ISSN 2447-746X
DOI: 10.20888/ridpher.v7i00.15957
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 7, p. 1-26, e021027, 2021.
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A ESCOLA DE APLICAÇÃO DA FACULDADE DE EDUCAÇÃO DA USP:
MEMÓRIAS DE UMA DIRETORA (1998 -2011)
Izabel Galvão
Universidade Sorbonne Paris Nord Paris 13
Centro Interuniversitário EXPERICE
izabel.galvao@univ-paris13.fr
RESUMO
Um dos objetivos deste texto é registrar aspectos do processo de reestruturação da Escola de
Aplicação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (EAFEUSP) no período de
1998 a 2001, interrogando dimensões do universo escolar e as especificidades que caracterizam
uma “escola de aplicação”. Inscrita numa perspectiva de pesquisa biográfica em educação, a
análise proposta dialoga com momentos críticos da historia da EAFEUSP e ancora-se na
experiência da autora como sua diretora nesse período. Os temas abordados abrangem aspectos
da organização e funcionamento interno da escola trabalho coletivo, progressão da
aprendizagem e aspectos das relações desta com o seu entorno territorial e acadêmico,
refletindo sobre o seu papel nas pesquisas educacionais e na formação de professores.
Palavras-chave: Memória. Escola de aplicação. Gestão democrática.
LA ESCUELA DE APLICACIÓN DE LA FACULTAD DE EDUCACIÓN DE LA USP:
MEMORIAS DE UN DIRECTOR (1998 -2011)
RESUMEN
Uno de los objetivos de este texto es registrar aspectos del proceso de reestructuración de la
Escuela de Aplicación de la Facultad de Educación de la Universidad de São Paulo (EAFEUSP)
en el período de 1998 a 2001, cuestionando las dimensiones del universo escolar y las
especificidades que caracterizan a una "escuela de aplicación". Desde una perspectiva de
investigación biográfica en educación, el análisis propuesto dialoga con momentos críticos de
la historia de la escuela y se ancla en la experiencia de la autora como directora de EAFEUSP
durante este periodo. Los temas tratados incluyen aspectos de la organización y el
funcionamiento interno de la escuela -trabajo colectivo, progresión del aprendizaje- y aspectos
de sus relaciones con su entorno territorial y académico, reflexionando sobre su papel en la
investigación educativa y la formación del profesorado.
Palabras clave: Memoria. Escuela de aplicación. Gestión democrática.
THE SCHOOL OF APPLICATION OF THE USP FACULTY OF EDUCATION:
REMINISCENCES OF A DIRECTOR (1998 -2011)
ABSTRACT
One of the objectives of this text is to record aspects of the restructuring process of the School
of Application of the Faculty of Education of the University of São Paulo (EAFEUSP) in the
period from 1998 to 2001, questioning dimensions of the school universe and the specificities
that characterize an "application school". Inscribed in a biographical research perspective in
education, the analysis proposed is in dialogue with some of the critical moments in the history
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of the school and is anchored in the experience of the author as director of the EAFEUSP within
that period. The topics covered include aspects of the school's internal organization and
functioning, as well as aspects of its relations with its territorial and academic environment,
reflecting on its role in educational research and teacher training.
Keywords: Memory. Application school. Democratic management.
L’ÉCOLE D’APPLICATION DE LA FACULTE D’ÉDUCATION DE L’USP:
MEMOIRES D’UNE DIRECTRICE (1998-2001)
RÉSUMÉ
L'un des objectifs de ce texte est d'enregistrer les aspects du processus de restructuration de
l'École d'Application de la Faculté d'Éducation de l'Université de São Paulo (EAFEUSP) dans
la période 1998 à 2001, en questionnant des dimensions de l'univers scolaire et les spécificités
qui caractérisent une " école d'application ". Inscrite dans une perspective de recherche
biographique en éducation, l'analyse proposée dialogue avec certains des moments critiques de
l'histoire de l’école et s'ancre dans l'expérience de l'autrice en tant que directrice de la EAFEUSP
à cette période. Les thèmes abordés couvrent des aspects de l'organisation et du fonctionnement
interne de l'école, ainsi que des aspects de ses relations avec son environnement territorial et
académique, en réfléchissant à son rôle dans la recherche en éducation et la formation des
enseignants.
