ISSN 2447-746X
DOI: https://doi.org/10.20888/ridpher.v8i00.16682
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A LIBERTAÇÃO ANIMAL NA OBRA DE MARIA LACERDA DE MOURA
Patrícia Lessa
Universidade Estadual de Maringá, Brasil
patricialessa13@gmail.com
RESUMO
Maria Lacerda de Moura foi uma educadora e intelectual que escreveu sobre as mulheres e
sobre as pessoas não humanas a partir dos pressupostos libertários. Nesse artigo buscamos
entender suas posições e sua relação com essas lutas, a partir da análise da sua obra Civilização
Tronco de Escravos, publicada em 1931 e da obra Amai e ... não vos multipliqueis, publicada
em 1932.
Palavras-chave: Maria Lacerda de Moura. Vegetarianismo. Antivivisseccionismo.
LA LIBERTACIÓN ANIMAL EN LA OBRA DE MARIA LACERDA DE MOURA
RESUMEN
Maria Lacerda de Moura fue una educadora e intelectual que escribió sobre las mujeres y sobre
las personas no humanas a partir de los presupuestos libertarios. En éste artículo buscamos
entender sus posiciones y su relación con estas luchas, a partir del análisis de su obra
Civilização Tronco de Escravos, publicada en 1931 y de la obra Amai e ... não vos
multipliqueis, publicada en 1932.
Palabras clave: Maria Lacerda de Moura. Vegetarianismo. Antiviviseccionismo.
ANIMAL LIBERATION IN THE WORK OF MARIA LACERDA DE MOURA
ABSTRACT
Maria Lacerda de Moura was an educator and intellectual who wrote about women and non-
human people based on libertarian assumptions. In this article we seek to understand their
positions and their relationship with these struggles, based on the analysis of their work
Civilização Tronco de Escravos, published in 1931 and the work Amai e ... não vos multiplyis,
published in 1932.
Keywords: Maria Lacerda de Moura. Vegetarianism. Antivivisectionism.
LA LIBERATION ANIMAL DANS L’OEUVRE DE MARIA LACERDA DE MOURA
RÉSUMÉ
Maria Lacerda de Moura a été une éducatrice et intelectuelle qui a écrit sur les femmes et sur
les personnes non humaines à partir des postulats libertaires. Dans cet article nous cherchons
de comprendre ses positions et sa relation avec ces luttes d’après une analyse de son oeuvre
Civilização Tronco de Escravos, (Civilisation Tronco d’Esclaves), publiée en 1931 et de
l’oeuvre Amai e ... não vos multipliqueis, (Aimez-vous et ... ne vous multipliez pas), publiée
en 1932.
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Mots-clés: Maria Lacerda de Moura. Végétarisme. Anti-vivisectionisme.
No primeiro feriado após a chegada de
Red Bull, houve um grande estrondo no
local durante a madrugada...
BOOOOM!!! Quem estava dormindo
acordou! Quem estava chorando engoliu
o pranto! Um grupo de onças estourou o
cativeiro sob o comando de Dona Onça
Pintada. Não ficara um só algoz...
Tamanho medo, todos que puderam
correram em fuga. Um casal de urubus
sinalizava do telhado que o campo estava
aberto. ‘Aquela era a primeira noite do
resto de nossas vidas’, pensava Red Bull.
Uma fila infinita de bezerrinhos e
bezerrinhas seguia os passos firmes de
Dona Onça e de seus 12 filhotes”.
(Patrícia Lessa dos Santos)
A citação acima foi retirada do livro O Resgate do Touro Vermelho (2021), meu
primeiro livro sobre libertação animal para crianças, nele uso o recurso de humanização do
bicho para pensar a necessária derrubada dos cativeiros. O livro, publicado pela Editora Luas,
foi um desafio libertário, à medida que, a perspectiva antiespecista
1
ainda não é abraçada pela
maioria dos grupos anarquistas, embora haja uma história de luta pela libertação animal que se
arrasta ao longo dos séculos. Ao procurar algumas editoras anarquistas para a publicação de
uma obra sobre libertação animal vi uma porta após a outra fechar-se. Minha intenção era,
desde o início, interseccionalizar a discussão sobre o especismo e outros debates necessários
travados ao longo da história pelo movimento anarquista. Desde o princípio eu não queria que
fosse mais um livro para crianças publicado pelas editoras especializadas em livros infanto-
juvenis. Por fim, foi no seio de uma editora feminista que o projeto foi gestado. Desde Maria
Lacerda de Moura vemos a empatia com as outras espécies entre as anarcofeministas, como
por exemplo, Luce Fabbri: “Temos que ser antiautoritários também com os animais” (RAGO,
2001, p. 39). A libertação humana é possível sem a libertação não humana? Foi uma questão
que emergiu no processo de publicação deste livro. Alguns questionamentos surgiram.
1
Por antiespecismo se entende o movimento em defesa das outras espécies e contra a visão de que a espécie
humana é superior. A diferença e hierarquia entre a espécie humana sobre as demais espécies justifica a caça, o
cativeiro, a morte, a tortura etc. para justificar que as outras espécies sejam transformadas em produtos para o
consumo humano (DOMINICK, 2019; MOTA, SANTOS, 2020; LESSA, 2020).
