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FACULDADE DE EDUCAÇÃO DA USP: UM RETRATO E ALGUMA MEMÓRIA
Maria Cecilia Cortez Christiano de Souza
Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, Brasil
mccs@usp.br
RESUMO
Este artigo procura contemplar a crião da Faculdade de Educação da USP em 1970, tendo
como fio narrativo material memorialístico produzido pela autora. A partir daí, objetiva
contextualizar a emancipação da Faculdade de Educação da matriz original, a Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras da USP. Tendo como pano de fundo o processo potico vivido pela
Universidade nos anos que antecederam e se seguiram à Reforma Universitária de 1968, discute
as repercussões no plano interno da do Departamento de Educação e da Faculdade de Educação,
relacionadas à devolução do Colégio de Aplicação à rede pública, bem como ao esvaziamento
do Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo a partir de 1970.
Palavras-chave: Memória. Faculdade de Educação da USP. Colégio de Aplicação. Centro
Regional de Pesquisas Pedagógicas. Movimento estudantil.
FACULTAD DE EDUCACIÓN DE LA USP: UN RETRATO Y ALGUNA MEMORIA
RESUMEN
Este artículo busca contemplar la creación de la Facultad de Educación de la USP en 1970,
teniendo como hilo narrativo material conmemorativo elaborado por la autora. A partir de ahí,
pretende contextualizar la emancipación de la Facultad de Educación de la matriz original, la
Facultad de Filosofía, Ciencias y Letras de la USP. En el contexto del proceso potico vivido
por la Universidad en los años que precedieron y siguieron a la Reforma Universitaria de 1968,
se discuten las repercusiones internas del Departamento de Educación y de la Facultad de
Educación, relacionadas con el retorno de la Escuela de Aplicación a el sistema de educación
pública, así como el vaciando del Centro Regional de Investigaciones Educativas de São Paulo
a partir de 1970.
Palabras clave: Memoria. Facultad de Educación USP. Colegio de Aplicación. Centro
Regional de Investigación Pedagógica. Movimiento Estudiantil.
FACULTY OF EDUCATION OF USP: A PORTRAIT AND A FEW MEMORIES
ABSTRACT
This article seeks to address the creation of the Faculty of Education of USP in 1970, having as
narrative thread the memorialistic material produced by the author. From that point on, it aims
to contextualize the emancipation of the Faculty of Education from its original mold, the
Faculty of Philosophy, Sciences and Languages of USP. Having as background the political
process experienced by the University in the years preceding and following the University
Reform of 1968, it discusses the internal repercussions of the Department of Education and the
Faculty of Education, related to the return of the College of Application to the public system,
as well as to the emptying of the Regional Center of Educational Research of São Paulo from
1970 on.
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Keywords: Memory. Faculty of Education of USP. College of Application. Regional Centre
for Educational Research. Students' movement.
LA FACULTÉ D'ÉDUCATION DE L'USP: UN PORTRAIT ET QUELQUES
SOUVENIRS
RÉSUMÉ
Cet article porte sur la création de la Faculté d’Éducation de l'USP en 1970, à partir de matériel
mémoriel de l'autrice. Il cherche à mettre en contexte l’émancipation de la Faculté d’Éducation
à l'égard de la Faculté de Philosophie, Sciences et Lettres de l'USP, dont elle était auparavant
un département. Il en tisse la toile de fond représentée par les évènements politiques qui ont
précédé la Réforme Universitaire de 1968. Comme répercussions de ceux-ci il met en relief le
transfert du collège d'Application au système public d'enseignement et la dissolution du Centre
Régional de Recherches Éducationnelles de São Paulo à partir de 1970.
Mots clés: Mémoire. Faculté d'Éducation de l'USP. Collège d'Application. Centre Régional de
Recherche en Éducation. Le mouvement des étudiants.
Na primeira foto oficial da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, em
25 de fevereiro de 1970, ao lado da professora Gilda de Lima e do professor Heládio Antunha,
estou eu, pouco à vontade, como representante dos alunos. Presidindo a congregação, na
cabeceira da grande mesa oval, José Querino Ribeiro, o professor titular mais antigo. Em frente,
os professores Carlos Correa Mascaro, Roque Spencer Maciel de Barros e aquele que seria o
primeiro diretor da Faculdade, Laerte Ramos de Carvalho.
De algum jeito, a formalidade da foto permanece em alguns escritos que falam da
fundação da Faculdade. Os resumos institucionais, por exemplo, referem-se a episódios
anteriores, como a incorporação do antigo Instituto de Educação à Universidade de São Paulo,
em 1934, e às mudanças sucessivas de nomes: Faculdade de Educação, Seção de Educação,
Seção de Pedagogia e Departamento de Educação. Outras vezes fazem valer para sua criação a
data da publicação no Diário Oficial, 16 de dezembro de 1969. A primeira congregação é então
descrita como aquela em que se passou aos trâmites burocráticos da transformação do
Departamento da Educação em Faculdade de Educação, das antigas cadeiras em departamentos,
bem como aquela em que se tratou do encaminhamento de uma lista tríplice de titulares para a
escolha do novo diretor e, finalmente, das gestões necessárias à reabertura do Colégio de
Aplicação da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da USP. Ainda hoje, quando se
comemora, nos anos redondos, a Fundação da FEUSP, penso que o retrato talvez represente o
tipo de memória de que Freud falava, a memória encobridora ou a memória de tela, porque o
é fácil recordar esse tempo. No caso de haver muitas testemunhas e versões de um
acontecimento, é comum confrontá-las com a documentação escrita. Quando as testemunhas
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escasseiam, é sinal que se está na dobradiça do tempo, em breve os documentos escritos vão se
tornar fonte única para muitas histórias. Como aluna de primeiro ano, meu papel foi pouco
significativo, participei tangencialmente do que veio antes e do que veio depois. Muitos
outros vivendo no centro e nos bastidores dos acontecimentos, ou mediante pesquisas
minuciosas (BONTEMPI, 2017; SANTOS, 2015) foram capazes de analisar mais e melhor a
história do que ocorreu.
