ISSN 2447-746X
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JOÃO ALBERTO MEYER, NASCIDO HANS ALBERT MEYER, CONHECIDO
COMO JEAN MEYER...
1
Bruno Meyer
2
ConsultBKM Paris França
brunomeyer3@gmail.com
UMA HISTORIA DE TRÊS NOMES
Nascido em 1925, meu pai Hans Albert Meyer teve duas nacionalidades: cidadão da
cidade-estado de Dantzig, por nascimento e, depois, naturalizado brasileiro. Em quatro períodos
distintos, ele viveu quase a metade de seus 85 anos de vida na França. Sua história deve tanto
à violência do século XX quanto às suas próprias qualidades. Pelo seu pai, ele vinha de uma
família judia instalada em Dantzig varias gerações. Esta cidade de língua alemã da Liga
Hanseática fazia parte da Prússia. Em 1919, o Tratado de Versalhes retirou a cidade da
Alemanha e tornou-a uma “Cidade-Estado” - um regime que havia conhecido em sua história
- até sua invasão por Hitler em de setembro de 1939, data que marcou o início da Segunda
Guerra Mundial. Dantzig tornou-se polonesa após a guerra, com os estaleiros de Gdansk
desempenhando o papel que sabemos e suas consequências sobre a história da Europa, mas isto
é uma outra história.
1
Artigo escrito em 2020 para o Les Jansoniens, Association Amicale des Anciens Éleves du Lycée Janson de
Sailly, Paris. https://www.lesjansoniens.com.
2
Bacharel em Física pela UNICAMP (1979). Mestrado em cosmologia pela USP Universidade de São Paulo
(1981). Doutorado (Ph.D. 1984) Edinburgh University em física teórica de alta energia, na equipe do Peter Higgs
(este último propôs um bóson que agora leva seu nome, que foi descoberto no CERN mais de 30 anos mais tarde,
e que lhe rendeu o Prêmio Nobel.). Sempre fascinado pela física, mas achando essas roupas muito grandes, assumi
o traje do engenheiro, depois do meu doutorado, mudando-me para Paris. Depois de uma longa carreira na
Electricité de France (EDF), trabalho hoje como consultor na area de energia. Agredeço a Luci Banks Leite por
sugerir publicar este texto, e por sua leitura atenciosa da versão em português.
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FIGURA 1 - Hans-Albert Meyer aos 10 anos. Passaporte de Danzig (Dantzig) de 24 de
janeiro de 1936.
Tradução da legenda do passaporte:
Assinatura do proprietário
É oficialmente certificado que o titular do
passaporte é a pessoa representada pela foto
acima e que a assinatura abaixo foi feita à
mão.
Em 1935, as eleições do Volksrat (o equivalente ao Senado do Estado de Dantzig)
levaram ao poder um partido a favor da adesão de Dantzig ao Terceiro Reich. As perseguições
antissemitas que vinham à frente, exigiram que a família considerasse o exílio. O pai de Hans
Albert, um banqueiro, tinha os recursos financeiros para se preparar para sua partida sob as
condições corretas, mesmo sabendo que deixaria sua cidade e país para sempre. Os imóveis da
família estavam perdidos. Tendo obtido um visto para uma estadia de dois anos na França, eles
chegaram em Paris no início de 1938.
Hans Albert e seu irmão mais novo foram primeiro à escola particular La Bruyère em
Brunoy nos arredores de Paris, depois para o prestigioso Lycée Janson de Sailly. Iniciaram o
ano letivo em setembro de 1938. Assim, Hans Albert tornou-se Jean nos registros de matrícula
da escola.
Tendo dúvidas sobre seus anos de estudo em Janson (como é conhecido até hoje), bem como
os detalhes de sua chegada à França - essas perguntas vêm à tona tarde demais, quando todas
as testemunhas desapareceram - entrei em contato com a Associação “Jansoniana” dos ex
alunos. Alguns dias depois mandaram-me uma cópia dos boletins da 8º série do meu pai com o
contexto. Leitura muito comovente para mim. Sou grato à associação e à escola por terem
conservado todos estes arquivos.
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Na classe onde ele foi admitido, nos anos de 1938 e 1939, também constam o futuro
Presidente da República francesa Giscard d'Estaing e o futuro Ministro da Justiça do François
Mitterrand, Robert Badinter
3
. Embora meu pai, claro, mais tarde tenha ouvido falar desses
homens ilustres, ele nunca mencionou que eles estavam na sua turma. A turbulência dos anos
seguintes a esse período pode explicar por que os nomes de seus colegas de colégio foram
apagados da sua memoria de adulto.
