ISSN 2447-746X
DOI: 10.20888/ridpher.v7i00.16000
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Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 7, p. 1-7, e021012, 2021.
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RESENHA
COSTA, Ana Luiza Jesus da. O educar-se das classes populares no Rio de Janeiro
oitocentista: escolarização e experiência. Jundiaí [SP]: Paco, 2019. 364p.; 21cm.
Simone Maria Magalhães Melean
Universidade de São Paulo, Brasil
Instituto Federal de São Paulo, Brasil
magalhaessimone1623@gmail.com
EDUCAÇÃO POPULAR E EDUCAÇÃO ESCOLAR SOB O OLHAR DE ANA LUIZA
JESUS DA COSTA
Em O educar-se das classes populares no Rio de Janeiro oitocentista: escolarização e
experiência, Ana Luiza Jesus da Costa analisa diversas iniciativas populares de educação e de
instrução organizadas por associações mutualistas e filantrópicas, presentes na sociedade
fluminense da segunda metade do século XIX (COSTA, 2019, p. 18).
Na busca por compreender a apropriação da educação pelas classes populares, Ana
Luiza estudou experiências educacionais num contexto definido por ela como o de “expansão
do fenômeno associativo vivido pela sociedade oitocentista fluminense de forma ampla” (p.
20). Desse contexto de expansão do associativismo Ana Luiza destacou cinquenta e duas
associações de auxílio mútuo, beneficentes e da impressa operária, do período de 1835 a 1912,
para entender como as classes populares se organizavam para criar espaços formativos, bem
como identificar o sentido da educação e a participação das classes populares para incidir nas
medidas políticas e sociais da educação naquele período (COSTA, 2019, p. 20).
Originário de sua tese de doutoramento
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, o livro articula diversas fontes, organizadas
pela autora em quatro grupos: a) associações de trabalhadores, tanto de auxílio mútuo e
beneficência como as de resistência; b) periódicos da imprensa operária; c) abaixo-assinados
de moradores e chefes de família requisitando ao Ministério do Império ou à Previdência da
Província a abertura ou reabertura de escolas, códices sobre escolas subvencionadas e os
relatórios dos presidentes da província do Rio de Janeiro; e, d) textos normativos como o
Decreto nº 3029 de 09 de janeiro de 1881, que trata da reforma eleitoral e, o Decreto nº 8213,
de 13 de agosto de 1881 que implementa a Lei 3029, que trata da legislação eleitoral
(COSTA, 2019, p. 22).
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O educar-se das classes populares no Rio de Janeiro oitocentista: escolarização e experiência, tese defendida por
Ana Luiza Jesus da Costa, em 2012, na Faculdade de Educação da USP.
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Baseada nos estatutos das associações, relatórios de gestão, pareceres, legislação,
artigos da imprensa dos trabalhadores, a autora vai tecendo sua narrativa, que procura esclarecer
e demonstrar ao leitor e leitora a complexidade que envolve as experiências educacionais das
classes populares do Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX, desmistificando assim
as análises que tendem a simplificar e homogeneizar o processo formativo da população pobre,
negando-lhe protagonismo e resistência.
Interessada em descortinar os sentidos que a educação assumia para os sujeitos e suas
múltiplas expressões engendradas pelas classes populares, Ana Luiza revela aspectos sociais e
políticos importantes do Rio de Janeiro oitocentista que ajudam a compreender as disputas que
envolviam o tema da educação naquele momento, e que colocava em movimento as forças do
poder privado, o Estado imperial e as classes populares (p. 31). Nesse sentido, a autora recupera
o debate acerca da exclusão dos analfabetos da política oficial, ao mesmo tempo que as elites
iam sedimentando o “mito” da alfabetização como critério balizador da participação política e
de cidadania (p. 28). Nesse contexto, a reforma eleitoral de 1881 foi decisiva para consolidar a
concepção elitista do analfabetismo como critério para a exclusão social e política (p. 74).
Ana Luiza localiza nas últimas décadas do século XIX a emergência do “mito” da
alfabetização como requisito de civilidade e condição para assegurar a participação política pelo
voto, mas desconfia da narrativa que se ampara na taxa de analfabetismo informada pelos
censos de 1872 e 1890, os quais indicavam existir 82,5% de analfabetos na população do Rio
de Janeiro (p. 39).