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É possível pensar na libertação humana sem trabalhar arduamente pela libertação das
outras espécies e romper a barreira especista? Até que ponto os grupos anarquistas estão
percebendo as conexões entre a pandemia da Covid-19, o capitalismo, o extermínio da
biodiversidade e a matança das outras espécies em escala industrial? Muitos livros já abordam
o tema, Wallace (2020) reuniu um rico material documental para mostrar as conexões da
pandemia com o agronegócio, ele foi demonstrando as várias doenças criadas nos cativeiros
de morte em escala industrializada. Ribeiro (2020) escreveu sobre como a libertação humana,
animal e a questão da luta pela terra estão sendo estudadas, pensadas e praticadas, em certa
medida, pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Dominick (2019) cunhou o
termo veganarquismo para abordar práticas de libertação animal que estão acontecendo em
vários locais do mundo. Não há, os três autores, como pensar em atuar contra o capitalismo
sem questionar a apropriação ilícita e licita de grandes extensões de terra para produção de soja
e outros grãos transgênicos criados para alimentar a fauna confinada nas grandes ou nas
megafazendas de sangue e de dólar. Para que uma grande ou mega fazenda exista a fauna e a
flora foram dizimadas, muitas pessoas foram expulsas, inclusive exterminadas para que o
projeto aconteça. A libertação das outras espécies era uma luta anarquista desde o século
XIX e, hoje, com o veganismo e o antiespecismo está mais forte e intersseccionalizando as
questões libertárias, com os debates sobre o sexismo, o classismo, o racismo, o etarismo, o
especismo dentre outros.
Pensar as pessoas não humanas na obra de Maria Lacerda de Moura implica
escrever/falar sobre a luta antiespecista que lemos em suas narrativas pró vida. Como
historiadora que vive no centro de um furacão onde a revolução animal, é também, escutada
como um grito agonizante de Pachamama vou revisitar a obra da escritora mineira utilizando
alguns conceitos do século XXI. Especismo é uma terminologia que foi criada na segunda
metade do século XX. A educadora mineira, Maria Lacerda de Moura nasceu em 1887 e
faleceu em 1945, portanto, o termo especismo é posterior a sua obra, embora seja possível
inferir hoje, que suas palavras ressoam como antiespecistas. Utilizamos como um conceito
articulador que possibilita pensar a diferença criada pelos seres humanos para desqualificar as
outras espécies entendidas como inferiores e, com isso, serve para justificar a captura, a prisão
em cativeiros, o extermínio em massa, a tortura, a morte através da caça pseudodesportiva, e
sobretudo, da utilização de seus corpos e de seu sangue para a alimentação, para uso na
indústria farmacoquímica, uso de suas pelagens para o vestuário e muitos outros produtos
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expropriados da vida das pessoas não humanas. Sugere-se que Richard Ryder tenha cunhado
o termo especismo em 1970.
Usamos o termo pessoa não humana que lemos no livro A vida dos animais, de J. M.
Coetzee (2002), nele a primatóloga Barbara Smuts convidou as pessoas humanas a “abrirem o
coração para os animais à sua volta e descobrir por si mesmos como é fazer amizade com uma
pessoa não humana” (SMUTS, 2002, p. 145). Vamos utilizar a expressão de Barbara Smuts
para abordar as outras espécies que à época, assim como as mulheres, foram usadas como
cobaias pela ciência.
O termo pessoa no dicionário Michaelis online (2021) considera a “criatura humana”,
um “ser eminente ou importante”, com “caráter peculiar que distinção a alguém”. E vai
além, na narrativa cristã ser uma pessoa significa estar consciente de sua liberdade e
responsabilidade, que são determinadas pela dimensão moral e espiritual. na gramática
indica alguém que participa de um discurso. Utilizar pessoa para os animais não humanos
significa transgredir um discurso criado pelo humano especista, que desconsidera todas as
outras formas de vida, ou considera inferior, portanto, passível de exploração.
Os séculos XX e XXI estão marcados pela luta vegana, ecofeminista e ecológica.
Muitas e diferentes vozes se erguem pelas pessoas não humanas. Uma delas é a escritora
polonesa Olga Tokarczuk, que ganhou o Prêmio Nobel de Literatura ao publicar o romance
Sobre os ossos dos mortos (2009). Na obra ela escreveu: “Tristeza, senti uma grande tristeza,
e um luto interminável por cada animal morto. Termina um luto e logo começa outro, então
estou em constante luto. É meu estado natural. Me ajoelhei sobre a neve ensanguentada e
acariciei a pelagem áspera, fria e rija do javali” (TOKARCZUK, 2019, p. 98).
O romance gira em torno da caça de animais silvestres e nos surpreende pelo
refinamento da linguagem e pela presença de um tom de mistério que nos deixa com vontade
de lutar pelos animais ao lado da protagonista Janina Dusheiko. A caça predatória está,
juntamente com a questão do uso de pessoas não humanas nos testes científicos, na produção
de morte em escala industrializada para fabricação de carne, no comércio e na venda de
“animais de estimação” dentre outros usos dos corpos, no centro de um debate contemporâneo
sobre as nossas relações com a vida planetária, com as outras espécies e com o meio no qual
vivemos. Os temas ampliaram desde os textos das feministas dos séculos XIX e XX que
escreveram sobre as pessoas não humanas. Foi no contexto que Maria Lacerda de Moura
escreveu sobre a vivissecção e o vegetarianismo.