O material memorialístico sobre essa época é extenso. O professor Antonio
Candido, por exemplo, conta velhas histórias da Universidade de São Paulo com uma graça que
encanta ouvintes e leitores. Sabia narrar epidios fundamentais e detalhes pitorescos, além de
ser capaz de falar de momentos difíceis sem reabrir feridas desnecessariamente. Em um dos
anos mais terríveis da ditadura militar, 1972, Antonio Cândido (1991) publicou, originalmente
no jornal Opinião, um artigo em que fala, com a erudição costumeira, sobre aquilo que o terror
do Estado foi capaz de provocar. O terror vira os homens do avesso, diz ele, obrigando a todos
a encarar seus abismos internos. A repressão tem uma face bífida, continua. Uma é explícita
e solene, nutrida de medalhas e aparato, cerca-se de estatísticas e legislação para dar sossego a
boas almas e carreirismos bem-postos. A outra, insidiosa, mina a confiança entre as pessoas,
cria suspeitas, transformando o controle em desmando, a reserva em exibicionismo, a discrição
em bisbilhotice de consequências trágicas. Uma vez desencadeada, conclui, a repressão não
necessita de motivos, basta-lhe estímulos, vira máquina incontrolável.
As atas das reuniões universitárias são em geral formais e insossas porque são lidas,
corrigidas e aprovadas em reuniões posteriores. Desta forma, falas exaltadas e frases
inconvenientes têm a chance de serem eliminadas ou atenuadas. Dão poucos elementos para
imaginar os ânimos dos participantes, as idas, voltas e reviravoltas de posições. As atas que
antecederam e sucederam a reforma universitária de 1968, seja no Conselho Universitário, seja
em outros conselhos e congregações, o extensas. Exigiram grande trabalho de historiadores
que se ocuparam de deslindar fatos superpostos, misturados, intrincados e silenciados
(CESLESTE FILHO, 2006). o como se dar conta, em meio às discussões sobre a reforma
da universidade, do ataque e do inndio da sede da Faculdade de Filosofia na Rua Maria
Antônia, da instalão improvisada na Cidade Universitária, por sua vez, poucos meses depois
cercada por tropas do exército e da pocia, da invasão do Centro Residencial da USP, das listas
de expurgos de professores logo após o AI 5, do protesto do Conselho Universitário e da
cassação do próprio reitor. o se pode colocar em atas o silêncio. Nos aproximamos, sem
dúvida, de uma zona de perigo. As atas do Conselho Universitário dão a perceber que se
promulgou em grandes blocos e apressadamente a versão definitiva da Reforma Universitária
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de 1968 (SILVA,1999). No caso do antigo Departamento de Educação, um ano antes, as atas
transcrevem palavras duras, como aquelas que registram a polarização dos professores entre a
Cadeira de Didática e a Cadeira de Orientação Educacional, por conta de divergências em torno
da direção do Colégio de Aplicação. A crise desencadeada, levada à direção da Faculdade de
Filosofia e a instâncias superiores da Universidade e, finalmente, à Secretaria de Segurança do
Estado, culminou na expulsão, por meio de força policial, dos adolescentes que haviam ocupado
o Colégio. São fatos que a Professora Maria Amélia Americano, em entrevista, qualificou como
especialmente difíceis de recordar (JANOTTI, 20010). Logo depois, o conselho do
Departamento classificou como “persona non grata” a Professora Maria José Werebe,
obrigando sua transferência para o Instituto de Psicologia e depois para o exílio. Foram
desligados também os professores encarregados do antigo conjunto de Orientação Educacional,
além dos professores de Sociologia da Educação (SANTOS, 2015).
Tendo como pano de fundo a catástrofe que cercou o Ato Institucional no. 5, o papel
desempenhado pelos professores ligados à História e Filosofia da Educação e à Didática, tanto
no fechamento do Colégio de Aplicação (antes de qualquer coisa, um fracasso pedagógico)
quanto nas crises posteriores da Universidade, é possível imaginar o isolamento da Faculdade
de Educação em relação a outras unidades ligadas à antiga matriz, a Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras, e o prejuízo geral acarretado. Sem dúvida, o distanciamento datava de um
preconceito de origem, quando professores do antigo Instituto da Educação foram absorvidos
pela recém-criada Universidade de São Paulo sem necessidade de se submeter aos rigores dos
concursos e provas como os demais docentes, causando grande ressentimento (BONTEMPI,
2013). A repercussão do fechamento do Colégio de Aplicação, a posição de professores do
Departamento de Educação em relação à Reforma Universitária, principalmente expressa na
rejeição da ideia de Comissões Paritárias, deram legitimidade potica a antigos preconceitos e
incompreensões mútuas. A fundação da Faculdade de Educação, desse modo, está mergulhada
em clima sombrio. Vigorava naquela reunião que presenciei, à esquerda e à direita, olhares
atormentados ou baixos, um ar pesado, a sensação de colocar fundamentos em terra arrasada.