Ao se perguntar: “será mesmo que o que se supunha ‘o povo analfabeto’ do Rio de
Janeiro estava tão alheio à política e à própria educação?” (p. 28), Ana Luiza acaba por
interrogar também os critérios quantitativos como os únicos legítimos e capazes de informar
sobre a complexidade social, educacional e de discernimento da sociedade fluminense
oitocentista (p. 28-29). Sociedade que passava a consolidar a concepção segundo a qual a
escolarização era entendida como “um importante critério de socialização” (p. 31) critério esse
amparado por um “discurso governamental que atribuía a si o direito de formar os cidadãos”
(p. 31). Não obstante, na prática, esse discurso oficial não se realizava, que a instrução
primária de adultos e crianças pobres era promovida por iniciativas particulares ou de
associados. Portanto, mediante uma relação conflituosa com o Estado, as classes populares
tomavam para si a luta pela escolarização, realizando “ações diretas, coletivas ou individuais”,
que passavam por organizar escolas ou até realizar investimentos para garantir a frequência às
aulas oferecidas pelo Estado ou por entidades sociais (p. 31- 32).
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Ao assinalar os significados da educação para as classes populares oitocentista, a autora
informa que ao lado das reivindicações por educação escolar estatal havia diversas iniciativas
da sociedade civil, incluindo aquelas ligadas ao movimento operário organizado, que
compunham o amplo espectro de iniciativas do educar-se das classes populares (p. 37).
Trazendo para sua análise, por exemplo, algumas passagens de crônicas do escritor carioca João
do Rio, Ana Luiza identifica reflexões, saberes e conhecimentos entre cocheiros, estivadores,
marinheiros, construtores de presépios, leitores e pintores em seus momentos de trabalho e
lazer, com os quais se indica o uso popular da escrita e sua presença na arena pública, no caso,
nas ruas (p. 38-39).
Ao analisar a atividade dos tatuadores, arte praticada por trabalhadores pauperizados,
Ana Luiza destaca uma cena em que o tatuador demonstra saber escrever já que deveria tatuar
o nome na pele de um cliente. Assim, ela salienta existir flagrante contradição entre as
estatísticas que apontavam a elevada taxa de analfabetismo e a realidade em que se observa,
por outras fontes, o uso popular da escrita (p. 39).
Ao afirmar que a educação não se restringia à escola, assim como a forma de atuação
política praticada pelas classes populares não se vinculava ao parlamento e ao voto, Ana Luiza
adverte que a concepção que idealiza a participação política somente como aquela que se
relaciona institucionalmente com o Estado por meio do voto uma visão meramente
institucionalista pode deixar de fora o conjunto de ações praticadas pelas classes populares
tão necessárias para a sua sobrevivência e existência social, bem como para a exigência do
direito à educação. Por isso, a autora realiza o exercício de compreender a história a partir das
experiências e dos fazeres das classes populares, na perspectiva de estruturar sua narrativa a
partir dos “de baixo” (p. 40).
Interessada em narrar a partir da perspectiva dos “de baixo”, mas sem perder de foco o
poder das elites para submeter e manter a sua hegemonia, a autora demonstra, por exemplo, que
a Lei Saraiva, ao instituir a separação entre instrução e experiência, se constituiu em importante
mecanismo de interdição dos direitos políticos do povo negro, pois proibia a criação de
organizações de trabalhadores negros para evitar que se alfabetizassem (p. 64). Vigiar a atuação
dos negros para impedir sua organização e resistência ao sistema escravocrata e colonial era
uma prática constante das elites, como salientou a autora na passagem em que discute o Ofício
de 27 de março de 1835, no qual Euzébio de Queirós solicita vigilância policial sobre as
reuniões para coibir o aprender a ler e escrever dos “pretos minas” (p. 36). Sabe-se, contudo,
que as elites não apenas operavam a estrutura de poder para impedir que os negros fossem
sujeitos de direitos, mas, sobretudo, que acessassem o principal meio de produção para a
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garantia de trabalho e subsistência: a terra. Sem direito à propriedade da terra, sem acesso aos
meios de produção, os negros seguiam encontrando muitos obstáculos para acessar direitos
sociais e políticos.