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Maria Lacerda de Moura foi uma mulher que exerceu grande influência no pensamento
feminista, social e de esquerda no Brasil nas primeiras décadas do século XX. Ela nasceu em
1887 em Manhuaçu, Minas Gerais e, aos quatro anos de idade mudou-se com seus pais para
Barbacena, onde, mais tarde, se formou como normalista e exerceu a docência. Teria sido mais
uma dentre muitas professoras mineiras conhecidas por sua dedicação à família, à escola e aos
alunos, não fosse o deslocamento radical feito por ela em sua vida e em seu pensamento. No
início dos anos de 1920 mudou-se para São Paulo e separou-se do marido, local onde iniciou
a luta pela emancipação feminina, ao lado de Bertha Lutz, de quem logo se distanciou. Em São
Paulo ela passou a fazer parte de alguns círculos de intelectuais. no final daquela década,
ficou mais próxima dos anarquistas e passou a denunciar em seus escritos o autoritarismo do
Estado e da Igreja, o avanço de ideais fascistas, a tendência à militarização do Estado e o
serviço militar obrigatório para homens e mulheres, tornando-se grande inspiradora dos
movimentos antifascistas no Brasil. Assim, ela se tornou conhecida pelos seus livros, seus
artigos para jornais e suas conferências, que fizeram dela uma das vozes mais peculiares do
feminismo
2
naquele momento histórico.
No início do século XX o mundo estava em alvoroço, diante de uma industrialização
mecanizada, com uma produção de armamentos em alta, fruto da parceria ciência-indústria-
Estado, e, com o avanço do nazifascismo, cresciam os abismos entre etnias-raças, gêneros e
classes sociais. Essas forças destrutivas geraram uma forte reação anarquista polarizando o
mundo. Dentre os grupos de mulheres socialistas, anarquistas e sufragistas surgiu o movimento
feminista, que trazia consigo diferentes perspectivas e pautas. As questões das mulheres eram
agregadas às lutas de classe, de raça e, um pouco menos debatidas, as lutas antiespecistas.
Como escrevemos, por especismo se entende a diferença que se faz por espécie, ou seja, a
espécie humana se autoproclamando superior às demais e, em função disso, se considerando
no direito de explorar, escravizar e dizimar as demais espécies, por ela consideradas inferiores.
No século XXI o debate ampliou-se, sobretudo com o veganismo
3
e com a adoção dos
termos animal humano e animal não humano para ampliar a visão de que participamos também,
2
Algumas escritoras libertárias, no início do século XX, preferiam não utilizar o termo feminismo por associar
com a luta sufragista e considerar que ela não atingia as mulheres operárias e das classes menos favorecidas. Maria
Lacerda de Moura foi uma delas, rompeu com Bertha Lutz e as sufragistas, porém, hoje entendemos que seus
escritos sobre libertação das mulheres e reivindicação de direitos ao trabalho e ao estudo para as mulheres, dentre
outros temas afins, nos possibilita pensá-la no quadro da epistemologia e da história feminista. Para aprofundar
indico o livro Amor & Libertação em Maria Lacerda de Moura (2020).
3
Veganismo é um ativismo social em defesa da vida das outras espécies animais. O termo veganismo foi utilizado
pela primeira vez em 1944 no Reino Unido quando foi criada a Vegan Society. É uma prática social que está muito
além da alimentação (não se alimentar de produtos derivados de animais, como por exemplo, o cuidado em
substituir as cápsulas de medicamentos homeopáticos por cápsulas de algas ao invés de gelatina, que é de origem
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do reino animal, ressalvadas as diferenças entre as espécies. Mas foi ainda no século XIX que
muitas feministas começaram a se assumir vegetarianas, sobretudo em função do combate à
vivissecção
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, que estava em alta com o darwinismo e os avanços das ciências médicas. Em
Pitágoras se propunha a dieta vegetariana. Ao longo da história humana e nas diferentes
geografias o vegetarianismo é, desde muito tempo, uma prática conhecida. Porém, um
movimento de repercussão internacional pode ser percebido entre as feministas e grupos
anarquistas do século XIX como veremos. No Brasil, Maria Lacerda de Moura foi uma das
feministas que aderiu à luta antiespecista, passando a denunciar em seus escritos também a
vivissecção e os experimentos com animais.
Não foi por acaso que o final do século XIX e o início do XX foram marcados pela
emergência da voz feminista. Os discursos da medicina e da biologia tentavam comprovar,
cientificamente, a inferioridade das mulheres através da ideologia da natureza feminina e da
elaboração dos fundamentos científicos da teoria da incapacidade inata delas. As disciplinas
em curso eram, especialmente, a obstetrícia, a ginecologia, a biologia, a sociologia, a
psicologia e a antropologia, todas empenhadas na elaboração desses fundamentos. Os
cientistas, a exemplo de Cesare Lombroso e de Pierre Broca, utilizavam a teoria da
incapacidade ou da fragilidade inata para desqualificar as mulheres de sua própria raça e classe
e limitá-las ao reduto doméstico, interessante notar que o mesmo argumento não servia para
desqualificar as mulheres da classe operária que eram forçadas a trabalhar longas jornadas.
Mas as mulheres não aceitaram isto passivamente! Elas foram às ruas e construíram os pilares
do movimento feminista internacional.