Mots-clés: Mémoire. École d’application. Gestion démocratique.
INTRODUÇÃO
Este texto pretende registrar aspectos do processo de reestruturação da Escola de
Aplicação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (EAFEUSP) no período de
1998 a 2001, interrogando dimensões do universo escolar e as especificidades que caracterizam
uma “escola de aplicação”. Pretende também contribuir para a reflexão sobre o que deve ser
uma escola de aplicação e, mais amplamente, o que pode ser qualquer escola enquanto lugar
que, além do trabalho pedagógico desenvolvido com os alunos, participa da formação de
professores e da produção de conhecimentos sobre educação.
O convite para sua redação obrigou-me a mergulhar nas lembranças que guardei dos
três anos intensos em que fui diretora da EAFEUSP. Minhas lembranças desse período
começaram a ser reativadas graças ao depoimento que dei para as comemorações dos sessenta
anos da criação da escola, em 2019
1
. O processo de escrita confrontou-me com lacunas de
minha memória e me levou a buscar outras fontes para completá-las. Em meus arquivos
pessoais encontrei inúmeros documentos que produzi naquele período e, embora incompletos,
1
A entrevista dada a Elizabeth Braga pode ser vista no site http://www4.fe.usp.br/entrevista-com-izabel-galvao-
ex-docente-da-feusp-e-ex-diretora-da-escola-de-aplicacao.
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a leitura dos mesmos me permitiu retomar contato com aspectos que tinham ficado esquecidos,
preenchendo aos poucos os vazios deixados pelos vinte anos que me separam desta experiência.
Ao ler os registros de ações planejadas e/ou realizadas, foram ressurgindo reflexões intensas
naquele momento assim como interrogações que tinham ficado sem resposta.
Para melhor compreender a crise que precedera a minha gestão, foi necessário
pesquisar publicações referentes ao período 1976-1984, durante o qual a EAFEUSP sofreu
profundas reorganizações. Trata-se de escritos de José Mario Pires Azanha (1983, 1984, 1987),
representante da Faculdade de Educação junto à diretoria da EA neste período, disponíveis no
acervo dedicado a este professor no site da Faculdade de Educação
2
e da tese de doutorado de
Nivea Gordo (2010), então coordenadora pedagógica e diretora da escola.
Como fonte consultada, cabe ainda citar o site institucional da Escola de Aplicação
3
, com dados
atualizados sobre o projeto e o funcionamento da instituição, permitindo verificar mudanças e
permanências, e reavivar minha familiaridade com esse universo distante no tempo e no espaço.
Não obstante o processo de pesquisa empreendido e a consulta a fontes escritas, as
memórias narradas neste texto não se pretendem objetivas nem tampouco têm intenção de um
trabalho historiográfico. Apoiam-se no ponto de vista situado(HARAWAY, 2007) de uma
diretora de passagem, que acumulava esta função com a de docente da Faculdade de Educação.
Recusando uma posição de exterioridade em relação ao sujeito abordado, estas memórias não
renunciam, contudo, a um certo tipo de verdade, que Tzvetan Todorov (1995) qualifica de
intersubjetiva. Segundo este autor, se as fontes sobre as quais se baseiam a História permitem
a caracterização de dimensões objetivas dos acontecimentos do passado, os depoimentos orais
sobre os quais se baseiam a memória colocam em evidência as marcas sensíveis deixadas sobre
seus protagonistas. Trata-se de uma verdade referencial no primeiro caso e intersubjetiva no
segundo.