Jean não é o primeiro da classe, mas seus resultados são considerados "satisfatórios ou
até excelentes em matemática, o que é cheio de promessas". Ele vai compartilhar uma “menção
em matemática” com Valéry Giscard d'Estaing (que fora aluno da Ecole polytechnique).
Nos anos letivos de setembro 1939 a junho de 1940, não há mais vestígios de sua presença em
Janson. Mas a associação ressalta que faltam os arquivos desse ano. Provavelmente, ele ficou
lá para o primeiro colegial. Um ano escolar que a história interrompeu novamente, forçando-o
a fugir com sua família pela segunda vez em sua jovem vida.
A guerra entre Alemanha e França começa em setembro 1939 com uma fase de
observação. Os franceses chamaram esta época de “Drôle de guerre” (Guerra estranha). A
invasão da França pela Alemanha inicia-se em maio de 1940. Meu avô, que era considerado
alemão (os Dantzigois foram assimilados a eles), foi internado pelos franceses em um campo
de prisioneiros nos arredores de Paris. Mais uma vez, sinto falta de alguns esclarecimentos.
Acho que deve ter sido em maio ou junho de 1940, quando a ofensiva alemã começou em
território francês. O fato é que minha avó estava morando sozinha com seus filhos em seu
apartamento na rue de la Tour, 113, no chique “16ème arrondissement” de Paris, ao lado de
Janson. Foi lá que ela recebeu a visita do ex-cônsul da França em Dantzig, que havia ficado em
contato com minha família. Era meados de junho: ele disse-lhe que o ministério das Relaçoes
exteriores e todo o governo iriam se retirar para Bordeaux diante da iminente chegada dos
alemães em Paris. Ele a aconselhou a fugir imediatamente com as crianças, sem esperar pela
liberação hipotética do marido. Foi, então, o êxodo para os três, tendo por bagagem o mínimo
necessário. Eles chegaram a Bordeaux, onde, em 19 de junho, obtiveram um visto de Aristides
de Sousa Mendes - o famoso cônsul de Portugal mais tarde reconhecido como "Justo entre as
Nações" pelos israelenses. Ele dava um visto a todos os requerentes, chegando ao ponto de
colocar uma mesa na rua em frente ao consulado. Mas o ditador Salazar mais tarde anulou esses
vistos. Outro visto, espanhol, permitiu que eles transitassem pela Espanha, indo para a cidade
3
Robert Badinter é celebrado na França pela lei proibindo a pena de morte. No Brasil, possivelmente ele seria
mais conhecido como o marido da filosofa Elisabeth Badinter.
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francesa de Bayonne. Lá, como por algum milagre, na agitação que se pode imaginar, os dois
meninos viram seu pai que havia escapado do campo de prisioneiros, também tinha feito uma
parada por Bordeaux e também obtevera um visto para a Espanha. O vice-prefeito de Bayonne
assinou uma autorização para irem à Espanha em 22 de junho, o que eles fizeram em Hendaye
no mesmo dia. Em Madri, a única opção era o Brasil. A embaixada concedeu-lhes um visto de
turista temporário em 17 de julho. Embarcaram em Cádiz em 3 de agosto para chegar ao porto
de Santos em 19 de agosto de 1940 e se estabeleceram em São Paulo poucos dias depois.
O Brasil foi um país magnífico para a família, embora as condições materiais fossem
difíceis no início. Minha avó, acostumada com a vida da "boa sociedade" na Europa, não hesitou
nos primeiros tempos em confecionar chapéus. Jean e seu irmão foram matriculados no Colégio
Francês em São Paulo, o Lycée Pasteur. Mas depois de algum tempo, por razões financeiras,
eles foram retirados. Foi quando o diretor do liceu veio ver meus avós. Dado os seus resultados
excepionais, ele propôs não cobrar Jean por seus estudos, e acabar o ano para obter o
“baccalauréat” (que no sistema francês, além de completar o secundário, abre a porta aos
estudos superiores). Ele obteve o “bac” com excelentes notas aos 16 anos.
Mais tarde, optou pela nacionalidade brasileira - certificado assinado pelo Presidente
Eurico Gaspar Dutra - e Hans Albert tornou-se João Alberto Meyer, embora para sua família,
seus amigos, ele tenha permanecido Jean para sempre.