Foi neste contexto de embates, de guerras, de misérias e de luxos, que Maria Lacerda e
outras feministas da época travaram batalhas pelos direitos das mulheres. Muitas e diferentes
foram as frentes de luta: as sufragistas, as libertárias, as comunistas criaram as bases e
levantaram os pilares para a chegada da crítica feminista. Muitas delas tornaram-se
vegetarianas por empatia às outras espécies e por entenderem que as mesmas estavam sendo
massacradas pelo avanço científico e industrial e pelos modismos da caça, dita esportiva.
animal). As pessoas veganas procuram não utilizar roupas e acessórios feitos com produto de origem animal, além
disso, graças a luta vegana os produtos livres de testes com animais e produtos veganos possuem selos de
identificação (MOTA; SANTOS, 2020; DOMINICK, 2019; LIMA, JESUS, COELHO, 2019).
4
É a prática de utilizar um animal vivo na ciência e na indústria. O uso dos animais vivos é, em sua maioria, para
realizar testes laboratoriais (testes com drogas, cosméticos, produtos de limpeza, de higiene etc.), nas práticas
médicas (treinamento cirúrgico, transplante de órgãos etc.), experimentos de psicologia (privação materna etc.),
usam-se animais vivos ainda hoje na ciência e na indústria em grande escala. A palavra vivissecção significa cortar
o animal vivo, mas, hoje ela agrega outras manipulações como inclusão de tumor maligno em um organismo
saudável, uso de fermentas e métodos de contenção, etc. (LESSA, 2020).
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Em dois livros de Maria Lacerda de Moura encontramos a defesa do vegetarianismo
relacionado à libertação humana e, sobretudo, à libertação das mulheres. Em Amai... e não vos
multipliqueis (1932) e em Civilização: tronco de escravos (1931) a questão dos animais está
relacionada à adoção de uma dieta vegetariana, como também relacionada à luta
antivivisseccionista. Sobre a alimentação ela escreveu:
No dia em que a mulher se dispuser a libertar-se do jugo do estômago
civilizado, passar a comer frutas e legumes, a apagar o fogo doméstico que é
o “fogo eterno” do inferno feminino na sua escravidão ao estômago do
homem nesse dia ela recomeçará a sua auto-educação física e mental e
iniciará a sua verdadeira libertação humana. (MOURA, 1932, p. 233)
O estômago civilizado, como foi nomeado por Maria Lacerda, tratava de hábitos
alimentares da burguesia europeia, tomados como modelo em outros locais, sobretudo com o
consumo de grandes quantidades de carne de animais de criação, além da caça, que era a
demonstração máxima da superioridade humana. O estômago civilizado, era, portanto,
dependente do extermínio em massa de outras espécies, o que vinha sendo visto com
desconfiança por feministas e anarquistas.
O humanismo havia colocado o homem, macho, branco e eurocêntrico no cume da
montanha, porém, o seu progresso político, econômico, cultural ou social dependia, em parte,
da exploração e da escravização de muitas outras vidas humanas e não humanas. Laura Luedy
(2019) escreveu sobre a história do abate industrial, sobre o surgimento dos abatedouros e, aos
poucos, a mudança desses centros de matança em massa para locais cada vez mais isolados e
escondidos do mundo civilizado. Diz ela:
A literatura que se debruça sobre o caminho histórico que foi traçado pelas
mudanças nas técnicas ocidentais de abate de animais costuma sublinhar
algumas linhas comuns que se consolidaram nesse respeito. Destaca-se,
sobretudo, o progressivo afastamento espacial dos matadouros em relação aos
centros populacionais; as mudanças arquitetônicas que priorizaram os
espaços fechados e internamente fragmentados; e as incontáveis mudanças
técnicas que terminaram por se traduzir em abatedouros com um número
muito maior de trabalhadores que exercem funções mais mediadas por
instrumentos, saberes, ritmos que não dominam inteiramente. (LUEDY,
2019, p. 76)
A morte em grande escala e a produção serializada foram alguns dos alvos da obra de
Maria Lacerda, sobretudo a partir de sua chegada a São Paulo e do encontro com a comunidade
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anarquista em Guararema
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. No livro Civilização, tronco de escravos ([1931] 2020), ela associa,
de forma brilhante, a ciência e a industrialização a serviço do poder político e econômico. Para
ela, havia uma grande contradição na adoção do termo “civilização”, já que os grupos sociais
considerados civilizados conjugavam práticas brutais, tais como a caça desportiva e o
patriotismo, ambas serviam como bases de sustentação para a venda de armas e levavam às
guerras. Outro aspecto relevante é notado em seu debate sobre a produção industrial e o
acúmulo de riquezas por uma minoria, graças ao trabalho mal remunerado de uma multidão de
trabalhadoras e trabalhadores famintos. Já no início da obra, ela aponta as consequências e diz:
É o excesso de produção, sob todos os aspectos, na lavoura como nas
indústrias, causa de todos os conflitos na sociedade atual. O nosso mal não
vem da falta e sim do excesso de produção. A miséria do mundo moderno
ainda vem da fartura e do excesso de riqueza e de progresso material. Da má
distribuição de gêneros alimentícios. Por ora, a terra daria bem para a sua
população. (MOURA, [1931] 2020, p. 18)
O acúmulo de riquezas através da produção industrial não resolveu a questão da fome.
Muito pelo contrário, agravou as diferenças; o abismo que separa as grandes fortunas da
multidão de famintos, discussão presente nas narrativas da feminista mineira, ainda é tema que
está em pauta. Com as outras espécies de animais, o carnivorismo engordou os “estômagos
civilizados”, porém, não sanou a fome da classe operária, cujo sangue e suor se misturavam
nos abatedouros, que gradativamente ficaram mais escondidos, longe dos centros urbanos
civilizados e higienizados.