Nesse texto a implicação da autora com as situações abordadas é assumida e
explicitada como parte integrante da realidade que se quer compreender. Inscrito num
paradigma de pesquisa biográfica em educação (DELORY-MOBERGER, 2014), o texto
2
A atuação acadêmica e política de José Mario Pires Azanha (1931-2004), professor da FEUSP desde 1974,
representa uma contribuição fundamental para o pensamento educacional. Marcou não só a história da Faculdade
de Educação como também a da política do Estado de São Paulo para a educação, tendo participação decisiva no
processo de democratização do ensino secundário como Diretor Geral do Departamento de Educação da Secretaria
da Educação (SE) na gestão Ulhôa Cintra (1967 1970). Sua atuação junto à Escola de Aplicação lhe forneceu
matéria para refletir sobre temas centrais de sua obra, como a autonomia e a proposta pedagógica da escola, a
questão metodológica, a responsabilidade da universidade na melhoria do ensino publico. No acervo dedicado a
ele no site da Faculdade de Educação, os escritos ligados à Escola de Aplicação constituem um dos dez temas em
que são distribuídos seus textos.
http://www3.fe.usp.br/secoes/inst/novo/acervo_jmpa/midiateca_canal.asp?cond=2&assunto=9
3
http://www3.ea.fe.usp.br/
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privilegia o registro narrativo, alternando a utilização da primeira pessoa do singular e a do
plural. O emprego desta última visa a salientar a dimensão coletiva do trabalho de diretora, não
se confundindo com recurso retórico de modéstia. O uso do “nós” permite também sublinhar
as interlocuções que participam da construção da memória, que tem sempre uma dimensão
coletiva, conforme nos ensina Maurice Halbwachs (1968).
I. UMA HISTÓRIA PONTUADA DE CRISES
As primeiras escolas de aplicação ligadas a universidades surgem com o Decreto
Federal n° 9053 de 1946, no governo Getúlio Vargas. Mataluna (2019, p. 1026) inscreve esse
surgimento no processo de redemocratização que o país vivia, momento que [...] favorecia o
debate sobre os rumos da educação brasileira e, em certa medida, a experimentação e a
implantação de novas ideias”. A EAFEUSP adquire esse estatuto em 1972 quando a Escola de
Demonstração do Centro Regional de Pesquisas Educacionais (CRPE) “Prof. Queiroz Filho”,
do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos do Ministério da Educação e Cultura, é
incorporada à Universidade de São Paulo e passa a pertencer à Faculdade de Educação.
A leitura do relatório de atividades do período 1976 1980 nos indicações sobre
esse processo de incorporação que, segundo consta, limitou-se a medidas legais relativas à
mudança de denominação e correspondeu a um longo processo de transição iniciado em 1968,
antes mesmo da extinção definitiva do CRPE. Dupla transição, que a FE também se
encontrava em fase de instalação separando-se da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas (FFLCH) e subitamente se responsável por uma escola primária em
funcionamento desde 1959, “sem que houvesse nem mesmo a previsão de verbas para a simples
continuidade da sua manutenção” (GORDO, 1981, p. 7). O relatório remete a esse contexto
para explicar a ausência de explicitação clara dos objetivos, estrutura e funcionamento da
escola, bem como de dados sobre o período anterior a 1976.
Este ano inaugura uma nova fase na história da Escola de Aplicação e das relações
entre ela e a Faculdade de Educação, o vínculo passando a ser assegurado por um docente com
a função de representante da FE junto à direção da EA. Endossada por José Mario Pires Azanha,
a figura do representante virá a substituir, no Regimento elaborado em 1978, o Conselho
Consultivo
4
[...] de modo a impedir até certo ponto que pela inexistência na prática do
4
O Conselho Consultivo era composto pelos chefes de departamento e diretor da Faculdade.
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Conselho Consultivo a direção da FEUSP permanecesse distanciada das atividades da EA”
(GORDO, 1981, p. 12).
Foi um período marcado por profundas mudanças no funcionamento da escola, tal
como a redução no número de classes e a introdução do sorteio público como modo de ingresso
em substituição aos testes de prontidão. A redução do quadro de funcionários mediante
dissolução da equipe de assistência ao aluno
5
foi outra modificação importante.