Mesmo hoje, é preciso haver comedimento e esforço para ganhar distância daquele momento.
Como no poema de Fernando Pessoa, quando se está no alto mar, de longe a costa são linhas
geométricas, de perto, se veem arvores e pássaros, e o lado emaranhado da vida.
As memórias sobre essa época são rias e contraditórias. Assim como podemos seguir
as trilhas da construção da memória, podemos também percorrer o labirinto do esquecimento.
Com perdão pelo exagero, penso no estratagema de Henri Christophe, na Revolão do Haiti,
para eliminar seu rival, o insubmisso e radical Jean Baptiste Sans Souci. Uma vez no poder,
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Henri Christophe mandou construir um grandioso palácio perto do lugar em que matara Jean
Baptiste, ocultando seu túmulo nas muralhas do castelo. Michel-Ralph Troillot (1995),
antropólogo haitiano que analisou o fato, diz que não há como saber se foi em homenagem ao
inimigo que o palácio foi copiado do palácio de Frederico II da Prússia, o Sans Souci, ou se
Henri Cristophe estava confiante que, na confusão que se criaria entre historiadores pela
sobreposição dos nomes, seu inimigo seria fatalmente esquecido. Do lado oposto, o das tropas
britânicas, espanholas e francesas que lutaram contra a independência do Haiti, o artifício de
apagamento da memória foi o conselho dado pelo Abade De Pradt, cumprido durante muito
tempo pelos países escravistas da América: que não se fale da Revolão do Haiti, mas se não
houver outro jeito, que se fale e muito do sangue que derramou.
Havia razões de sobra para a desolação reinante na primeira congregação, embora
naquela época, alguns dos fundadores da Faculdade não estivessem do lado dos mais atingidos
pelo AI 5. Também não se pode dizer que estivessem do lado dos vencedores. Suas posições
políticas eram bem próximas às do jornal “O Estado de São Paulo”, para o qual escreviam
editoriais ligados à educação. Ora, o 13 de dezembro de 1968 assinala o rompimento deste
jornal com o governo militar. Depois do chamado golpe dentro do golpe, lio de Mesquita
Filho havia publicado o editorial Instituições em frangalhos”, provocando a apreensão do
jornal. O Estadão se recusou à autocensura, por isso, uma banca de censores foi instalada na
redação. Até a retirada dos censores, o jornal não publicou editoriais. Os professores da antiga
cadeira de Filosofia da Educação não puderam mais se manifestar através do jornal
(BONTEMPI, 2001). O Professor Laerte Ramos de Carvalho tinha protagonizado um dos
episódios mais draticos da repressão que se seguiu ao golpe de 1964, a crise da Universidade
de Brasília. Ao contrário de Zeferino Vaz, que se afastou da reitoria assim que se anunciou a
disposição dos governos militares de dissolvê-la, o professor Laerte, que o sucedeu, se envolveu
numa queda de braço com professores, que acabou ocasionado a demissão coletiva e a ocupação
violenta da Universidade por tropas da polícia e do exército. Outras crises se seguiram
(CELESTE FILHO, 2006). De volta a São Paulo, em 1967, elaborou pareceres críticos às
concepções finais da Lei de Diretrizes e Bases em relação ao ensino superior, teve atuação
significativa no Conselho Estadual de Educação e na Reforma Universitária, manifestando-se
contra a instituição da cátedra e contra a fragmentação da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras. Antes da reitoria na Universidade de Brasília, tinha sido diretor do Centro Regional de
Pesquisas Educacionais de São Paulo (CRPE), destacando-se pela reestruturação do Centro,
pela ampliação de cursos e implementação de assessorias técnicas (PILETTI, 1988). Poucos
anos antes, no final da década de 50 e início dos anos 1960, o CRPE de São Paulo tinha
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participado como peça central do debate sobre os rumos da educação brasileira. Por meio de
um manifesto “Mais uma vez mais convocados...” o CRPE de São Paulo iniciava a luta pelo
ensino público universal, obrigatório, laico e gratuito, ideia já esboçada no “Manifesto dos
Pioneiros”, mas que se tornava premente graças ao empenho e engenhosidade potica de Anísio
Teixeira (BONTEMPI, 2020). Na ocasião, havia se cristalizado, por parte da Igreja e de
empresários, o projeto de privatização do ensino, desobrigando o Estado dessa reponsabilidade,
em nome da liberdade de ensino, conforme reiterava o deputado Carlos Lacerda. A defesa do
ensino público se fazia então sensível, unindo intelectuais de amplo espectro político, de liberais
históricos ligados ao jornal “O Estado de o Paulo” até escritores calicos, lideranças
socialistas, deres sindicais, deputados de diferentes partidos poticos.
