the island of
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Atlantis and is characterized by the absence of the state, the inexistence of private property, the
sharing of goods, advanced technology, free love, and harmonious coexistence between human
beings and nature. This utopia presents an educational political dimension in its own
organization. On the other hand, it also constitutes a space for demonstrating libertarian
educational experiments. The displacement brought by the cognitive estrangement triggered by
this egalitarian society, based on the individualist philosophy of harmony advocated by Ryner,
allows a radical and ironic critique of European civilization and capitalism, at the moment that
World War I is on the horizon.
Keywords: Han Ryner. Les Pacifiques. Individualist anarchism. Libertarian utopias.
LES PACIFIQUES (1914) DE HAN RYNER: UTOPIES ANTI-AUTORITAIRES ET
ANARCHISME INDIVIDUALISTE
RÉSUMÉ
L'objectif de cet article est de réfléchir sur Les Pacifiques de Han Ryner, publié en 1914, en
cherchant à mettre en relief les croisements entre les utopies littéraires anti-autoritaires et
l'anarchisme individualiste. L'utopie libertaire imaginée a été établie sur l'île d'Atlantis et se
caractérise par l'absence d'État, l'inexistence de propriété privée, le partage des biens, la
technologie de pointe, l'amour libre et la coexistence harmonieuse entre les êtres humains et la
nature. Cette utopie a une dimension politique éducative dans son organisation propre, mais
elle constitue aussi un espace de démonstration d'expérimentations éducatives libertaires. Le
déplacement apporté par l' éloignement cognitif provoqué par cette société égalitaire, fondé sur
la philosophie individualiste de l'harmonie prônée par Ryner, permet une critique radicale et
ironique de la civilisation et du capitalisme européens, au moment la Première Guerre
Mondiale se profile à l'horizon.
Mots-clés: Han Ryner. Les Pacifiques. Anarchisme individualiste. Utopies libertaires.
INTRODUÇÃO
Este artigo busca analisar a obra Les Pacifiques (Os Pacíficos)
1
, publicada em 1914, do
escritor anarquista individualista Han Ryner, considerando as relações estabelecidas pelo autor
entre utopias literárias antiautoritárias e anarquismo individualista, ressaltando o papel político
educativo destas utopias e a própria presença da educação libertária nessas sociedades
imaginadas.
A obra Les Pacifiques se constituí em uma utopia anarquista de cunho pacifista
elaborada no alvorecer da primeira guerra mundial. Ela se apresenta como uma irônica crítica
aos padrões civilizacionais europeus ao contrapor uma sociedade formada pela resistência não
violenta aos desígnios autoritários e beligerantes dos estados nacionais. A sociedade Atlante,
1
Neste artigo as citações se referirão à tradução e edição inglesa realizada em 2014 por Brian Stableford (RYNER,
2014). A tradução inglesa, foi cotejada com o original francês de 1914 (RYNER, 1914).
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nela representada, é baseada na fraternidade, no compartilhamento amoroso de bens, ideias e
desejos, permeada por uma educação libertária. A profunda reestruturação social conduziu a
uma nova linguagem e a uma nova tecnologia capaz de trazer abundância para todos e produzir
artefatos como o oneirogênio e o pantoscópio.
UTOPIA E ANARQUISMO
O livro Os Pacíficos, publicado originalmente em 1914, é uma utopia anarquista.
Seguindo a definição de Lyman Tower Sargent (2005), Utopia é uma sociedade não existente
descrita em considerável detalhe e normalmente localizada no tempo e no espaço. Podemos
dizer que, de forma geral, o utopianismo está presente em diversas sociedades como um sonhar
social de uma melhor maneira de viver, localizado no presente, no passado ou no futuro. Para
Ernst Bloch, em seu livro Princípio da Esperança, “uma hermenêutica utópica constrói
prefigurações fragmentárias de um futuro desalienado nos artefatos culturais do passado e do
presente” (BLOCH apud FREEDMAN, 2000, p. 76). A utopia é um elemento importante de
crítica social do presente e, ao mesmo tempo, uma prática política, que procura indicar
caminhos alternativos de plenitude. O objetivo último da utopia é a transformação social,
através da introdução do novum, uma novidade radical que proporciona um sentimento de
estranhamento da realidade, e altera potencialmente o entorno criando a possibilidade de um
mundo novo. Portanto, a utopia não é o domínio do impossível, mas aquela que explora “o
espaço entre o possível e o impossível”, marcada pelo critério da plausibilidade (CLAYES,
2013, p. 15)
Aqui não trataremos da utopia de maneira geral e de suas manifestações na arquitetura,
no design, na política, na religião, mas da utopia como gênero literário, ou seja, como espaço
enraizado histórica e socialmente, onde as “possibilidades laterais acabam em representação de
um mundo específico, organizado [...] uma série de quadros imaginários de um ideal construtivo
da vida em sociedade supostamente realizado e apresentado no marco de um relato”
(TROUSSON, 1995, p. 42).