As medidas introduzidas por Azanha integravam os esforços para consolidar uma
concepção do que deve ser uma escola de aplicação. A ideia de exemplaridade pautava esta
concepção. Exemplar como indicação da viabilidade de ensino público eficiente sem condições
privilegiadas”, dimensão cujo relevo político era destacado “nestes tempos em que a má qualidade
do ensino público é a principal razão, ideologicamente manipulada, para legitimar o descaso
governamental com a escola pública” (AZANHA, 1987, p.169-70). Exemplar pelo “esforço
permanente de revisão conceitual” (AZANHA, 1987, p.170), uma escola de aplicação devendo ser
"[...] fonte privilegiada de indicação de direções possíveis e desejáveis no encaminhamento dos
múltiplos problemas que se colocam continuadamente para qualquer escola" (AZANHA,
1984).
Em termos pedagógicos, a Orientação técnica do plano escolar anual”, elaborada por
José Mario Azanha em 1976, traduzia a intenção de operar uma ruptura com a tradição de
renovação pedagógica presente desde 1958, quando da criação da Escola de Demonstração.
Visando o desenvolvimento de indivíduos com capacidade de crítica, o processo de ensino
deveria priorizar a “trivial transmissão de conhecimentos” ao invés do “hipotético
desenvolvimento de hábitos e atitudes”, que a “capacidade de criticar a si próprio e a
sociedade em que vive é o único ponto de apoio firme para o desenvolvimento de indivíduos
livres e criativos” (apud GORDO, 1981, p. 9).
Em 1984, em paralelo ao movimento de luta pela implementação do curso de 2° grau
na EA, eclode uma polêmica quanto à própria permanência da escola na Universidade de São
Paulo, sendo cogitada a possibilidade de passá-la para a rede estadual de ensino. Interpelada
pelo então Reitor Hélio Guerra Vieira, que questionava a utilidade de uma escola de e a
fortiori de 2° grau para a Universidade, a Congregação da Faculdade de Educação entregou-
se a intenso debate sobre o papel da EA para seus alunos e professores e sobre a pertinência de
se manter esta vinculação.
5
Tal equipe continha funções relativas à assistência psicológica, de fonoaudiologia, foniatria e educação sanitária
(GORDO, 1981).
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Por trás da pressão que docentes e funcionários insatisfeitos com a redução do
número de vagas iniciada em 1982 exerciam sobre o reitor (GORDO, 2010), identifica-se
uma ideia segundo a qual a finalidade última da escola seria o atendimento da comunidade
uspiana. O exame da alternativa de desvinculação pelos membros da Congregação da Faculdade
de Educação revelou que também entre os docentes desta faculdade inexistia uma visão comum
quanto ao que deve ser uma escola de aplicação. A existência de divergências ficou explícita
no conflito público entre os Professores José Mario Azanha e Nélio Parra
6
em torno do objetivo
da EA em oferecer estágios e campo de pesquisa para alunos e professores da FE. O primeiro
defendia a importância da existência de normas para evitar que a presença de estagiários e
pesquisadores trouxesse prejuízo para o ensino na escola. O segundo considerava que as
excessivas restrições ao acolhimento de estagiários da FE punham em dúvida a pertinência de
manutenção da vinculação com a escola.
A criação do Ensino Médio, em 1985, respondendo à demanda de pais que desejavam
assegurar continuidade de escolaridade de seus filhos após o Ensino Fundamental, representou
a afirmação do interesse da Universidade e da Faculdade de Educação na manutenção da EA.
Tal afirmação não eliminou, contudo, as ambiguidades destas instâncias em suas
responsabilidades para com a Escola de Aplicação, nem tampouco a existência de visões
divergentes, também internas à própria escola, quanto a suas finalidades e modos de
funcionamento.