Se os séculos XIX e XX marcaram as lutas das mulheres por direitos, podemos dizer
que os séculos XX e XXI viram nascer uma revolução animalista sem precedentes. O avanço
nos direitos dos animais coadunou com a expansão do vegetarianismo e, mais recentemente,
com a chegada do veganismo. Na obra anarquista Entre colunas, do lusitano Roberto das
Neves, ele disserta sobre as relações entre o pensamento libertário e o surgimento de uma
revolução na medicina, agregando o vegetarianismo e a macrobiótica ao naturismo. Aspectos
ligados aos grupos que migravam para a zona rural em busca de uma nova vida, longe da
miséria, da proliferação de doenças, da fome e das guerras (NEVES, 1980). Conforme esse
autor:
5
A Comunidade de Guararema foi fundada pelo anarquista Arturo Campagnoli e sua peculiaridade era a formação
composta por anarquistas individualistas, sobretudo, próximos das ideias de E. Armand e de Han Ryner. Segundo
Rodrigues (1993, p. 82) ao contrário da “Colônia Cecília”, “onde tudo se fazia em comum [...] na Comunidade de
Guararema prevalecia o sistema anarquista-individualista, ou seja, cada componente tinha sua moradia, cultivava
em faixa de terra ou buscava outros meios de sobrevivência individuais”.
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O vegetarianismo, ou seja, a ausência da carne (por carne entende-se também
peixe, aves e ovos) na dieta habitual da maioria dos habitantes da Terra, é
antiquíssima norma de vida, recomendada pelas mais seguidas religiões e
correntes filosóficas. Buda, Lao Tsé, Pitágoras, Platão, Diógenes, Sócrates,
Epícteto, Epicuro, Ovídio, Plutarco, Tertuliano, São João, Crisóstomo, São
Clemente de Alexandria, Leonardo da Vince, São Francisco de Assis,
Cervantes, Spinoza, Descartes, Darwin, Voltaire, Rousseau, Tolstói, Elisée
Réclus, Ruskin, Lázaro Luíz Zamenhof, Thoreau, Albert Shweitzer, Albert
Einstein, Jean Rostand G. Bernard Shaw, Han Ryner, E. Armand, Maria
Lacerda de Moura, Annie Besant, Leadbeater, Krishnamúrti, José Oiticica,
Alex Carrel etc., etc., tantos dos mais notáveis homens de todos os tempos,
foram ou são vegetarianos. Entre os cristãos, contam-se, além de outros, os
Adventistas do Sétimo Dia, que desenvolvem em todo mundo fecunda
atividade a favor do vegetarianismo, e as ordens monásticas católicas
Trapistas, Cartuxos e Cameldulenses. (NEVES, 1980, p. 214)
Roberto das Neves, também vegetariano, demonstrou nesta obra a relação do
vegetarianismo com as práticas libertárias e a busca por uma vida no campo ligada às
comunidades libertárias agrícolas, grupos que procuravam afastar-se dos centros urbanos e
praticar uma produção de alimentos autossustentável, além de afastar-se das guerras e da
industrialização. Se o veganismo é recente na história das relações interespécies, o mesmo não
podemos dizer do vegetarianismo como vimos na citação acima.
Em sua obra A política sexual da carne: a relação entre carnivorismo e a dominância
masculina, Carol Adams (2012) identifica mulheres vegetarianas ligadas às reivindicações
feministas. Segundo ela, no século XIX muitas mulheres tornaram-se vegetarianas e
escreveram sobre a necessária libertação delas mesmas e das outras espécies. Mulheres como:
Agnes Ryan (18781954 EUA); Annie Wood Besant (1847, Inglaterra 1933, Índia); Clara
Barton (1821-1912 EUA); Elizabeth Cady Stanton (1815-1902 EUA); Lou Andreas-
Salomé (1861, Rússia 1937, Alemanha) e Matilda Joslyn Gage (1826-1898 EUA) foram
precursoras da alimentação sem carne e da luta contra o uso de animais na ciência e na
indústria, sobretudo na luta antivivisseccionista.
Ao ler a obra de Maria Lacerda ([1931] 2020; 1932), é possível analisar a sua visão
sobre o uso dos animais na ciência e na indústria. Nessa obra ela critica o modelo de
apropriação do conhecimento tecnológico e científico pelo capitalismo, principalmente por
favorecer o enriquecimento de poucos em detrimento de uma multidão operária mal
remunerada. Seguindo a perspectiva anarquista ela percebe a tecnologia e a ciência como
potencialmente emancipadoras, porém, apegadas ao modelo capitalista, que sacrifica a vida em
nome do progresso social, político e econômico de uma minoria da elite política e da
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aristocracia industrial e ruralista. A relação entre a opressão sexista e especista na literatura
feminista libertária, transitou por diferentes abordagens e de variadas formas: crítica à ciência
e à vivissecção, crítica à indústria da carne, à instrumentalização dos corpos humanos e não-
humanos e consequente adoção de uma alimentação vegetariana.