Nas utopias literárias, como veremos na obra Os Pacíficos, transparecem algumas das
características marcantes do gênero, como o insularismo, ou seja, uma cidade ou comunidade
isolada em meio ao oceano, na selva, nas montanhas, em desertos, em subterrâneos, que protege
a cidade/comunidade de ser corrompida ou dissolvida pelas forças exteriores e garante o
desenvolvimento de sua autonomia. Frequentemente estas comunidades possuem uma
economia fechada, na qual o comércio ocupa um papel marginal e a agricultura costuma se
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destacar. A utopia pode ser dinâmica ou estática, contudo, sua ordem estagnada ou mutante
costuma ser estabelecida pela figura do legislador. As transformações incitadas por esse
personagem levam a algum grau de uniformidade social, com a igualdade dos cidadãos e a
supressão das classes sociais. Também se ressalta o caráter coletivista das utopias, onde
geralmente as famílias desaparecem, o casamento tem um papel secundário e a propriedade
privada inexiste, ocorrendo uma justa partilha dos bens. Para a constituição de tal sociedade, a
educação é central, sendo uma forma de ação direta de constituição dos sujeitos e emancipação
das suas consciências (TROUSSON, 1995).
As utopias procuram circunscrever a natureza, abrindo espaço para a exaltação das
técnicas e da tecnologia como espetáculos da construção humana, de sua capacidade criativa e
da negação de qualquer forma de transcendência. Segundo Trousson, “a redenção que propõe
o utopista é uma redenção do homem pelo homem, nascida de um sentimento trágico da história
e de uma vontade de dirigir deu curso” (TROUSSON, 1995, p. 53). Raymond Williams nos
chama atenção para a importância das utopias como espaço de criação de sociedades e de
imagens alternativas, enraizadas em “precisas situações sociais e de classe” (WILLIAMS,
2005, p. 200). É neste sentido que Williams observa que uma utopia pode ser fruto de uma
“transformação desejada”, a qual pode ser inspirada por um espírito científico ou tecnológico
de uma comunidade, o qual está subordinado a uma “ênfase dominante na transformação social
ou política” (WILLIAMS, 2005, p. 197). Opostamente, pode assumir o caráter de uma
“transformação tecnológica” a qual tem direta relação com a ciência aplicada e assume um
caráter de determinismo tecnológico, ou seja, a agência social perde espaço para a
instrumentalização (WILLIAMS, 2005, p. 198). As utopias permitem, no dizer de Baczko, que
“os sonhos sociais, individuais e coletivos tomam consciência nas e graças as utopias; se
organizem em conjuntos coerentes de ideias-imagens de uma sociedade-outra, em oposição e
em ruptura com a ordem dominante (BACZKO apud COLOMBO, 2002, p. 223).
Gostaríamos de situar que a utopia Os Pacíficos foi escrita em 1914, um momento de
dissolução das certezas, de desconstrução das esperanças nos projetos imperialistas de
conquista e abundância, permeados por uma ideologia da civilização caracterizada por uma
crença absoluta no progresso técnico e científico. Este é um momento em que a “reação utópica
ao progresso” torna-se um tema central, opondo-se ao otimismo “desenfreado” reinante no
século XIX, em que um entendimento maior da força da natureza-pela descoberta da radiação,
da eletricidade e da refrigeração - e os avanços na medicina, no cultivo de alimentos e no
controle natal pareciam promover afluência universal e maior longevidade” (CLAYES, 2013,
p. 154). Este momento de inflexão é percebido por diversos grupos sociais como de potencial
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transformação da ordem dominante, de defesa utópica da justiça social e política, de
reorganização igualitária do trabalho e de combate ao capitalismo, o que efetivamente se faria
em poucos anos através dos movimentos sociais e revolucionários, como a revolução Russa de
1917.
Era um momento fértil, nas palavras de Williams, para “um anarquismo: positivo na sua
feroz rejeição da dominação, repressão e manipulação; negativo na sua desejada negligência
das estruturas, da continuidade das restrições materiais” (WILLIAMS, 2005, p. 203). A utopia
anarquista se constituí em um esforço de visualização de culturas alternativas, que neguem a
ideologia do progresso em seu viciado determinismo tecnológico, propondo, como veremos,
um desenvolvimento orgânico em que a tecnologia e a ciência continuam a ocupar um papel
relevante, contudo, circunstanciado pelo desejo de liberdade e felicidade da coletividade ácrata.
A utopia anarquista empreende um combate por um diferente imaginário, alternativo e opositor
ao hegemônico.
É importante observar que o anarquismo tem estabelecido uma posição antinômica
sobre as utopias. Por um lado, como observado por Ruth Kinna, o anarquismo clássico, na
passagem do século XIX para o XX, considera que as utopias podem ser potencialmente
contrárias aos ideais anarquistas, especialmente aquelas que propõem uma perfeição moral
absoluta ou prescrevem uma ordem social. Nas palavras de Rocker, o anarquismo não oferece,
“nenhuma solução patente para todos os problemas humanos, nenhuma Utopia de uma ordem
social perfeita… portanto por princípio ele rejeita todos os esquemas e conceitos absolutos”
(ROCKER apud KINNA, 2009, p. 4). Neste sentido, as proposições de uma ordem social ideal
eram criticadas como falansteristas, pois ao enfatizar uma arquitetura social específica,
enfraqueciam a ênfase na construção comunitária da sociedade e na visão libertária, expressa
por Volterine de Cleyre, de que só a “liberdade e o experimento podem determinar as melhores
formas de sociedade” (CLEYRE apud KINNA, 2009, p. 4). Por outro lado, autores como
Martin Buber, apontam para as aproximações entre anarquismo e utopia, como por exemplo,
na ênfase no tema utópico da imanência. Kropotkin (2009) indicava na sua obra Ajuda Mútua,
publicada originalmente em 1902, a tendência humana para a cooperação espontânea
objetivando o benefício mútuo. Portanto, para Kropotkin, a possibilidade revolucionária da
mudança tem como uma das suas prefigurações, a potencialidade existente nas práticas
associativas de cooperação humana. Para Honeyweel, o anarquismo é marcado pela
“prefiguração ética de que as ações do presente devem incorporar suas metas para o futuro
(HONEYWELL, 2007, p. 244). Assim, anarquismo e utopia percebem que as formas sociais
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desejadas estão imanentes na sociedade, o que reforçaria a necessidade de esforços imediatos
para a construção das mudanças sociais.