A análise de Ana Luiza também discute a função do mito do analfabetismo e como ele
operava institucionalmente na sociedade fluminense oitocentista com a finalidade de deixar de
fora da cena pública e política o povo em favor de um determinado extrato social. Isto é, sob a
justificativa do analfabetismo, o governo imperial justificava a sua perseguição e proibição à
organização dos trabalhadores negros. Ademais, a autora afirma ser este o mito fundador que
origina os nossos sistemas político e educacional (p. 64-75) que continuam a naturalizar e a
perpetuar os processos de exclusão e desigualdade, a despeito das lutas e resistências históricas.
Ao caracterizar as cinquenta e duas associações escolhidas para o estudo, Ana Luiza
demonstra que elas atuavam para enfrentar coletivamente a pobreza - parte da realidade social
dos trabalhadores - e ao fazê-lo, colocava em curso processos formativos significativos e
estratégicos para os sujeitos. As práticas formativas e educativas desenvolvidas nas associações
contribuiriam para a formação intelectual e política dos trabalhadores e, conforme sugere a
autora, ajudaram a sedimentar a transformação de experiências ao enfretamento da pobreza em
ações e lutas por direitos; sustenta que as práticas de auxílio mútuo e as redes de solidariedade
dos trabalhadores, a participação ativa das classes populares nos processos de educação e
instrução são balizadoras para a mudança de uma concepção que tinha a educação como dádiva,
caridade, para a concepção da educação como direito (p. 108-109).
Nesse contexto, destaca-se a centralidade que assumiam os estatutos para a organização
das associações, pois continham o “caráter legislativo, formalizado e formalizador”,
contribuindo para a garantia da sua existência legal (p. 113). Respeitado como “lei máxima das
entidades”, o estatuto possuía função organizativa, que, conforme a análise da autora, indicava
a familiaridade e a existência de práticas de leitura, escrita e cálculo, que era dever de cada
membro ter conhecimento e observar os relatórios, as atas, leis escritas e balanços de sua
entidade. Ademais, sustenta a autora que, seja na direção da entidade ou mesmo na assembleia
geral, os membros necessitavam discutir, deliberar, aprovar ou rejeitar reformas do estatuto,
bem como elaborar seu raciocínio e expressá-lo publicamente, e, dessa maneira, desenvolviam
habilidades que exigiam intensa ação reflexiva. Portanto, salienta a autora que “a fonte e o
momento dos estudos era a própria vida da entidade, a própria experiência dos sócios” (p. 174-
175).
O estudo de Ana Luiza destaca ainda que as associações atuantes no período entre 1870
e 1890 e 1890 e 1917 ofertavam cursos, conferências, organizavam bibliotecas, jornais e
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fundavam escolas para os filhos de seus associados, demonstrando a valorização da cultura
letrada e da instrução (p. 184). Enquanto as fontes oficiais revelam que o modelo reconhecido
e adotado pelo Estado pretendia governar a infância e civilizar a classe trabalhadora, as fontes
primárias relatórios, estatutos, atas das associações revelam que as classes populares eram
criadoras e criaturas de processos próprios de ensino e aprendizado. (p. 188-198). Evidencia-se
assim que um estudo que se vale apenas de fontes previsíveis e institucionalizadas, tende
unicamente a reproduzir e naturalizar aspectos da realidade que interessam a manutenção do
status quo.
A classe trabalhadora, organizada, participava ativamente das disputas em torno da
educação, explicitando publicamente seus posicionamentos em defesa da instrução formal. Por
meio de seus periódicos defendiam a instrução como uma forma para a melhoria da condição
social e como dimensão humanizadora. Ana Luiza aponta que a imprensa operária concebia a
instrução “como direito a ser adquirido e, ao mesmo tempo, condição para exercício de direitos
(p. 262).
Não obstante a Reforma de 1879 ter tornado o ensino obrigatório, a educação escolar
permanecia restrita a poucos e a sua oferta à população não acontecia satisfatoriamente e nem
regularmente, visto que o governo Imperial não assegurava o financiamento estatal para o
suprimento da escolarização pública. Os parcos recursos destinados à escola pública
privilegiavam aquelas unidades das áreas urbanas; para o meio rural e áreas menos populosas,
onde residia parte da população pobre, os governos das províncias adotaram a escola
subvencionada, um modelo que dependia do repasse de verba governamental para subsidiar a
iniciativa de professores individuais ou de pais e moradores das localidades rurais para a oferta
de curso de instrução primária
2
.