A Campanha em defesa da Escola Pública, como foi chamada, proporcionou a
oportunidade de intelectuais encontrarem um denominador comum e, na arena blica,
desenvolver atuação intensa, por meio de palestras, viagens, debates, conferências, publicação
de artigos etc. Logo, as discussões que acompanharam a tramitação das leis de Diretrizes e
Bases de 1961 se ampliaram e aglutinaram ao redor de seus temas diferentes visões, abrangendo
nomes como Florestan Fernandes, Fernando de Azevedo, Almeida Júnior, Anísio Teixeira,
Nelson Werneck Sodré, Cesar Lattes, Ruy Coelho, Fernando Henrique Cardoso, Sérgio
Buarque de Holanda, Darci Ribeiro, Laerte Ramos de Carvalho, João Eduardo Villalobos,
Roque Spencer Maciel de Barros, Maria Amélia Americano Domingues de Castro José Arthur
Gianotti, Ruth Cardoso, Oracy Nogueira, Cecilia Meireles, Celso Beiseguel, José Mário Pires
Azanha, Perseu Abramo, Caio Prado Júnior e muitos outros (AZANHA, 1999). Foram as
lembranças dessa campanha, junto com as memórias de formação na antiga Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras, que o golpe de 1964 e o AI 5, aumentando ao máximo a voltagem
ideológica, colocaram em curto-circuito, estilhaçando em posições radicais o que antes traduzia
certa continuidade política de inspiração iluminista.
Na época mais dura da repressão, algumas questões não podiam ser pensadas com a
necessária cautela. O mundo se dividia claramente entre esquerda e direita, embora já se
soubesse que podiam existir esquerdistas mesquinhos e direitistas capazes de grandeza. Na
ditadura era preciso manter posições categóricas, e mesmo a crítica a posições extremistas de
esquerda se tornava paradoxal quando militantes de esquerda eram presos e assassinados. Não
era visível para mim, nessa época, diferenças entre o que os professores Laerte Ramos de
Carvalho e Roque Spencer Maciel de Barros pensavam. Achava que tinham as mesmas
posições, tanto por suas posições, quanto pelo fato de coincidirem em manifestar abertamente
seu anticomunismo. Fundamentavam suas opiniões em aula recomendando os romances de
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George Orwell e os livros de Arthur Koestler; o anticomunismo aparecia sob a face anti-
stalinista e antitotalitária. Não citavam o fascismo como regime totalitário, o que para mim
bastava para colocá-los no mesmo plano. Quando eu interrogava professores mais próximos,
como os professores Celso Beisiegel e JoMário Pires Azanha, eles distinguiam o professor
Roque como um liberal clássico e o professor Laerte como mantendo no fundo a visão
integralista de sua juventude, embora tivesse tido na direção do CRPE bom convívio com
professores e pesquisadores de esquerda. Eu ficava chocada com essas qualificações,
principalmente em relação à última, porque o Professor Celso e o Professor José Mário
manifestavam grande afeição pelo Professor Laerte, dizendo conhecer dele uma face sensível e
poética. O fascismo dos anos 1930 - 1940 foi sereia poderosa, me diziam, capaz de atrair
intelectuais como Tristão de Athayde, Miguel Reale, Roland Corbusier, Câmara Cascudo,
Manuel Bandeira e muitos outros. Anos mais tarde, lendo um capítulo de Teresina etc. de
Antonio Candido (1980), vi confirmada a percepção de meus professores.
Voltando à cena de fevereiro de 1970: como aluna do primeiro ano, tinha sido eleita
representante; os alunos das turmas mais velhas tinham vivido o desgaste da participação nas
comissões paritárias, na tentativa frustrada da Universidade propor sua versão da Reforma
Universitária. Daí que ouvia, a propósito de qualquer assunto, nessa congregação, palavras
enfáticas contrárias à participação de estudantes, sobretudo contra a experiência das paritárias.
Todavia, embora no primeiro ano de Pedagogia, estive também no curso de Ciências Sociais.
Até 1968, o curso de Ciências Sociais era ministrado na Rua Maria Antônia. Em 1966, como
outros nessa época, tinha a sensação de ter chegado tarde, numa espécie de fim de época
dourada. Os anos anteriores ao golpe de 1964 eram simultaneamente festejados e criticados,
conforme as conversas entreouvidas no grande saguão à entrada do prédio, no qual grupos da
esquerda tinham assento marcado. A efervescência presente na Rua Maria Antônia repercutia
as produções do teatro, do cinema, dos festivais de música popular. Traduziam a euforia de
estar vivendo um momento extraordinário, de forma muitas vezes onipotente pelos estudantes,
críticos de qualquer manifestação de apreço ao passado. As alas sisudas apelidavam de
esquerda festiva” aqueles que o paravam de cantar a Marcha da Quarta Feira de Cinzas,
classificada como hino da nostalgia contrarrevolucionária”. Eram surdos aos apelos dos
professores que procuravam chamá-los à realidade, buscando recuperar a história recente fora
de esquemas mecânicos dos jornais mimeografados pelos Centros Acadêmicos. Estavam
abertas as controvérsias sobre a Revolução de 30, o período Vargas e o teor das mudaas
sociais. Ecos de Paris chegavam até nós, naquele tempo o se interrogava os velhos,
professores ou não. Como a vez em que Edgard Laurenroth procurou os alunos de Ciências
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Sociais para conversar. Julvamos que se podia dar atenção a quem tivesse menos do que
trinta anos. Isso me fez lembrar a frase que meu sogro,cero Christiano de Souza, escreveu à
margem de um parágrafo do livro Eram os deuses astronautas? “é de uma estultice
incomensurável”.