Os anarquistas refutam as utopias de caráter autoritário, ou seja, aquelas que
uniformizam comportamentos, reprimem as individualidades em prol do coletivo, fortalecem o
papel do estado e dos seus agentes como reguladores das relações sociais, e que aceitam, para
fora das suas fronteiras, a guerra como um componente natural das relações internacionais. Por
outro lado, no dizer da pesquisadora anarquista Maria Berneri, os anarquistas apoiam aquelas,
que se opõem ao conceito de estado centralizado, aquelas de uma federação
de comunidades livres, onde o indivíduo pode expressar sua personalidade
sem ser submetido a censura de um código artificial, onde a liberdade não é
uma palavra abstrata mas manifesta-se concretamente no trabalho, seja do
pintor seja do pedreiro. Estas utopias não estão preocupadas com a estrutura
morta da organização da sociedade, mas com os ideais sobre os quais uma
nova sociedade pode ser construída. (BERNERI,1962, p. 27).
O anarquismo também percebe na utopia não autoritária possibilidades educativas, seja
na necessidade de um planejamento mínimo para a mudança revolucionária, seja na concepção
de que o primeiro passo para a liberdade é a educação (KINNA, 2009, p.5). A utopia é
considerada por autores anarquistas tão distintos como Landauer e Kropotkin como “uma
ferramenta para considerar as possibilidades do socialismo e elaborar os princípios de uma
organização anarquista” (KINNA, 2009, p. 25). Para eles, “o utopianismo era uma parte
essencial da luta revolucionária” (KINNA, 2009, p. 30).
HAN RYNER: UM INDIVIDUALISTA ANARQUISTA
Han Ryner (1861-1938) foi um filósofo e anarquista individualista francês. Publicou um
grande número de poesias, contos, novelas, peças teatrais e ensaios filosóficos, dentre os mais
conhecidos estão: Manual Filosófico individualista (1903), A Esfinge Vermelha (1905), O
Quinto Evangelho (1911), Homem formiga (1910), Os filhos do silêncio (1911), O autodidata
(1926), O amor plural (1927), Os Super humanos (1929), Os Pacíficos (1914). Nas primeiras
décadas do século XX, seus textos eram publicados pela imprensa anarquista e tinham grande
repercussão nos meios intelectuais franceses. Em uma eleição promovida pela Academia
Goncourt, entre os escritores franceses, Ryner foi nomeado o “príncipe dos narradores
filosóficos” (NEVES, 1966, p. 6).
Mitchel Abidor (2019), ao apresentar e problematizar o anarquismo individualista
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francês no início do século XX, argumenta que o seu desenvolvimento no território francês, é
uma resposta aos fracassos e repercussões das revoluções ocorridas ao longo do século XIX.
Para ele, uma das reações foi, por um lado, a radicalização da corrente revolucionária anarquista
e, por outro, a ascensão da corrente individualista que criticava a ilusão revolucionária em nome
de um futuro hipotético e defendia a possibilidade de libertação no presente, uma libertação
ao alcance de todos neste momento” (ABIDOR, 2019, p. 5). São exemplares desta corrente,
pensadores e ativistas como Albert Libertad, Émile Armand, Anna Mahé, André Lorulot e Han
Ryner. Algumas características convergentes dentro da miríade de posicionamentos entre os
individualistas libertários, seriam, segundo Abidor: a visão de absoluta primazia do indivíduo;
a recusa à autoridade; uma crítica contundente ao estado, mas também à sociedade e suas
organizações que oprimiam os indivíduos; um certo culto à ciência, pois “era essencial aos
individualistas compreenderem a ciência e as leis da natureza porque a própria humanidade era
parte da natureza” (ABIDOR, 2019, p. 5); um desprezo elitista pelo conformismo das massas,
porém, acompanhado por um interesse em educá-las, o que foi expresso em um conjunto de
experimentos educacionais como as Causeries Populaires
2
, fundadas por Albert Libertad, além
das conferências populares e dos artigos educativos nos diversos jornais publicados por esta
corrente como l’anarchie e L’Idée Libre.