***
O ano de 1984 coincide com meu ingresso como aluna do curso de pedagogia da
FEUSP. Não percebi ecos das polêmicas ligadas à escola durante minha graduação. Lembro de
ter ouvido alguns professores falarem da “escolinha”, mas tais evocações foram esporádicas e
assistemáticas. Comecei a ter notícias da escola durante o meu mestrado. Estas vinham por
meio da Professora Heloysa Dantas, minha orientadora, que desenvolvia um projeto Letras e
livros de atendimento a alunos com dificuldades na aquisição da leitura e escrita, junto ao
setor de Orientação Educacional. Eram relatos positivos e entusiasmados de uma colaboração
frutuosa, tanto para a escola e seus alunos, como para a pesquisadora (DANTAS; CAMARGO,
1994).
Foi somente em 1998, quando eu era docente da FEUSP
7
e estava terminando a
redação de minha tese de doutorado, que voltei a ter notícias da instituição. Elas me foram dadas
pela Professora Myriam Krasilchik, diretora da FEUSP, que me explicou que a EA saía de uma
6
Chefe do departamento de metodologia e prática de ensino da FEUSP.
7
Fui contratada em março de 1997 como professora assistente.
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crise institucional para cuja resolução fora necessária a intervenção da Congregação da FEUSP
mediante a nomeação de docentes para dirigirem temporariamente a escola
8
.
As parcas informações de que disponho me levam a inferir que essa nova crise que
culminou num movimento denominado SOS Aplicação, em 1995 fora um prolongamento da
crise anterior e a expressão de ambiguidades que permaneceram latentes. Desse movimento,
que acarretou a demissão de um grande número de professores da escola, decorreram novos
esforços para a aproximação e efetiva integração com a Faculdade de Educação. Iniciado dois
anos antes, o processo de intervenção da FE junto à EA concluiu-se com a elaboração de um
novo Regimento, que formalizava a possibilidade de os cargos de diretor e vice serem ser
ocupados por docentes da FE e por professores da própria escola.
Foi este o contexto que levou a Professora Myriam a me propor o desafio de participar
do processo eleitoral e, uma vez eleita, a exercer o cargo de diretora durante três anos
9
.
II. PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO: GESTÃO DEMOCRÁTICA E
TRABALHO COLETIVO
Aprovado em 1998, o novo Regimento
10
visava a adequar o projeto e o funcionamento
da escola à Lei de Diretrizes e Bases da Educação 9394/1996, e a consolidar a superação da
crise institucional que eclodira em 1995. Ao assumir a direção da EA, tive que iniciar
imediatamente os processos de mudança necessários para sua implementação, vendo-me
obrigada a renunciar a um período de observação em que pudesse me familiarizar gradualmente
com as dinâmicas e problemas da escola.
Logo percebi que a EA gozava da reputação de escola pública de qualidade. O sorteio
para ingresso era muito concorrido, atraindo professores e funcionários da universidade,
moradores dos bairros próximos, mas também pessoas de camadas médias que viam a Escola
de Aplicação como alternativa para poder manter os filhos no ensino público. Seu alunado
diverso do ponto de vista das origens sociais e condições socioeconômicas correspondia a uma
situação propícia à realização de um projeto de escola pública para todos e colocava a escola
diante do desafio de acolhimento à diversidade.
8
Professor D’Olim Marote à frente da direção quando da renovação substanciosa do corpo docente da escola. Jair
Militão da Silva e João Pedro da Fonseca.
9
Para meu primeiro mandato, de 1998 à 2000, compus chapa com Leandro André de Souza, professor de física da
EA, que exerceu o cargo de vice-diretor. Para o segundo, apresentei-me junto com Vanderlei Pinheiro Bispo,
professor de história de EA, que assumiu a direção após eu deixar o cargo em 2001.
10
Esta elaboração, feita no âmbito da Congregação da FEUSP, contou com uma importante contribuição da
Professora Lisete Gomes Arelaro.