Carol Adams (2012) diz que as mulheres do século XIX viam no vegetarianismo uma
libertação da labuta da cozinha, da servidão aos homens e da crença cega no poderio dos
médicos, que recomendavam dieta carnista. A crítica à medicina e à ciência tomam forma nos
escritos das mulheres desde as sufragistas até as feministas libertárias. Para a autora os textos
vegetarianos-feministas são o referencial ausente da crítica e da história feminista. Ela
argumenta a favor da urgência em revisitar os escritos e relacionar os processos de libertação
abraçados pelas autoras entre final do século XIX e início do culo XX. Diz ainda que é
possível encontrar inúmeras feministas que escreveram sobre o tópico. Carol Adams (2012)
sugere revisitarmos os escritos de libertação de autoras do período entre o final do século XIX
e o início do século XX, e diz, que é possível encontrar muitas escritoras feministas, libertárias,
sufragistas e abolicionistas que publicaram textos importantes sobre o assunto.
A ligação entre a naturalização dos experimentos e a mutilação de animais não
humanos, a tortura e a anulação do corpo feminino pelo poder biomédico, são evidencias
apontadas pelas feministas que mostraram que, desde a era vitoriana, essas práticas formam
uma rede de conexões de corpos submetidos aos usos científicos em benefício do capitalismo.
A vivissecção, que é a prática de dissecar o animal vivo, com fins de estudo ou mesmo para
testes na indústria, virou preocupação entre mulheres e direcionou seus olhares para as outras
espécies, até então vistas de forma meramente instrumental e funcional. Era um enorme coro
de antivivisseccionistas pensando e contestando a cruel exploração das outras espécies.
Maria Lacerda também assumiu posições contrárias à utilização de animais em
experimentos aderindo, dessa forma, à luta antivivisseccionista. Essa posição ficou explícita
em três capítulos publicados na obra Civilização Tronco de Escravos escritos, possivelmente
em 1928, por ocasião da visita ao Brasil do médico fisiologista Serge Voronoff, que veio
realizar conferência nas Jornadas Médicas do Rio de Janeiro.
Serge Samuel Voronoff (1866-1951) nasceu na Rússia e foi naturalizado francês, onde
desenvolveu sua carreira de médico, especializado em fisiologia, ele foi professor do Collège
de France (LESSA, 2020). Segundo Ethel Cuperschmid e Tarcício Campos (2007, p. 739),
Voronoff tornou-se um cirurgião mundialmente famoso “ao fazer enxertos e experiências
glandulares para melhoria de raças de ovinos e equinos”. Ele defendia que “animais velhos
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transplantados com testículos de animais mais jovens recuperavam o vigor perdido”. A partir
das experiências com esses animais, ele desenvolveu uma técnica de xenotransplante, pela qual
implantava glândulas sexuais de macacos em homens, aos quais prometia o rejuvenescimento
e a restauração física e intelectual. Conforme Cuperschmid e Campos (2007, p.743)
“Acompanhando a medicina eugênica em voga nas décadas de 1920 e 1930, o cientista
pretendia rejuvenescer organismos humanos com o transplante de glândulas de chimpanzés e
babuínos, os quais foram elevados, assim, ao grau de espécies fraternas ao gênero humano”.
Os autores informam que, entre 1920 e 1940, a técnica de Voronoff foi utilizada por mais de
45 cirurgiões de vários países, sendo realizados cerca de dois mil xenotransplantes entre
primatas não-humanos e humanos; somente na França nos anos 1930 mais de quinhentos
homens foram operados. Voronoff também realizou experimentos para transplantar ovários de
macacas em mulheres, com a falsa promessa de reduzir os efeitos da menopausa.
A vinda do famoso médico ao Brasil ganhou os noticiários e ocupou por muito tempo
o imaginário popular, pois, devido à sua técnica, ele inspirou piadas e marchinhas de carnaval,
sendo lembrado, por muito tempo sempre que surgia algum avanço na área médica. Justamente,
por meio do “trabalho científico” de Voronoff, Maria Lacerda empreende uma crítica à ciência
a serviço do capital e à sociedade, autoproclamada, civilizada. Por um lado, pela busca de
milagres para prolongar a vida e a juventude, após esbanjá-la em “gozos materiais”; por outro,
pelos meios utilizados para tal, ou seja, a técnica de xenotransplante que consistia em roubar
os testículos dos macacos para um suposto benefício para os homens. Sobre o tema ela
perguntou:
[...] E vamos buscar, nas florestas, um ser livre e feliz, vivendo em harmonia
com as suas necessidades naturaes e o inutilizamos ou matamos, roubamos a
sua vitalidade ou reduzimo-la á metade para resucitar a cadaveres
ambulantes, para estimular a senilidades imprestaveis, cujo corpo
envelhecido precocemente, talvez em orgias e libertinagens, póde dar vida a
filhos predispóstos á mesma degradão moral [...]. É justo que o libertino, o
luético, o alcoolatra, o cocainomano, o jogador, o farrista, os “tigres” politicos
profissionaes e senis, banqueiros e escroques elegantes, altos funcionarios,
senadores e magistrados, intelectuais prostituidos e domesticados, juizes das
conciencias alheias... é justo que toda essa massa humana de parasitas e
exploradores do rebanho social vá buscar, nas florestas, o animal pujante de
seiva de vida em virtude de sua sobriedade instintiva e o prenda em
ambiente incompativel com a sua liberdade, com os seus hábitos selvagens e
o mutile para rejuvenecer a criaturas de si mesma mutiladas pela
vulgaridade ociosa e parasita, pela imbecilidade quintessenciada de prejuizos
e rotina, pela baixeza e servilismo, pelo autoritarismo, pelo orgulho da
inconciencia de si mesmos? (MOURA, [1931] 2020, p. 25, 47)
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Não seria sem resistência que as práticas de tortura sobre as outras espécies iriam
persistir. As feministas estavam dispostas a derrubar os cativeiros, fossem eles humanos ou
não humanos. Um exemplo disso é um memorial contra o sofrimento dos animais nos
laboratórios de ciências, nomeado, o pequeno cão marrom, inaugurado em 15 de setembro de
1906, em Londres, Inglaterra. A estátua tinha uma placa onde se lia: “Em memória do cão
terrier marrom levado a morte nos laboratórios da University College, em fevereiro de 1903,
depois de ter suportado vivissecções por mais de dois meses”
6
. A prática de realizar
experimentações com animais não humanos virou uma febre. Algumas espécies, consideradas
biologicamente próximas da humana, foram massacradas, caçadas, presas e torturadas em
experimentações que duravam meses.