Ainda hoje, a sombra que a repressão potica projetou sobre os curtos anos de relativa
liberdade entre dois golpes parece fazer esquecer a intensidade da vida para aquela porção de
jovens de classe média. As cenas que permanecem na memória coletiva são os festivais de
música popular. Em 1967, com a entrada da guitarra elétrica de Gilberto Gil no “Domingo no
Parque” e o “Alegria, alegria” de Caetano Veloso, contrastando pela violência que cercou o
ataque aos atores da peça “Roda Viva” de Chico Buarque e da explosão de interpretações
trazidas pela encenação da peça de Oswald de Andrade “O Rei da Vela” no Teatro Oficina,
pelo discoTropicália”, pelos filmes de Glauber Rocha e pela música dos Beatles. Amostras de
percepções ricas e disparatadas de lembranças tornadas homogêneas pelos enquadramentos da
ditadura.
Eu morava na Rua Cesário Mota quando me avisaram que estava acontecendo uma
guerra entre alunos do Mackenzie e da Filosofia, um estudante tinha sido morto, houve um
incêndio. Essa batalha, que dividiria a história da Universidade de São Paulo, vinha no caudal
da radicalização que impusera ao movimento estudantil a ditadura que, se antes deixara espaço
para a expressão cultural e potica de esquerda, caminhava no sentido de se tornar cada vez
mais truculenta. O que se passou depois foi um pesadelo, cujo início podia ser datado: o dia
que o professor de Ciência Potica e Chefe da Redação do “Estado de São Paulo”, Oliveiros
Ferreira, desceu até a calçada da rua Major Quedinho, onde ficava o jornal, para nos dizer que
Habeas corpus e direitos civis: caput”.
Conhecia orientadores e estagiários do Departamento de Educação quando fui aluna
do Colégio de Aplicação. Não me lembro exatamente o que pensei na época, que era
insuportável passar pela Rua Maria Antônia. Racionalizando depois, acho que estava
procurando uma profissão. E podia jogar para adiante questões que não encontrava resposta;
acreditava que o futuro ia apontar saídas, que haveria nele a redução da sensação de absurdo,
no mínimo fazendo possível mergulhar em estudos capazes de fazer esquecer por algum tempo
a potica. Amigos constantes ajudavam a partilhar notícias de horror com um cotidiano
enjoativo, simbolizado pela moda meio brega dos móveis falsos ou estátuas roubadas de igrejas
barrocas, que decoravam as salas de espera dos bancos e das empresas. O medo mortificava,
colegas buscavam fugir da realidade pela leitura de místicos, misturas vagas de hinduísmo,
saber sufi, medicina chinesa e práticas divinatórias. Êxtases e viagens psicodélicas não
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bastavam para diminuir o luto e o medo. Tínhamos inveja daqueles que decretavam a própria
inocência, viravam hippies ou então subiam nas carreiras profissionais e enriqueciam. O Brasil
ganhava a Copa do Mundo e obtinha dinheiro do exterior, à medida que a ditadura se tornava
sanguinária. As notícias de mortes e torturas chegavam e produziam medos sem contornos.
Soube depois que a Faculdade de Filosofia esteve a pique de reproduzir o que acontecera com
a Universidade de Brasília logo depois do golpe: os professores pensaram em pedir demissão
coletiva diante dos expurgos do AI 5, sendo contidos por Paulo Emílio Salles Gomes, que disse
ser isso exatamente o que os setores reacionários queriam e que era dever de todos permanecer
(CANDIDO, 2017).
Ter sido aluna do Colégio de Aplicação era uma das razões para estar naquela primeira
congregação da Faculdade em 1969. Os ginásios experimentais de São Paulo, nos os anos de
1950 e 1960, tinham inaugurado um movimento de renovação que propunha sacudir a rotina
dos antigos estabelecimentos secundários públicos, criando unidades que propiciassem novas
formas de ver, experimentar e pesquisar o ensino. Era uma forma de os licenciados recém-
formados pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo de
alguma forma se afastarem do projeto uspiano inicial de formar elites condutoras, procurando
exatamente no ensino a transformação social desejada. Chamava-se a atenção para a revolução
trazida pela substituição dos bacharéis de Direito pelos licenciados em Geografia e História,
dos antigos seminaristas pelos licenciados em Letras, de engenheiros pelos licenciados em
Matemática e Física, de médicos pelos licenciados em Biologia. Era também uma forma de
garantir aos assistentes de ensino que viviam em torno dos catedráticos a possibilidade de serem
comissionados, isso é, de receberem o salário de professores secundários enquanto exercessem
o papel de assistentes ou de auxiliares de ensino na universidade. Antes da Reforma de 1968,
a estrutura de cátedra permitia ao titular se cercar de assistentes, muitas vezes trabalhando pro
bono, isto é, sem remuneração. Desta forma, a possibilidade de trabalhar como professor
secundário nos ginásios públicos da cidade consistia para alguns em degrau na carreira de
professores universitários.