O investimento para a subvenção de vagas era muito inferior ao destinado para a escola
pública dos centros urbanos. Como mostra Ana Luiza, era muito comum reclamações sobre o
atraso e irregularidade no pagamento das subvenções, além dos valores serem insuficientes para
arcar com o aluguel, material didático e sustento do professor (p. 292). A subvenção, contudo,
era uma estratégia adotada pelos governos das províncias para economizar recursos destinados
à instrução pública das crianças pobres, e que fez emergir, sob critério econômico, um modelo
educacional dual que aportava melhor investimento conforme o público e a região (p. 299).
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Cumpre ressaltar que algumas províncias estavam passando pela aceleração da transformação de uma economia
agro-exportadora-escravista para uma economia urbano-comercial.
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No Rio de Janeiro oitocentista, as classes populares eram excluídas da participação
política por não possuir escolarização e o Estado se isentava da oferta universal e obrigatória
da instrução, atuando conforme sua ordem de interesse e controle.
A esse respeito, é importante salientar que, atualmente, as classes populares no Brasil
contam com a obrigatoriedade e a universalidade da educação básica, mas continuam a
enfrentar desafios históricos para a efetivação da Educação como Direito a ser garantido pelo
Estado. Vale lembrar que assentados da reforma agrária, indígenas, quilombolas, acampados,
caiçaras, povos das florestas, ribeirinhos, enfim, populações do campo brasileiro, mesmo
fazendo lutas e resistências, tiveram aproximadamente 80 mil escolas fechadas em seus
territórios entre 1997 e 2018, conforme denunciam os professores Paulo Alentejano e Tássia
Cordeiro, com base nos dados do censo escolar do INEP.
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Como apontam os professores, foram
fechadas 4 mil escolas do campo por ano, o que contribui sensivelmente para aprofundar a
desigualdade dos níveis de escolaridade entre pessoas das áreas rurais e urbanas no país.
Desde a reprodução da desigualdade, que se estrutura num sistema educacional que opõe
as redes públicas e privadas, passando pela sistemática precarização das instalações e
infraestrutura das escolas públicas e das relações de trabalho na educação, as classes populares
enfrentam contemporaneamente projetos que visam subordinar as práticas pedagógicas ao
modelo de treinamentos para alcançar habilidades e competências capazes de domesticar os
estudantes e reduzir os seus horizontes à mera formação de mão-de-obra a ser disponibilizada
no mercado de trabalho. Para convencer as filhas e filhos das/dos trabalhadores sobre esse
modelo de instrução, a lógica empresarial neoliberal operada, por exemplo, por meio de
parcerias público-privadas, atua na oferta de um currículo educacional reduzido, esvaziado e
aligeirado, que substitui disciplinas e conhecimentos científicos, em favor de temas como
“projeto de vida”, competências “socioemocionais” e “empreendedorismo”, sugerindo aos
estudantes a escolha de seus “itinerários formativos”. Na prática, porém, as diretrizes de sua
formação foram previamente definidas sem a participação das comunidades escolares e
acadêmicas nem das classes populares como se verifica no processo de implementação do Novo
Currículo do Ensino Médio por meio da Lei 13.415/2017, alinhando à Base Nacional Comum
Curricular (BNCC).
3
Paulo Alentejano é professor do Departamento de Geografia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)
e Tássia Cordeiro é professora do Instituto Federal Fluminense e doutoranda do Programa de Políticas Públicas e
Formação Humana da UERJ. ALENTEJANO, P.; CORDEIRO, T. 80 mil escolas no campo foram fechadas em
21 anos. IN: Jornal Brasil de Fato, São Paulo, 29 de novembro de 2019. Disponível em:
https://www.brasildefato.com.br/2019/11/29/artigo-or-80-mil-escolas-no-campo-brasileiro-foram-fechadas-em-
21-anos. Acesso em: 24 nov. 2021.
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No entanto, como mostra Ana Luiza em seu estudo, quando as classes populares se
colocam em movimento, elas se constituem numa força capaz de desnudar as contradições do
projeto educacional levado a cabo pelo Estado burguês que oblitera a efetivação da Educação
como direito humano fundamental em favor da sua mercantilização.
Recebido em: 13 de dezembro de 2021
Aceito em: 14 de dezembro de 2021