Han Ryner se considerava um “filósofo do individualismo de harmonia”. Na sua obra
Manual Filosófico do Individualismo, publicada originalmente em 1909, explica que o
individualismo é uma filosofia prática que não faz sentido se não for praticada. Assim, um
individualista necessita fazer concordar os seus atos com as suas opiniões, para estar em
harmonia. Ele é aquele que “com maior frequência se aparta do rebanho”, e que “numa época
de grande religiosidade se mostra ímpio, e num período de civismo sabe rir da cidade ou
denunciar os crimes da pátria” (RYNER, 1966, p. 31). O anarquismo individualista de Ryner,
apesar de marcado pela postura característica desta corrente de recusa da autoridade, inclusive
a textual, baseia-se livremente nos textos e práticas de Epicuro, Epícteto, Jesus e Socrátes,
considerados como os mais puros e compreensíveis individualistas. Sofreu, ainda, a influência
de pensadores como Tólstoi e Gandhi, especialmente no que se refere às ideias de desobediência
civil e resistência passiva. Ryner se diferenciava fortemente de pensadores individualistas que
considerava como apologistas da força e da agressividade como Nietzche, defendendo os
2
As Causerie Populaires foram um circuito de pequenos grupos de discussões regulares de temáticas anarquistas
que procuravam ser espaços abertos a “palavra e a análise dos participantes” (LENOIR, 2018, p. 17). O primeiro
Causerie Populaire foi criado por Albert Libertad e Paraf-Javal em 1902, na rua Chevalier de la Barre em
Montmartre, e seria seguido pela criação de outros grupos assemelhados em Paris e arredores (PARRY, 2016).
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princípios do amor plural e da fraternidade universal, harmonizando individualismo e
comunismo, marcando as suas obras pelo
sonho duma sociedade livre, igual e fraterna, onde a caridade seja substituída
pela justiça, as horas de trabalho pouco numerosas repartidas entre todos, o
descanso e o pão gratuitos, os povos confraternizando como irmãos, na
comunhão da paz mundial, na terra Prometida da Igualdade- enfim o sonho
dos anarquistas. (NEVES, 1966, p. 21).
UTOPIA PACIFISTA
Na obra Os pacíficos, Ryner recorre consciente e habilmente à tradição do gênero
literário utópico para propagandear seus ideais anarquistas individualistas e problematizar a
guerra que se anunciava, justificada pelos princípios civilizacionais europeus.
Na novela, um navio francês com mais de quarenta pessoas a bordo é danificado e fica
à deriva no mar dos sargaços, acabando por ser resgatado pelos atlantes. Han Ryner, um
consumado classicista, recorre aos relatos de Platão em Tímeu e Criteu e, também a tradição
utópica do insularismo, ao narrar que a Ilha de Atlântida teria sido separada do continente
europeu mais de 11 mil anos, seguindo um desenvolvimento autônomo que a conduzira a
uma organização anarquista.
A história tem como narrador, Jacques, um nome aleatório, escolhido, segundo ele, para
ocultar a sua real identidade, procurando, assim, evitar danos a sua carreira política como futuro
deputado socialista na assembleia nacional francesa. Cada náufrago é recebido fraternalmente
por um atlante em sua própria casa. Jacques é recebido por Makima.
Para explicar as mudanças ocorridas na sociedade atlante, é utilizado o subterfúgio de
uma visita de Jacques e Makima à grande pirâmide, onde vive o historiador Nakchatra que
possui uma coleção de artefatos e máquinas organizados em ordem cronológica. Desta forma,
ficamos sabendo que Atlântida teve uma idade do bronze, seguida por uma de objetos de ferro,
ouro, prata e orichalcum, um metal precioso originário da Atlântida. No primeiro andar da
pirâmide encontram-se bicicletas e automóveis. Quatro mil anos depois da “separação
afortunada” do continente, iniciou-se a era da eletricidade, seguida, após mil anos, pela era da
radioatividade, que foi, também, o tempo dos balões dirigíveis de diversos formatos. Este
período foi sucedido pelo da energia solar e seus captadores. As máquinas presentes neste andar
não são mais compreensíveis para Jacques, que fragmentariamente descreve seres híbridos,
indefiníveis humanos ou animais, entidades de metal. Nos oito mil anos após a separação, a
Sindinâmica ocupa o lugar da energia fonte, com seus “monstros apocalípticos” (RYNER,
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mil anos antes da chegada de Jaques à Atlântida, a Pandinâmica tornou-se a energia de aplicação
universal, que passou a ser conhecida por “A Força” (RYNER, 2014, p. 138). A este último
período correspondem as principais características tecnológicas antevistas por Jacques na ilha,
ou seja, os cintos voadores, o pantoscópio, o oinerogêneo.
Ryner, nas primeiras décadas do século XX, está imerso em um contexto de profundas
transformações nas perspectivas potenciais de utilização de fontes energéticas. Neste contexto,
ele assiste o desenvolvimento de usinas hidroelétricas e termoelétricas, a utilização da
radiotividade para fins médicos como o raio-x, as primeiras experiências com o uso da energia
solar, a utilização da eletricidade para a iluminação urbana, o desenvolvimento do fonográfo e
a transmissão radiofônica. A unificação energética que transparece nos objetos antevistos por
Han Ryner em seu romance, parece dialogar com possibilidades como aquelas antevistas, por
exemplo, por Tesla em seus experimentos de transmissão de mensagens e energia elétrica sem
fio, através do uso das ondas estacionárias (CARLSON, 2013). Ryner, em seu imaginário
pantoscópio, parece emular o desejo de uma forma de transmissão à distância, que pudesse
materializar imagens e sons. Os seus cintos voadores também funcionam através de uma fonte
de energia transmitida pelo ar, sem outras fontes físicas de materialização.