UM FÍSICO DE ALTA ENERGIA
O resto não foi sem dor. Com o “bac” no bolso, meu pai teve que trabalhar. Foi para
uma fábrica na industria química. Ele, que falava tão pouco desses anos difíceis, gostava de
lembrar que tinha, entre outras tarefas, que limpar os banheiros. Suas qualidades foram porém
identificadas. O diretor da fabrica lhe ofereceu um emprego como técnico de laboratório, e ao
mesmo tempo sugeriu que ele se matriculasse em química na jovem Universidade de São Paulo.
Lá, encontrou um grupo de jovens físicos que acompanhavam entusiasticamente o seminário
proposto por Mario Schenberg à noite em sua casa. Seu nome pode ser desconhecido para os
leitores mais novos deste texto, mas é preciso realçar aqui aquele que foi um dos mais
importantes físicos brasileiros do século XX, que teve um papel de liderança tanto na vida do
meu pai quanto por toda uma geração de jovens cientistas brasileiros. Muitas vezes vi o
Schenberg mais tarde em casa, olhos meio fechados, compartilhando sua visão da física e do
mundo fumando seu charuto. Durante esses seminários, toda a magia da física moderna era
discutida: mecânica quântica, relatividade, astrofísica. E a nova busca por essas "partículas
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elementares" (ou física de alta energia) que se tornaria o centro da carreira de Jean Meyer. Na
taxonomia dos físicos, muitas vezes distinguem-se os teóricos dos experimentais. Meu pai
tornou-se um “experimentador”.
Naquela época, em 1947, ocorreu uma descoberta fundamental: a do "meson-Pi" que
havia sido postulado pelo físico teórico Yukawa em 1935. Foi detectado por dois métodos e
dois times: em raios cósmicos em Bristol e por acelerador de partículas em Berkeley. Na
Inglaterra, uma equipe de três pessoas, e em Berkeley por duas pessoas. O único que fez parte
dos dois times foi o brasileiro César Lattes, contemporâneo e amigo do meu pai. Curiosamente,
apenas o britânico Powell teve as honras do Nobel. Meu pai sempre me contou o quanto Lattes,
que eu também conheci quando era estudante, fora homenageado e celebrado como ídolo neste
Brasil dos anos 1950.
Esta agitação intelectual e científica em que meu pai estava imerso era essencial para
ele. O grupo de jovens tornou-se uma geração de físicos brilhantes; alguns permaneceram no
Brasil, outros foram para os melhores centros de pesquisa ao redor do mundo.
Jean permaneceu como assistente de pesquisa na Universidade de São Paulo quando, em 1952,
recebeu uma bolsa de estudos de um ano para... Paris. Desta vez, sem medo, e casado com uma
brasileira, minha mãe
4
. Juntou-se ao laboratório de Louis Leprince-Ringuet na Ecole
Polytechnique. O tema em voga, que permaneceu relevante por muito tempo, foi a construção
de "câmaras de bolhas". Este termo, que acompanhou minha infância, é um detector de
partículas. De fato, para cada acelerador, mesmo hoje com o gigante LHC
5
do CERN
6
, é
necessário, que os colisionadores sejam equipados de detectores de particulars para rastrear a
desintegração das partículas aceleradas. Inventadas em 1952 pelo americano Glaser, estas
câmaras de bolhas foram imediatamente objeto de ações de desenvolvimento em todo mundo,
inclusive na França; especialmente neste laboratório onde outra personalidade teve um papel
importante tanto para a ciência francesa e européia, quanto para o meu pai: Bernard Grégory.
Futuro diretor do CERN e futuro presidente do CNRS (équivalente francês do CNPq), ele foi
capaz de estimular todos esses jovens a trabalhar duro para desenvolver câmaras de bolhas na
França.
De volta ao Brasil, meu pai continuou sua pesquisa em São Paulo. Como ele nunca se
preocupou em obter um diploma universitário, um amigo dele o aconselhou a se matricular em
4
Marlyse Meyer, também universitaria, especialista em literatura e cultura popular, foi professora na Unicamp e
na USP.
5
Large Hadron Collider, o maior acelerardor de particulas do mundo, num anel de 27 km de circumferência.
6
CERN, laboratorio internacional criado em 1952 para pesquisa de particulas elementares. Instalado na fronteira
franco-suiça perto de Genève.