Todavia não se formam adolescentes entusiastas apenas por interesse burocrático ou
por sobrevincia. Soube depois que foram professores do ensino secundário Laerte Ramos de
Carvalho, João Eduardo Villalobos e Roque Spencer Maciel de Barros, para falar apenas de
alguns que conheci na faculdade. Não se tratava de cumprir destino de fracassados, como os
profissionais liberais que se “dedicavam ao magistério secundário antes de se tornarem
fazendeiros”, segundo comentário irônico de um professor da Missão Francesa (CORDEIRO,
2018). Professor João Eduardo Villalobos, como professor de ginásio, aparece nas memórias
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de José Arthur Gianotti (1988) e de Marilena Chauí (2019), como determinante na escolha do
curso de Filosofia. Fernando Henrique Cardoso (1988) recorda que Roque Spencer Maciel de
Barros foi um colega que o ajudou a elaborar um difícil trabalho sobre filosofia pré-socrática,
nos tempos em que a Filosofia ainda ocupava o último andar da Escola Caetano de Campos, na
Praça da República.
Foi a ampliação da demanda pelo ensino secundário propedêutico um dos fatores que
desencadearam a crise universitária de 1968. A reforma universitária era a grande questão do
movimento estudantil. Seu início, na chamada “questão dos excedentes”, vinha do
reconhecimento, quase unânime, de que a Universidade necessitava ser reformulada, entre
outras coisas porque não conseguia absorver os alunos aprovados nos exames vestibulares, por
conta da escassez de vagas. A demanda pela ampliação de vagas foi ficando cada vez mais
premente, caudatária pressão que a sociedade fazia pela criação de escolas secundárias blicas.
O vestibular não era seletivo; ano após ano acumulava-se um número de alunos que embora
tivessem sido aprovados, o conseguiam matrícula. O Conselho Universitário tinha aprovado
a criação de uma comissão para a reforma, subdividida para cobrir a realidade dos diferentes
cursos. Em seguida, o movimento estudantil pressionou para que essas comissões fossem
paritárias, isto é, que tivessem representação igual os estudantes, professores e funcionários da
Universidade. Organizaram-se comissões em cada unidade e foi designada uma comissão
coordenadora. Essa comissão desagradou parte do Conselho Universitário, desencadeando uma
série de crises que culminaram nas cassações que atingiram 26 professores que se colocavam
em oposição ao então Ministro da Justiça e redator do AI 5. Diante de protestos do Conselho
Universitário, o expurgo atingiu o próprio reitor, o Professor Hélio Lourenço. Em 1969, o reitor
interino, Alfredo Busaid, fez passar uma reforma que coincidia em pontos essenciais com
aquelas impostas às universidades federais pelo governo militar. Dentre outras medidas,
resultou no desmembramento da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras em diversas
unidades, entre as quais a Faculdade de Educação. A instalão no campus da Cidade
Universitária materializou fisicamente essa segmentação: ficaram no centro da cidade apenas a
Faculdade de Direito e Medicina. As outras unidades foram instaladas na antiga fazenda do
Butantã, muitas de forma improvisada. A Faculdade de Educação estava lá, quase à entrada
da Cidade Universitária, desde o tempo em que a esta última era um ermo urbano isolado do
resto da cidade pela lama e pela falta de transporte. A Faculdade ocupava as salas do Centro
Regional de Pesquisas Pedagógicas de São Paulo, o CRPE.
Eu não conheci o CRPE de São Paulo em pleno funcionamento. Quando entrei, em
1969, adivinhei sua importância pelos vestígios que deixara na arquitetura. Uma vez pude
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percorrer as salas vazias, algumas cheias de móveis empilhados, artefatos pedagógicos, câmaras
escuras, arquivos de madeira, estantes sem livros, mesas cujos tampos subiam, leitoras de
microfilmes, prensas, mimeógrafos, ilhas de edição. Eu me perguntava sobre o que teria
ocorrido para que tudo isso tivesse sido abandonado. Eram perguntas que eu fazia, na época,
sem querer saber as respostas, aturdida pelas destruições em série. Lembrava o porão da casa
da minha avó, professora, com as lousas de ardósia que havia lá. Lembrei-me do quanto me
arrependi por não ter sabido guardar uma delas. Tinha a mesma sensação, exponenciada,
quando percorria os corredores do CRPE. Pelos intricados caminhos da burocracia, soube mais
tarde que não se decidia se o prédio que pertencia ao Ministério da Educação, federal, podia ser
passado à Universidade de São Paulo, estadual, e assim jazia, como uma herança vacante.