A história, aparentemente tradicional, da mudança tecnológica ocorrida em Atlântida,
em sua irônica perspectiva evolutiva, é subsidiária de uma narrativa mais central para Makima
acerca do processo de transformações sociais conquistadas pelos atlantes. Ryner, apesar de
narrar a transformação tecnológica, enfatiza em seu texto a transformação desejada, aquela que
é fruto de uma agência social. Makima conta que após a “grande separação”, Atlântida se
dividiu em diversos reinados, os quais, após diversas batalhas, resistiram à república de
Diaprepeda que depôs o seu rei e o império de Azaid. Por dois mil anos as diferentes formas de
governo permaneceram, apesar de terem como ponto em comum, que “em ambas, umas poucas
pessoas ricas possuíam tudo” e que “eles faziam o pobre trabalhar para seu lucro, e deixavam
para eles uma pequena parte dos frutos do trabalho” (RYNER, 2014, p. 148). Os pobres eram
desprezados, com uma linguagem tipicamente neomalthusiana como “excesso de população”
ou “escumalha populacional”, fadados a morrer na infância ou a sofrer uma difícil vida de
privações” (RYNER, 2014, p. 148-149). Obviamente existiram revoltas, contudo, os exércitos
estavam sempre prontos para esmaga-las. Nas palavras de um escritor político da época,
Arvakova, “a guerra é um para-raios levantado sobre o templo habitado pelos ricos” (RYNER,
p. 149).
Neste contexto aparece a figura do legislador utópico, Nelti, o pregador da força do
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amor. Ele ia pelas cidades predicando,
Como a violência pode destruir o princípio da violência? Seja gentil e
indomável. Não mate ninguém, não fira ninguém. Permita que lhe firam,
permita que lhe matem, sem dar um passo para trás e sem um lamento de dor.
Nunca comande e nunca obedeça. Não trabalhe para quem não faz nada.
Aprenda que há apenas uma forma de trabalho e que ele é feito com as mãos.
Quando você estiver com fome, vá pegar o que você precisa para se saciar no
campo mais próximo. Todos os campos pertencem a você, assim como aos
pássaros do ar. (RYNER, 2014, p. 150).
Logo, muitas pessoas começaram a seguir este programa libertário pacifista,
antiautoritário, marcado pela desobediência civil e pelo socialismo. Os ricos e os governos
mandaram seus exércitos contra esta população, que resistiu passivamente. Os soldados, após
algumas carnificinas, gradativamente largaram as armas e se uniram aos rebelados. Em 20 anos
não havia mais soldados, escravos ou assalariados, estando todos imersos na grande
fraternidade humana, brincando e trabalhando na terra purificada. Um milênio após esta
transformação, as cidades, por sua vez, foram extintas graças à luta empreendida pelos
urbicidas, inicialmente liderados por Abitanis, um simples membro da fraternidade da coleta de
lixo, que denunciou o venenoso ambiente urbano. Desta forma, gradualmente, houve o
abandono das cidades pelo meio rural/natural.
Constituiu-se, portanto, em Atlântida, uma sociedade sem estado e sem imposição de
hierarquias ou organizações. Uma sociedade sem classes, de caráter coletivista. Nesta nova
comunidade, predominava o amor livre e sem limites, o que inclui o amor pelos animais, vistos
como iguais, e a consequente opção pelo vegetarianismo. Essa vida harmônica é demonstrada
na novela através da convivência integral entre seres humanos e natureza. Makima, por
exemplo, é capaz de conversar com alguns animais, como os macacos, que vivem em total
reciprocidade e sem temer os humanos. Neste ambiente, as plantas são desenvolvidas ao seu
máximo, para alimentar os seres humanos, assim como rios e florestas estão em sua plenitude.
Segundo Makima, o progresso científico, o excessivo desenvolvimento material e a obstinação
pela multiplicação das riquezas, marcadores da civilização, não poderia mais fazer mal àquela
sociedade.
Observe-se que a renúncia à vida urbana e a ênfase no convívio harmônico com a
natureza, não implica a opção de Han Ryner por um anarco-primitivismo. Makima é um
trabalhador especializado em horticultura, e além da abundância de alimentos, esta comunidade
desenvolve tecnologias avançadas como os citados cintos voadores, o pantoscópio e o
oneirogêneo, ademais de possuir fábricas. Makima apresenta a Jacques a fraternidade do papel,
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ou seja, os irmãos que fabricam papel para o uso comunitário e depois os colocam em um
depósito, para que dele todos possam usufruir. Os cintos voadores são utilizados para
deslocamentos cotidianos e possuem uma especial função quando dos rituais amorosos
realizados nos finais das tardes, quando milhares de pessoas, reunidos em mil círculos
concêntricos, se encontram e, como que valsando, casais são conduzidos em direção ao céu
estrelado” para se amarem. O pantoscópio
3
, por sua vez, tem diversas funções, entre elas a
possibilidade de localizar e imprimir qualquer livro ou jornal do mundo, mantendo os atlantes
em contato com a realidade dos “civilizados”, por ele chamados, de “cruéis”. O pantoscópio
também permite a visualização unilateral, sem contato sonoro, de qualquer parte do mundo,
capacidade que é utilizada por Jacques para matar as saudades de seus pais.
O oneirogêneo
4
é utilizado para a satisfação dos desejos oníricos das pessoas ou,
dialeticamente, para sua transição para a morte. Na novela, ele é usado em duas situações. A
primeira, por sugestão de Makima, uma fracassada tentativa de amenização da insatisfação de
Jacques para com a negativa de sua investida amorosa com Meloe. A experiência de Jacques
no oneirogêneo é marcado por uma dimensão psicanalítica. Ryner dialoga com as tradições
simbolistas no seu fascínio pelos sonhos, mas, também, com a senda aberta por Freud, na sua
obra A interpretação dos sonhos, publicada em 1900 (FREUD, 2018). Charles Baudouin (2015,
p. 32), em texto publicado originalmente em 1922, também comenta que Han Ryner, como
pensador, era simpático à psicanálise. Ryner, segundo Theresa Papanikolas (2017), antecipara
a popularidade crescente de Freud e da psicanálise no pós-guerra na França, e também a
interpretação individualista de Freud posteriormente empreendida pelos surrealistas
5
.