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física. Meu pai costumava me dizer como era divertido ser ao mesmo tempo estudante e
assistente (ou monitor). Mas a dinâmica da ciência fez com que ele não completasse seu
diploma: em 1956, a Universidade de Pádua ofereceu-lhe uma bolsa de estudos de um ano para
desenvolver câmaras de bolhas. Então foi para a Itália. Para refinar este retrato, deve-se notar
que Jean (então perfeitamente trilíngue, falando além de alemão, francês e português sem
qualquer sotaque) aprendeu italiano, que ele dominou rapida e perfeitamente. Ele criou
amizades com outros físicos italianos, incluindo jovens que lhe permaneceram fiéis até sua
morte. Quando o ano em Pádua terminou, o retorno a São Paulo teria sido natural. Mas o Centro
Francês de Pesquisas Atômicas (CEA) ofereceu-lhe um cargo em Saclay, nos arredores de
Paris, para continuar sua pesquisa.
Este período foi um ou “o” das grandes colaborações internacionais, intercâmbios com
times nos EUA (o SLAC em Stanford fez-lhe uma proposta que ele recusou), Batavia perto de
Chicago, Serpoukhov na URSS, e especialmente o CERN que se tornaria o maior laboratório
de partículas elementares do mundo. Todos esses pesquisadores, competindo, é claro,
constituíram também uma comunidade de cientistas amigos, criativos, e para aqueles que tive
a chance de conhecer, curiosos, originais e alegres.
Era natural que meu pai fosse contratado pelo CERN, em um desses cargo de prestígio
de físicos permanentes. Além de um salário gratificante, havia um ambiente de físicos,
engenheiros, técnicos do mais alto nível, que meu pai muitas vezes elogiava.
Uma característica, certamente ligada às suas próprias qualidades, mas que também testemunha
um mundo desaparecido, é que meu pai nunca, em toda a sua carreira, teve que se candidatar a
qualquer posição que fosse. Como ele gostava de lembrar, ele nunca escreveu um Curriculum
Vitae em sua vida.
Depois de cinco anos em uma posição considerada como auge da carreira de um físico,
ele tomou uma decisão - não única, mas muito rara - de pedir demissão. Para ele, que era um
emigrante, e imigrante, sua gratidão - e ternura - pelo Brasil era imensa. Ao longo de seus anos
na Europa, ele pensara em voltar muitas vezes. As turbulências políticas e os sucessivos golpes
no Brasil adiaram seu retorno até o final de 1974.
DE PARTÍCULAS ELEMENTARES A ENERGIA NOVA E RENOVÁVEL: O
SEGUNDO RETORNO AO BRASIL
Jean Meyer queria voltar "para casa", pelo menos para este país, do qual ele se sentia
tão próximo. As ofertas eram inúmeras, mas ele teve a ideia de um projeto inovador e visionário,
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rompendo com sua atividade antiga. Sua experiência no CERN o convenceu de que seria
ilusório para o Brasil construir laboratórios em física de alta energia que fossem de posição
internacional. Por outro lado, nesta época do primeiro choque energético (1973) e do petróleo
caro, ele entendeu que o desenvolvimento de energia solar ou do hidrogênio, como vetores de
energia, seria benéfico ao Brasil, e nao se deveria esperar mais. Em 1974, de Genebra, onde
morava, ele passou meses em diálogo, com autoridades brasileiras e órgãos de financiamento,
para convencê-los. Um laboratório foi finalmente criado para ele, sob a sua direção, na
UNICAMP. Não estávamos falando de “Energias renováveis” como está na moda hoje. Sua
motivação era encontrar alternativas ao petróleo, não tanto limitar as emissões de gases de efeito
estufa. Mas devemos saudar esse salto que foi capaz de dar, desenvolvendo aos 50 anos um
campo novo para ele, deixando o prestigiado conforto do CERN. Na UNICAMP, ele
rapidamente se cercou e atraiu jovens físicos e engenheiros brasileiros de todo o país, mas
também da Itália, Suíça e outros lugares. Os campos incluíam a energia solar em todas as suas
formas, inclusive para a secagem de grãos. Ele entendeu a importância de encontrar substitutos
para o petróleo nessa agricultura que era então, e ainda é, uma das principais riquezas do Brasil.
Ele lançou um laboratorio sobre hidrogênio, onde se faziam testes de veículos de hidrogênio,
com muitos outros temas de energia alternativa.