Segundo Cuperschmid e Campos (2007, p. 745), “na década de 1920, foram criados
entrepostos comerciais na África Ocidental francesa para armazenar os animais e garantir sua
oferta na França”. Muitos cientistas tinham seu próprio espaço para estocar e cuidar de seus
macacos. Voronoff comprava pessoas não humanas para servir de cobaia em seu
empreendimento médico-cirúrgico, as mesmas eram capturadas em territórios da África
equatorial, que hoje integram os atuais Congo, Sudão, Guiné e Camarões, além de Gibraltar.
As experiências de Voronoff foram interrompidas em razão das pressões da comunidade
científica e dos insucessos das suas cirurgias. Para Maria Lacerda, Voronoff representou uma
época. Ele nada descobriu e pouco contribuiu para o estudo das secreções glandulares, mas
vulgarizou a questão “trazendo-a para o domínio público no sentido de industrializar um
assunto de laboratório”. De fato, Voronoff que era rico, aumentou sua fortuna com sua
técnica que prometia vitalidade e o fim da impotência sexual masculina. Sobre as práticas de
vivissecção, amplamente utilizadas naquele início de século como já dito, ela escreveu:
[...] não compreendo a vivissecção a não ser como um delírio de perversidade
inominável, nem chego a ver a vantagem da embriaguez científica que põe
milhares de cobaias e cães e qualquer espécie de animal à mercê dos cientistas
[…] vaidosos de fazer sofrer os “mártires da ciência” em nome de um
princípio ou de uma descoberta ou de uma pesquisa ou dos problemáticos
benefícios daí resultantes para todo o gênero humano […]. O homem
continuará a descer sempre, bem para baixo de todos os símios, na sua
maldade de criatura civilizada, para estimular todas as virulências, desde as
guerras até o prazer satânico de martirizar os animais em nome do
humanitarismo cínico. [...] A humanidade pode progredir sem a fisiologia,
porém, não poderá progredir sem a piedade. (MOURA, [1931] 2020, p. 32-
33)
6
Sobre a estátua em memória do o terrier marrom ver em: https://www.magnusmundi.com/pequeno-cao-
marrom-memorial-contra-o-sofrimento-dos-animais/.
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Ela argumentava que a ciência, submetida aos interesses capitalistas, “ocupa em nosso
tempo exatamente o mesmo lugar que o sacerdócio havia ocupado alguns séculos. [...]
escondidos nos títulos, as mesmas castas nas ciências, academias, universidades, congressos”
(MOURA, [1931] 2020, p. 32-33). Ela sugeriu algumas possíveis formas de resistência contra
esta situação, como a recusa, por parte da classe trabalhadora, de servir ao sistema, pois,
segundo ela: “seria preferível que o trabalhador se auto amputasse as duas mãos do que optasse
por trabalhar em arsenais de guerra, hidroaviões e metralhadoras, navios de guerra e torpedos”
(MOURA, [1931] 2020, p. 16). Nessa fase da sua obra, certamente impactada pelos horrores
da primeira grande guerra e em luta contra o avanço do fascismo
7
, ela se dedicou a escrever
sobre a indústria armamentista, um dos pilares da carnificina e dos testes com animais. A autora
era pacifista, em seus escritos aponta a recusa ao uso de armas e império da guerra e da
competitividade.
Maria Lacerda de Moura foi uma das vozes da resistência pela positividade da vida.
Tanto na frente de batalha contra a guerra quanto em oposição à crueldade perpetrada pela
industrialização contra humanos e pessoas não humanas usados como cobaias. Uma das
críticas anarquistas desenvolvida pela autora, foi com relação à ciência moderna em seu
posicionamento entre a vida e a produção em escala industrial pois, quando a ciência
supervaloriza a razão instrumental, tende a afastar-se da pluralidade da vida para moldar a
realidade de acordo com uma imagem abstrata, idealizada e romantizada. A dominação, por
ela chamada de “dominismo” estava no centro da discussão. Para ela a vivissecção era um
atraso no aperfeiçoamento humano. Escreveu sobre o tema:
Não é sentimentalismo piegas e sim pan-humanismo o que lemos em
“Atlantida” de 21 de Outubro de 1927, a propósito da vivissecção: Da
perpetração de atos moraes máus não pódem resultar beneficios, de maneira
alguma para a humanidade. A crueldade nunca poderá ser um caminho para
o aperfeiçoamento humano. A ciencia não se adquire com a crueldade. E
muito menos a sabedoria, acima de qualquer especie de violencia. [...]