Makima explica, ao adentrar na máquina, que Jacques precisaria expressar através
de palavras os seus desejos e o sonho especificado o circundaria. Contudo, a experiência de
Jacques é marcada por uma trajetória labiríntica de livre associação. Ryner parece fazer uma
experimentação poética com sua visão da psicanálise freudiana expressa no seu artigo de 1920:
Freud tinha confiança na associação livre que vem espontaneamente a mente;
ele perseguia o caminho das ideias que passavam através da mente sem
direção ou aparentes conexões e davam saltos como um conto de fadas. Freud
em breve notou que estas associações livres simplesmente seguiam outras leis
3
Aqui Ryner amplia a função do pantoscópio, aparelho fotográfico existente no período e que permitia a
elaboração de panoramas.
4
Observe-se que Ryner nomeia o seu aparelho com um termo que remete por um lado aos produtos que poderiam
alterar os estados de consciência e, por outro, ao interesse, partilhado por muitos intelectuais, como os
simbolistas, sobre os significados e papéis dos sonhos.
5
Observe-se que a própria psicanálise no seu processo de constituição, também foi influenciada pelas heterodoxas
sínteses libertárias, na original proposta de compreensão das relações entre o social e a subjetividade do indivíduo
como empreendidas pelo anarquista Otto Gross (2017).
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que não aquelas da lógica e do pensamento consciente e que elas revelavam
para nós um outro mundo da mente. (RYNER apud PAPANIKOLAS, 2017,
p. 156).
Desta forma, Jacques inicia sua jornada onírica desejando estar com a sua família, a
mãe, o pai e a irmã na mesa de jantar. No sonho, sua mãe desfalece com a surpresa da presença
do filho. Jacques reage a esta inesperada reação com o desejo, “minha mãe está voltando a
consciência” (RYNER, 2014, p. 282). O sonho desdobra-se em um profundo e prazeroso enlace
amoroso entre os familiares, “um harmonioso movimento de quatro amores se reunindo
novamente” (RYNER, 2014, p. 282). Todavia, este sentimento de “banho de amor” é seguido
por um avassalador sentimento de ansiedade e o questionamento, Até onde o sonho se
estende?” (RYNER, 2014, p. 283). Esta indagação o conduz ao sentimento de morte e ao
pesadelo de ser enterrado, sendo tomado por visões do seu corpo devorado pelos vermes, do
qual consegue sair quando, induzido pela memória e por um “desejo inconsciente”, ele
visualiza Meloe. Ela sentencia, “A morte é um terrível pesadelo... sim, para os vivos” (RYNER,
2014, p. 283). Contrastando e complementando estes dois primeiros momentos, de fortes
dimensões psicanalíticas, de amor e morte, culpa e angústia, segue-se um sonho que mistura,
erotismo e violência, desejo e poder. Nele, Jacques ordena que Meloe se vista e deixe de ser
uma atlante nua e livre, pois “uma mulher pertence a pátria do seu mestre” (RYNER, 2014, p.
284). Assim, Jacques caminha pelas ruas de Paris acompanhado por uma Meloe trajada com
um vestido de seda, com um penteado parisiense e com um elegante chapéu, para a inveja de
homens e mulheres da cidade. Contudo, mesmo no sonho, Meloe afirma sentir saudades da
liberdade da vida atlante, o que leva a uma explosão de raiva por Jaques que a submete
oniricamente a uma sessão de sadismo, dando vazão ao seu desejo de submetê-la, utilizando-
se da violência para incrementar seu poder e prazer: “Eu sou o mestre, e Meloe a escrava. Tire
sua vestimenta, Meloe. Ofereça-se nua para o chicote de Iorarius. Os golpes irão marcar você
como um animal rebelde. Eu irei, então, possuir seu corpo despido” (RYNER, 2014, p. 285).
Após um longo período apreciando seu “ódio amoroso”, Jacques percebe que tudo não passou
de uma ilusão e, irritado, pressiona o botão para sair do aparelho. Makima fica surpreso pela
insatisfação de Jacques após a sua experiência no oneirogêneo e exclama “você é hostil, mesmo
no amor” (RYNER, 2014, p. 285).
O segundo uso do oneirogêneo no romance se quando Tacmar, com 123 anos, para
ele se dirige para realizar uma onírica e suave transição para a morte. Este processo de eutanásia
é anunciado para a comunidade nos letreiros das residências piramidais e acompanhada por
seus amigos pelo pantoscópio. Sonho e morte se unem em um consciente e tranquilo adeus.
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Esta organicidade entre ciência, tecnologia e vida na sociedade atlante, como
apresentada no romance, surge como uma crítica contundente à separação entre ciência e vida
e a interiorização inconsciente pelas pessoas da lógica de poder e dominação presentes no
capitalismo e na própria civilização ocidental.
A EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA
O processo educacional existente em Atlântida é coletivo e libertário. No romance,
Ryner dialoga com a tradição utópica e libertária da centralidade da educação como elemento
de constituição de consciências livres e emancipadas. No capítulo X do livro, trinta crianças se
dirigem ao local em que Makima se encontra. Jacques, intrigado, indaga sobre o que se tratava,
e Makima explica que eles eram seus pupilos. Perguntado se era um professor, ele responde
que era um professor como todos os outros. Comenta que na sociedade Atlante, “As coisas
materiais pertencem a quem delas necessita, então eu tenho apenas uma espécie de riqueza para
dar: eu mesmo; e apenas uma para receber: os outros” (RYNER, 2014, p. 215). Desta forma,
ele poeticamente define que está disposto a conceder, com generosidade, beijos e ciência para
quem o ama suficientemente para pedir. Ryner realiza um deslocamento, caracteristicamente
individualista, ao não estabelecer nesta sociedade uma instituição escolar formal. Expressa,
assim, através de Makima, o princípio anarquista de que a educação é um processo coletivo
com a participação simétrica de todos os envolvidos. A aula é ao ar livre, radicalizando a crítica
anarquista individualista às limitações impostas pelo confinamento dos corpos nos espaços
escolares e fortalecendo a comum ênfase libertária na pedagogia ativa da descoberta, na
educação racional e científica baseada na observação, na experimentação e no livre exame
(LENOIR; GAMBART, 2018).
Makima tenta explicar aos alunos um pouco da realidade da sociedade de Jacques. Por
exemplo, comenta a pouca diversidade de frutas e flores, que corresponderia a uma persistente
pobreza da sociedade francesa. Procura explanar, sem encontrar os termos adequados, o que
significava ser um trabalhador, pois as crianças se recusavam a acreditar que os frutos do
trabalho não pertenciam, na França, nem a quem produz ou a quem necessita, mas sim aos
parasitas que os exploram. Não conseguiam captar como aquele que planta o trigo fica sem o
pão e o pedreiro que constrói edificações, pode terminar sua vida sem uma habitação. Makima,
também tentou, em vão, fazer as crianças entenderem conceitos como governo, nação,
organização social. Ele não conseguiu comunicar de modo convincente como a avidez insana
por riquezas pode levar uma sociedade à pobreza, e como, ao invés das pessoas unirem-se para
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superar as adversidades postas pela natureza, preferiam competir e destruir aos outros. As
crianças apresentaram dificuldade em compreender conceitos como soldado, exército, guerra,
o porquê de jovens perderem seus anos de formação, “aprendendo a arte de matar seus
semelhantes e a arte de obedecer seus iguais” (RYNER, 2014, p. 216).
Na aula seguinte, Makima utiliza um Manual de Morale Civique para falar sobre de que
se tratava uma eleição. As crianças acharam engraçada e incompreensível a noção do voto.
Também ficam intrigadas que Jaques, que “não parece tão estúpido”, tenha cumprido sua
“obrigação cívica”. Perguntam se ele tinha sido treinado para matar outras pessoas e se tinha
ido à uma guerra. Jacques responde que sim, tinha participado de uma guerra desimportante
contra “selvagens”. Questionado sobre o que significava este termo, ele responde que eram
pessoas “mais fracas e menos malvadas que os franceses” (RYNER, 2014, p. 222). As crianças,
espantadas, perguntam se eles eram mortos para serem punidos por serem mais fracos e
moderados, ao que ele, enfaticamente, responde “Eles são mortos de forma a civilizá-los!”
(RYNER, 2014, p. 222). Uma das crianças, uma menina chamada Telos, diz que não estava
entendendo nada e Jaques, didaticamente, explica que os selvagens eram como crianças
desobedientes que precisavam ser corrigidas. Ao colocar o questionamento na voz de uma
menina, Ryner chama a atenção para a importância da coeducação igualitária, princípio
educacional defendido pelos libertários (LENOIR, 2015).
Telos, novamente, questiona se, para obedecer, as pessoas têm que ser ordenadas a
fazerem algo, ao que Jaques responde afirmativamente. Telos replica, “mas é mau comandar.
E se uma pessoa louca comanda é mau obedecer. Explique para mim porquê crianças e pessoas
fracas devem obedecer” (RYNER, 2014, p. 223). Na falta de resposta, Jaques afirma que Telos
o estava aborrecendo e se estivesse na França teria puxado suas orelhas. Telos contesta que
Jacques não está na França e pede uma explicação racional. Na falta de maiores argumentos,
Telos conclui que “Jacques é muito estúpido. Será necessário educá-lo, Makima” (RYNER,
2014, p. 223). O diálogo expõe a visão autoritária de educação adotada por Jaques, de caráter
impositivo e punitivo, voltada para a docilização e disciplinarização do indivíduo. Telos, por
sua vez, expressa a visão anarquista de que a educação baseada na razão, no livre exame e no
espírito crítico “seria fatal à autoridade” (MAapud LENOIR; GAMBART, 2018, p. 69).