FIGURA 2 - Cesar Lattes (descobridor do méson-pi), à esquerda, Jean Meyer, e duas colegas
da UNICAMP- 1976
Fonte: SIARQ-UNICAMP/Fundo: ASCOM
Como nas câmaras de bolhas vinte anos antes, meu pai não era o inventor dessas
tecnologias. Mas ele foi capaz de montar e estimular equipes, provar que era plausivel, e criar
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experimentos ou laboratórios que foram um marco e têm sido usados desde então.
Considerando-se que, em 2020, em outra escala, é claro, a Comissão Europeia lançava um dos
seus principais projetos sobre o "Hidrogênio Renovável", eu ficaria tentado em dizer como o
escritor francês Guitry em "Meu pai estava certo" (titulo de uma de suas peças de teatro), pelo
menos que ele teria sorrido ao ver que, 40 anos depois de seu trabalho, suas ideias estão fazendo
o seu caminho na Europa, com um novo impulso.
Sua formação internacional e habilidades também explicam que, paralelamente à sua
posição na UNICAMP, tenha sido nomeado, pelo Governador do Estado de São Paulo,
Presidente da poderosa FAPESP.
Além disso, em um campo adjacente ao de partículas elementares, foi um dos pioneiros,
juntamente com um punhado de colegas próximos, do projeto do primeiro laboratório
Síncrotron do Brasil. Essas instalações usam tecnologia de acelerador de partículas, girando
elétrons em anéis. Isso cria uma radiação (ou "luz") cujas características (frequência
monocromática, polarizada e de freqüência variável) permitem uma ampla variedade de ações
de pesquisas aplicadas que vão da física da matéria à biologia. Jean Meyer não foi o único a
sugerir que um desses laboratórios fosse criado no Brasil, mas contribuiu para as condições de
sua criação. Seu objetivo sempre foi o mesmo: unir talentos e incentivar o Brasil a se engajar
na ciência aplicada em vez da "Big Science", como são chamadas instalações como o CERN,
sobretudo, garantir que esses projetos se tornassem realizações concretas.
Inaugurado em Campinas, em 1997, este laboratório, do qual fora membro do Comitê de
Supervisão, ainda é o único em toda a América Latina. É considerado por alguns como o
principal desenvolvimento tecnológico do Brasil.
FRANÇA NOVAMENTE, E O RETORNO A PARTÍCULAS ELEMENTARES
Em 1980, ele retornou à França para se encontrar com sua segunda esposa, francesa. Do
ponto de vista profissional, era quase como um retorno às origens. O CNRS ofereceu-lhe para
chefiar o laboratório onde ele esteve em 1952, quando Leprince-Ringuet o dirigia.
Esta oferta foi feita a ele por seu amigo Pierre Lehmann, que era então chefe do laboratorio
IN2P3 do CNRS. Juntamente com Antoine Lévêque e meu pai, eles formaram um sólido trio
de físicos e especialmente amigos, testemunhas das profundas relações que são forjadas após
tantos anos de compartilhamento científico. Lehmann desapareceu no auge de sua vida.
Lévêque, por sua vez, fez um elogio justo e comovente no funeral do meu pai em setembro de
2010.
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Quando chegou a hora da aposentadoria, Jean continuou uma atividade voluntária na
Ecole Normale Supérieure, em Lyon. Sempre fiel à sua ideia de construir pontes entre mulheres
e homens, entre culturas, montou um programa para acolher e treinar estudantes estrangeiros
nesta prestigiosa Ecole Normale.
Depois de seu retorno à França, ele poderia ter pedido a cidadania francesa. Mas ele
tinha orgulho de ser brasileiro, mesmo tendo grande gratidão à França que, depois de uma
primeira tentativa menos hospitaleira, lhe ofereceu uma excepcional oportunidade humana e
cultural. Este envolvimento científico e suas contribuições foram reconhecidos quando ele foi
nomeado para o posto de “Chevalier de la Légion d’Honneur”. Uma distinção que ele raramente
mostrava, ja’ que ha’ muito tempo ele não usava terno ou paletó, mas da qual eu sei que ele
tinha muito orgulho.
DUAS OU TRÊS (OUTRAS) COISAS QUE EU SEI SOBRE ELE... E A RELAÇÃO QUE
NOS UNE
Um brilhante experimentador, ele era um físico entusiasmado e carismático, mas
também um der de homens. Muitos jovens cientistas no Brasil, França, Itália e Suíça
permaneceram próximos a ele muito tempo depois de sua colaboração ter terminado. Chamá-
los de discípulos seria exagerado. Eles não foram todos seus alunos; mas durante muito tempo
eles testemunharam a marca que ele tivera sobre eles, e essa fidelidade parece-me ir além da
mera amizade.