Um jardim interno cercado de vidro, com uma fonte no centro ao lado de folhagens e plantas,
coberta de poeira, fazia a passagem entre o prédio da frente e o prédio de trás, em que tínhamos
aula; lembro-me das ratazanas que andavam pelo jardim.
mais tarde tive ideia do que consistiu na inspiração de Anísio Teixeira, que tinha
criado diversos Centros Regionais pelo país, e do papel de Fernando de Azevedo, como seu
primeiro diretor. Antonio Candido (2017) salienta que o Doutor Fernando (só ele, na
Universidade, podia ser chamado pelo título de doutor) tinha uma qualidade rara entre os
intelectuais: a coragem de assumir riscos, de não rejeitar responsabilidades e de levar adiante
projetos que para muitos eram figuras de retórica. Ler então Fernando de Azevedo significou
entender que o setor de Educação teve origem paralela e algumas vezes conflitante com o núcleo
formado pela Faculdade de Filosofia. Assim, foi notável o feito do CRPE de São Paulo - o fato
de aí terem se gestado projetos conjuntos, ligando pesquisas a políticas públicas, além de cursos
envolvendo docentes de várias formações, especialmente pesquisadores da Sociologia,
chefiados por Florestan Fernandes. Talvez tenha sido uma das instituições em que mais se
tornou palpável o lugar que a universidade devia ocupar na sociedade.
No entanto, tendo sido responsável pela existência da Escola de Demonstração, o
CRPE de São Paulo, na pessoa de Fernando de Azevedo, foi muito reticente em relação ao
estabelecimento de um Ginásio de Aplicação. Argumentava que as classes homogêneas, com
número restrito de alunos, mantidas à sombra da Faculdade de Filosofia e mergulhadas na sua
atmosfera, o eram procias a serem locais de estágio de licenciados. Isto é, um ginásio
modelo e um ginásio comum não podiam conviver. Nesse aspecto, Fernando de Azevedo
discordava da estratégia imaginada por Júlio de Mesquita Filho. Desde a fundação da
Universidade de São Paulo, ele previa um ginásio modelo, capaz de sanar a precariedade da
formação secundária dos ingressantes da Faculdade de Filosofia. Criou-se para isso o Colégio
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Universitário, de curta duração. A ideia da criação do ginásio só viria a se concretizar em 1956,
quando o antigo Ginásio Roosevelt foi transformado em Colégio de Aplicação. Esse ginásio,
por sua vez, nada mais era, sob outro nome, do que o antigo Ginásio do Estado, criado por
Bernardino de Campos, logo após a Proclamação da República (SANTOS, 2015). Apesar dessa
linhagem, o Colégio de Aplicação quase foi esquecido. A partir de 1990, porém, obras
memorialísticas, livros, teses e artigos de grande qualidade recuperaram essa experiência, muito
embora alguns tivessem um tom crítico. Havia certo ressentimento, na época, ao apontar as
condições excepcionais legadas ao colégio era usado o argumento comum de se considerar
privilégio o que deveria ser pensado como direito. Outras vezes, ao dizer que todo o ensino de
nível secundário daqueles anos era elitista, o Colégio de Aplicação, como estabelecimento
público, caia na fossa comum. Como acontece em outros casos, uma realidade marcada pela
precariedade é considerada majoritária, e porque disseminada, normal e, se nessa “normalidade
anormal” existir exceção, ela deve ser eliminada.
Mas não é fácil imaginar o que é uma escola pública de grande qualidade sem ter tido
essa experiência. O Colégio de Aplicação proporcionava a possibilidade. Claro, como diz Chico
Buarque, na minha memória seus professores estão dando aulas cada vez melhores. Mas o
Colégio de Aplicação era um caso entre muitos estabelecimentos de ensino renovado público
desse tempo. Havia neles o empenho de instalar nos alunos a aversão a manuais, o mandamento
de nunca subestimar a inteligência e a capacidade de aprender de professores e alunos. Os
estudantes do antigo colegial eram estimulados a percorrer as bibliotecas da cidade em busca
de livros, a consultar fontes originais de pensamento, a encarar o estudo como tarefa
significativa e a ter sempre em conta a necessidade de fundamentação para que se instalasse um
debate, evitando opiniões apressadas. Os professores supervisionavam seminários e
estimulavam discussões. Ensinavam a não interromper a palavra do outro, a efetivamente
escutar o que o outro diz, jamais levar a discussão para o plano pessoal, controlar paixões, não
tirar o foco daquilo que estava em pauta, a reconhecer sofismas, raciocínios mancos,
generalizações abusivas, retórica vazia. Não se deleitar na escuta da própria palavra, não abusar
da consideração e da escuta do outro. Muito tempo depois, pude encontrar nos cadernos de Jean
Maugué, revelados por Denilson Cordeiro (2008), nos registros da sua docência no curso de
Filosofia da USP nos anos 1930, as rzes dessa tradição, revivida e recriada por professores
jovens e brilhantes, como Maria de Lourdes Monaco Janotti, Maria Sabina Kundman, Pedro
Paulo Perides, Maria Alice Vergueiro, Francisco de Assis e tantos outros.
Como disse, o Colégio de Aplicação era apenas um exemplo de escola renovada. Nos
anos 1950, a presença da escola pública de qualidade marcou muitas cidades brasileiras. Seu
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surgimento esteve relacionado a um contexto em que o país parecia ter se tornado, segundo
ironia famosa de Roberto Schwartz, irreconhecivelmente inteligente. A política
desenvolvimentista e de pleno emprego dos anos Kubitschek proporcionava trabalho aos
egressos do ensino superior e fazia acreditar que o antigo projeto de democratização por meio
da educação parecesse próximo.