Na aula seguinte, o livro estudado passou a ser o catecismo publicado pela Diocese de
Paris. As crianças ficam estupefatas e gargalham com ideias que consideram incongruentes,
como quando o catecismo afirma que “há três pessoas, cada uma delas é Deus, e, contudo,
somente um Deus” (RYNER, 2014, p. 227), ou que uma virgem teve um filho. Quando Jacques
reage acusando Makima de ser desrespeitoso para com suas crenças e mistérios, Makima
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responde que é feliz, pois entre os Atlantes nunca ninguém matou outra pessoa por questões
religiosas, e que palavras como inquisição, mártires, torturador são tão vazias de sentido para
eles como os mistérios religiosos. Ofendido, Jacques acusa-o de desprezar o que não é Atlante
e Makima afirma, “Porque eu amo todos os humanos, eu detesto tudo que deforma e diminui a
sua humanidade. Eu detesto ideias intolerantes e falsas, as mães dos sentimentos maldosos”
(RYNER, 2014, p. 228). Makima explica que não têm religião, para o horror de Jacques, que
pergunta o que os comanda a amar. Desta vez, é Telos quem responde, ressaltando que não é
necessária religião para dizer a quem amar, assim como não é necessário dizer a alguém que
ela precisa comer pois está faminta. Desta maneira, após a crítica ao Estado e suas instituições,
Ryner reafirma a liberdade dos sujeitos a partir de um viés anticlerical.
Ryner tematiza nos embates entre a concepção educacional autoritária de Jacques e a
educação libertária das crianças atlantes, a visão dos anarquistas individualistas, de que a
“educação deve colocar as crianças em condição de auto-organizar suas aprendizagens, e com
o passar do tempo, torná-las não dependentes do saber do mestre, com capacidade de buscar
por elas mesmas soluções para os problemas individuais ou sociais” (LENOIR; GAMBART,
2018, p. 73).
UMA UTOPIA REVOLUCIONÁRIA
Jacques, inicialmente seduzido pela alegre e plena vida atlante, após sofrer uma negativa
amorosa de Meloe, motivada pela sua insistência em uma ideia patriarcal de relação baseada na
objetificação e domínio da mulher pelo homem, e pela sua recusa em se livrar do “odor da
morte” - que nele ainda estaria impregnado por ter matado semelhantes na guerra e também por
ter se mantido carnívoro-, passa a articular com seus companheiros de naufrágio a conquista da
ilha. O seu plano, de um caráter claramente emulador das práticas imperialistas e colonialistas
europeias, elaborado com a decisiva participação do capitão do navio, é tomar as armas que são
apenas relíquias nos museus atlantes e, em sequência, realizar um ataque surpresa, impondo as
estruturas ocidentais de poder, mais exatamente um estado monárquico, com sua lei e sua
ordem, aos “bárbaros” atlantes. O ataque se realizou e se transformou em uma carnificina, pois
os atlantes, seguindo os conselhos ancestrais de Netil, ofereceram uma resistência passiva, não
violenta, entregando-se em imolação. Cansados do massacre e intimidados pelo povo vizinho
de Barbidran, os franceses são derrotados e reenviados de maneira segura para o mar de
sargaços, onde, após alguns dias, são recolhidos por um navio.
Jacques, na França e candidato ao parlamento, escreve seu relato anonimamente, onde
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declara que sonhar utopias é um veneno para um verdadeiro francês, pois, “nós precisamos
acima de tudo de uma sociedade organizada na qual saibamos nosso lugar. Onde não classes,
uma pessoa é necessariamente a mais desprezível e dolorosa das coisas, desprovido de status”
(RYNER, 2014, p. 292). Para ele, nesta sociedade igualitária, “o grande poder humano é
suprimido e uma mulher não tem razão para se abrigar em você, seja pela virtude da fome, do
medo, ou do sentimento de sua superioridade, ela não tem necessidade de proteção” (RYNER,
2014, p. 293). Este lugar de liberdade, onde não há espaço para a disciplina, para a obediência,
para o prazer da dominação, é um “inferno tedioso” de “pessoas de cor escura” (RYNER, 2014,
p. 293).
CONCLUSÃO
Ryner leva ao limite a experimentação com o gênero utópico, possibilitando em tempo
de guerras, nacionalismos e racismos, um estranhamento cognitivo, uma crítica radical para
com a realidade. A proposição de uma sociedade alternativa anárquica é apresentada como
podendo ser criada individual e coletivamente a partir da fraternidade, do amor, da partilha
cotidiana, e na qual a unidade entre ciência, tecnologia e natureza é um componente possível
de um novo e revolucionário imaginário.
Ryner, dialogando com as características do utopismo literário, como o insularismo, o
coletivismo, a ruptura com as hierarquias e com a sociedade de classes, a educação
emancipatória, a abolição da propriedade privada, entre outras, elabora uma utopia libertária
dinâmica e não autoritária, construindo convergências múltiplas com suas visões anarquistas
individualistas, demonstrando que não incompatibilidade absoluta entre anarquismo e
utopia. Destas convergências possíveis entre anarquismo individualista e utopias, exploradas
por Ryner, o principal destaque no romance é para o caráter político educativo da própria utopia
libertária imaginada. Promove um desvelamento irônico das contradições e misérias da
civilização capitalista através da contraposição de uma sociedade igualitária possível, e nas suas
experimentações radicais com as potencialidades das pedagogias libertárias para a emancipação
do coletivo através de indivíduos que passem permanentemente por um intenso aprendizado de
si no amor ilimitado ao próximo.
Ryner escreve uma utopia antiautoritária, que não “apresenta um plano pré-fabricado,
mas sim ideias audazes e heterodoxas” (BERNERI, 1962, p. 27). Uma utopia coerente com sua
filosofia individualista da harmonia ao exigir que “cada homem fosse único e não um entre
muitos” (BERNERI, 1962, p. 27).
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Recebido em: 30 de julho de 2022.
Aceito em: 15 de dezembro de 2022.