Extirpar uma glandula sexual do macaco, nada representa para o homem, mas,
extirpar um testículo do homem é algo de muito importante na sua
integralidade... Quanto a vivisecção, o proprio Claude Bernard, o
experimentador “primus inter pares”, que massacrou, brutalmente, os dois mil
cães e que, sem anestesia, os matou lentamente, o barbaro que, para atender
aos protestos da sua vizinhança, cortava antes das experiencias, as cordas
vocaes dos animaes, a fim de que não uivassem de dôr, o proprio Claude
Bernard diz: “A vivisecção é a deslocação do organismo vivo por meio de
instrumentos e de processos que lhe podem isolar diferentes partes. Reduzida
7
Sobre essa fase da obra de Maria Lacerda consultar Leite (1984), Maia e Lessa (2015) e/ou Lessa (2020).
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a si mesma, ela teria alcance restrito, e poderia em certos casos, induzir-
nos a erros sobre o verdadeiro papel dos orgãos. Por essas reservas eu não
nego a utilidade nem mesmo a necessidade absoluta da vivisecção no estudo
dos fenomenos da vida, eu a declaro apenas insuficiente. Com efeito, nossos
instrumentos de vivisecção são tão grosseiros e nossos sentidos, tão
imperfeitos que podemos atingir no organismo as partes grosseiras e
complexas. Não obstante, a mania da vivisecção é o orgulho da ciencia
moderna, e as vacinas e soros se multiplicam para gaudio da terapeutica
industrializada e para o martírio dantesco das cobaias e dos simios. Cousa a
mais natural do mundo o “homo sapins” roubar do macaco o que seria incapaz
de lhe dar, o que dificilmente, excepcionalmente, seria incapaz de dar ao
proprio semelhante. E para que? Se o resultado não passa de sugestão ou se
limita à absorpção mais ou menos lenta do hormonio da glandula
transplantada? Resultado para 3 ou 4 annos, findos os quaes, outra enxertia é
necessária para novo rejuvenescimento. (MOURA, [1931] 2020, p. 33-35)
Uma das críticas anarquistas à ciência moderna foi com relação à contradição entre a
ciência e a vida, escancarada na ampla utilização da vivissecção, diz a anarquista: “a ciência
do vampirismo humano esgotado por senilidade precoce que suga as glândulas de animais"
(MOURA, [1931] 2020, p. 34). A ideia de civilização, nos livros da autora que analisamos,
implicava apontar as contradições entre a capacidade de pensar e de sentir e o abismo entre as
pessoas humanas e as outras espécies exploradas pela ciência e pela indústria, cujo discurso
central era a promessa de progresso civilizatório.
Em Maria Lacerda encontramos uma escrita marcada pela positividade da relação
humanidade-animalidade em época muito anterior ao início das discussões animalistas,
veganas ou ecofeministas. Ela foi antecipadora de importantes temas da história das mulheres
e das lutas feministas, como demonstram os estudos sobre sua obra, ela foi também uma
visionária ao expectar relações de exploração dos humanos sobre as outras espécies (LESSA,
2020). Ela buscou novos campos para pensar e agir além de uma nova forma de fazer ciência,
através das artes e das relações com os animais. As narrativas do passado iluminam e
constroem histórias das relações interespécies. Os textos libertários de Maria Lacerda de
Moura são narrativas de resistências feministas, repletos de deslocamentos e ressignificações,
escritos em um momento de profunda transformação socioeconômica e cultural. Seus textos
estavam em diálogo com um pensamento anarquista internacional que questionava a ideia de
progresso prometido no processo de constituição e difusão massificada da ciência e da
tecnologia.
A ciência e a tecnologia teriam utilidade e proporcionariam bem-estar social, em uma
sociedade utópica, onde a propriedade coletiva dos meios de produção e a emancipação
feminina prevalecessem. Lugar onde a aglomeração das cidades, consideradas um locus para
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a aplicação da ciência e da tecnologia, fosse adequada para uma integração orgânica com a
natureza através da valorização do trabalho rural e coletivo. Eis uma das propostas de Maria
Lacerda de Moura, proposta essa que também antecipa algumas das lutas ecológicas e
ecofeministas
8
que surgiram muitas décadas depois.
Pachamama está em chamas e os sinais da catástrofe foram denunciadas por
ecofeministas, ambientalistas e ecologistas. A pandemia e todas as outras doenças criadas nos
grandes cativeiros de dólar e de sangue da indústria da carne são consequências da exploração
capitalista e patriarcal. Os “estômagos civilizados”, como dizia Maria Lacerda de Moura, são
os estômagos que ardem pelo peso de uma alimentação industrial, regada à veneno, com o
dissabor dos transgênicos, dos alimentos ultra processados e, sobretudo, com o peso da carne
de outra pessoa, que como nós, humanidade, nasceu para viver livremente.
O respeito às pessoas não humanas pode ser o início de uma transformação na vida
planetária, na relação humanidade-animalidade-plantas, para avançarmos em direção aos
modos de existência mais afetivos e criativos. A empatia e o amor interespécie significa pensar
que as outras formas de vidas importam, que nos modificam e que criam novas formas de
convívio. Lutemos pela libertação humana, não humana e planetária como queria Maria
Lacerda de Moura!
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O ecofeminismo é uma prática social que interseccionaliza as questões ecológicas ao pensamento, teorização e
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vertente de Carol Adams (2012).
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Recebido em: 26 de setembro de 2022
Aceito em: 15 de dezembro de 2022