Quando Jean estava nos seus quarenta anos, ele começou a desenhar à tinta chinesa.
Desenhos que ainda estão nas paredes de sua familia e de alguns amigos. Lembro-me de como
ele desenhava quando vivíamos em Genève; ele ia à sua mesa de trabalho, punha um disco de
música brasileira, pegava suas penas Rotring, suas grandes folhas de desenho, e reproduzia a
partir de fotos e postais igrejas ou casas do Brasil ou de Dantzig, num estilo barroco. Como se
o exílio fosse parte integrante de sua sensibilidade. Dantzig, que ele aliás nunca mais quis rever.
Outra lembrança me permite evocar uma amizade, a que o levou a Georges Charpak
7
, seu
companheiro no CERN. Suas origens eram diferentes, Charpak tinha sido resistente na França
durante a guerra, mas ambos eram judeus imigrantes, e eles nasceram e morreram quase no
mesmo ano. Eles decidiram aprender chinês. Assim, todo fim de semana Charpak vinha em
nossa casa para ter aulas ministradas por uma jovem chinesa.
7
Georges Charpak, físico francês que obteve o Prêmio Nobel de física em 1992.
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Nos últimos anos de sua vida, meu pai foi diagnosticado com Alzheimer. Triste doença
igualitária. Ela não parou no fato de que ele era fluente em cinco idiomas, que ele tinha tido
uma carreira científica internacional, que tinha uma cultura que ia muito além da ciência, grande
apreciador de literatura, de música clássica e da pintura. Tampouco, a doença pessoas poupa
pessoas que viviam rodeados por uma rede de amigos em tantos países, entre cientistas, artistas,
intelectuais ou tantas pessoas com quem ele havia se ligado. Escrevendo estas linhas, vem-me
à tona ter lido na imprensa um comentario feito por Fernando Henrique Cardoso, antes de se
tornar Presidente da República, dizendo que "tinha visitado o CERN graças ao seu amigo Jean
Meyer".
Este pai teve uma grande influência sobre seus quatro filhos, cujas diferenças de idade
explicam porque cada um tinha um pouco do "filho unico". Aos 12 anos, ele me levou de férias
para Veneza por cerca de dez dias. Estávamos hospedados no apartamento de um amigo do
"Tempo de Pádua" que estava vazio. Foi para mim a descoberta de um país, de uma cidade, de
uma língua e da arte. Se eu havia ido a um museu antes, não me lembro. Mas suas histórias
sobre Carpaccio, Ticiano ou Tintoretto me transformaram para sempre. As suítes de violoncelo
de Bach foi ele quem me fez descobrir, Kathleen Ferrier também. E, claro, a física! Foi a escolha
dos meus estudos. Não foi tanto como professor, ainda que no último ano do meu bacharelado
ele tenha sido meu professor de relatividade. O que eu me lembro mais, é quando ele me
explicava em casa essa física do século 20. Aquela da qual dizia-se num gracejo “que se ela
parece obvia para alguém, é que esta pessoa não a entendeu”. E ele associava os fenômenos aos
homens que tinham sido seus atores. Alguns deles ele tinha conhecido, mas esse não era o foco
de suas observações. Ele gostava de me contar sobre o mistério da descoberta.
FIGURA 3 - Jean em visita a Bruno, quando este fazia seu doutorado em Edinburgh
(Setembro 1982)
Fonte: Arquivo pessoal
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Assim termina o retrato de um homem que atravessou o século, disciplinas e países.
Que, aos 15 anos, tinha que ir para o exílio duas vezes. Foi marcado por um profundo
distanciamento de tudo o que era material, preferindo as riquezas do conhecimento, da cultura
e da amizade. Impulsionado pelas reviravoltas da história, também foi impulsionado pelo
turbilhão científico da segunda metade do século XX. Sem superestimar seu papel, ele foi um
ator cujo papel teve sua importância.
Um retrato que não é objetivo, porque foi escrito por um filho sobre o qual ele teve tanta
influência, e que é também incompleto, tanto porque alguns elementos biográficos são incertos,
e registramos aqui apenas o que seria de interesse de um jansoniano. Esperando ter conseguido.
Bruno Meyer. Janeiro de 2022.
Recebido em: 24 de janeiro de 2022
Aceito em: 04 de abril de 2022