No clima do final dos anos 50 e início dos anos 60, em que se buscava a direção potica
das mudanças econômicas, sociais e culturais, nos CRPE e nos Colégios Experimentais,
professores e intelectuais assumiram a missão pedagógica de convencer a sociedade da
adequação de seus projetos. Estavam seguros de ter a missão de desempenhar, como categoria
social específica, um papel decisivo nas mudanças poticas e sociais que pareciam se avizinhar.
Dessa forma, procuravam se desvencilhar da trama original uspiana de desprezo pelas massas
e formação de elites condutoras”; era preciso ir ao “encontro do povo”, “ensinar e se deixar
ensinar por ele”. Professores e pesquisadores procuravam não elaborar os postulados
ideológicos que iriam presidir os caminhos da educação brasileira, como a participar
diretamente dela. Em diferentes posições, desde aqueles que em revide às derrotas de 1924,
1930 e 1932, defendendo um “saber desinteressado”, achavam que saberiam também
incrementar o ensino secundário em moldes liberais, até aqueles que diante da radicalização
política, consideravam que poderia haver uma universidade democrática quando o ensino
público de qualidade estivesse efetivamente ao alcance de todos. o se tratava, nesse contexto,
de formar apenas escolas públicas de qualidade, nem de levar às últimas consequências
instituições de pesquisa que associassem, segundo a inspiração manheimiana, ciência, educação
e planejamento, mas mostrar até onde se poderia chegar, quando intelectuais efetivamente
envolvidos estivessem nelas engajados. Por essa razão, eu acreditava que haveria possibilidade
de ressurgimento do Colégio, conforme pauta da congregação de fevereiro de 1970. O que se
fez nessa congregação foi instituir uma comissão que nunca se reuniu, para depois instituir
outra, depois outra, até que, denunciado o acordo entre a Universidade e a Secretaria de
Educação e devolvido o colégio à rede pública, a solução encontrada foi dar esse nome à Escola
de Demonstração, que passou a se chamar Colégio de Aplicação, agora ligado à Faculdade de
Educação da USP.
Durante algum tempo, achei que a experiência de ensino renovado tal como praticada
no Colégio de Aplicação tinha se perdido, uma a mais das heranças vacantes da USP. Assim
como o Centro Regional de Pesquisas Pedagógicas, metaforizado no jardim abandonado, ficou
muito tempo congelado na perplexidade que causou o dia em que soubemos da morte de Anísio
Teixeira. Todavia, o tempo me convenceu de que as escolas e as instituições de pesquisa não
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são prédios: são pessoas. E as pessoas continuaram a trabalhar e a ensinar. Celso Beisegel e
José Mário Pires Azanha, integrantes do CRPE, e José Carlos Dias, antigo diretor do Colégio
de Aplicação, foram integrados como professores na Faculdade de Educação, tendo papel
decisivo em vários momentos de sua história. Ensino, pesquisa e serviços à comunidade foram
continuados pela Faculdade de Educação. Aos poucos fui revendo também outras queses e
apreciando o que antes tinha um atrás. Pude me encantar com as aulas do professor João
Villalobos, quando falava da filosofia pré-socrática e fazia sonhar com o universo que se
interrogava sobre a natureza do ser, ou imaginava que o mundo fosse feito de números, mundo
soçobrado pela descoberta de números irracionais, ou permitia imaginar a vida como uma água
passando sob os pés de pessoas mutantes. Achava interessante saber que a Universidade de
São Paulo foi fundada por liberais e que liberais também podiam sair a campo em defesa da
escola blica. Gostava quando o Professor Roque Spencer Maciel de Barros esquecia o
anticomunismo e a guerra nuclear para falar da Ilustração Brasileira e me envolver com a leitura
de Joaquim Nabuco. O professor João Gualberto, ao tornar palatáveis os meandros legais em
que se mergulhava a educação brasileira, lembrava a alegria dos participantes da Semana de
Arte Moderna. Também gostava da rapidez da fala de Maria da Penha Villalobos e das suas
discussões sobre a reforma protestante contrapondo o pensamento de Lutero e de Calvino à
sabedoria tolerante de Erasmo de Roterdã. E das professoras das matérias de Didática
mostrando que essas disciplinas caracterizavam o curso de Pedagogia e que eram fundamentais
para dar aos professores iniciantes suas ferramentas de trabalho.
A história posterior mostrou que um passado sombrio não precisava ser visto como
derrota. Encarnava antes um conjunto de possibilidades, uma delas tinha acontecido, outras
o, ainda outras foram efêmeras, o que não impedia que mantivessem a inspiração que
alimentou a posteridade de ideias interessantes, realizações do que antes parecia permanecer no
reino das utopias, sonhos reelaborados e outras invenções. A sensação que tive no começo, um
pessimismo que julgava incurável, provou que o pessimismo também pode ser innuo e ver o
futuro como catastfico pode ser convite à ircia e à falta de imaginação. A fundação da
Faculdade de Educação não pode ser vista como sendo o ponto de partida do mal que agora
acontece, muito menos do que de generoso e acolhedor naquilo que construiu depois. Mas
girar o periscópio para o passado pode ser interessante para saber nãoo que aconteceu como
o que não aconteceu; rever tempos de inquietações que sonharam futuros possíveis pode ajudar
a ver além das aparências.
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Recebido em: 28 de setembro de 2021
Aceito em: 29 de novembro de 2021