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Oferecendo escolaridade em nível fundamental e médio a cerca de 670 alunos, havia
duas classes por série
11
. A cada ano, as 60 vagas no 1º ano do ensino fundamental eram
sorteadas, sendo 1/3 das vagas reservado aos filhos de professores e funcionários da FEUSP,
1/3 aos filhos de professores e funcionários da USP, e 1/3 para a comunidade em geral. As
vagas que sobravam da primeira categoria passavam para a categoria seguinte. O ingresso de
novos alunos nos demais anos também era feito mediante sorteio, mas graças aos baixos índices
de evasão e repetência, o número de vagas era muito reduzido. A lisura e transparência do
processo eram um dos orgulhos da escola e o mesmo parecia plenamente aceito pela
comunidade uspiana.
As modificações introduzidas pelo novo regimento tocavam sobretudo a gestão escolar
e o sistema de progressão da aprendizagem. Quanto ao primeiro aspecto, as mudanças
introduzidas pautavam-se nos preceitos da gestão democrática conforme estipulados pela Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996. Incidiam no modo de provimento dos
cargos de diretor e vice, que passavam a ser eleitos dentre professores da escola e docentes da
Faculdade, e na composição e atribuições do Conselho de Escola. Embora já fosse previsto em
regimentos anteriores, esse colegiado teve sua composição ampliada, incluindo, além de
representantes de professores e funcionários da própria escola, representantes de alunos e pais,
assim como representantes de cada um dos departamentos da Faculdade de Educação e de sua
comunidade discente. Elevado à instância máxima de deliberação no interior da Escola de
Aplicação, submetido apenas à Congregação FEUSP, o conselho de escola era proposto
como órgão fundamental de efetivação da gestão democrática, destinado a discutir e deliberar
sobre assuntos referentes ao projeto pedagógico da escola e à gestão de questões do cotidiano.
Para além de organizar a eleição de seus membros, e consciente de que sua instalação
não era suficiente para assegurar a gestão democrática da escola, foi preciso lhe dar sentido por
meio de pautas consistentes e de dinâmicas encorajando o diálogo e a participação de todos os
seus integrantes. Foi assim que, por iniciativa deste colegiado, foi empreendido um amplo
processo de escuta dos alunos que em seguida evoluiu para uma avaliação institucional, baseada
em questionário elaborado e analisado por membros do Conselho.
Paralelamente, outras instâncias de participação existiam na EA, como os conselhos
de classe e as assembleias de classe. Ambos trimestrais, as segundas eram abertas à totalidade
de pais e alunos de uma mesma classe, ao passo que os primeiros restringiam a participação de
11
Em 2006, com a implantação do Ensino Fundamental em nove anos, foram abertas três novas classes para
receber alunos do primeiro ano, com vinte alunos cada uma.
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pais e alunos a representantes eleitos entre os pares. Foi necessário clarear as atribuições de
cada instância e redesenhar a circulação entre cada uma delas, do ponto de vista da tomada de
decisões e da abordagem dos diferentes tipos de problemas que tocam o cotidiano de uma escola
e o processo de ensino e de aprendizagem.
Progressão continuada
Quanto ao sistema de progressão da aprendizagem, o novo Regimento introduziu a
organização do ensino em ciclos com progressão continuada. Substituindo o funcionamento
seriado, a possibilidade de reprovação se deslocava para o final de um ciclo composto de
várias séries visando introduzir maior flexibilidade aos diferentes ritmos de aprendizagem.
Essa medida havia sido implantada na rede municipal de ensino de São Paulo em 1992 e
encontrava-se em vias de implantação na rede estadual. Nas redes públicas eram muitas as
controvérsias geradas por esta mudança que visava reduzir o fracasso e a evasão escolar. Seus
críticos denunciavam medidas de correção de fluxo, portanto de economia, por trás de
argumentos pedagógicos. Outros denunciavam a impossibilidade de ensinar num contexto em
que os alunos perderiam a motivação representada pela passagem de ano
12
.
Para aqueles que defendiam a mudança, dentre os quais eu me incluía, era clara a
necessidade de acompanhar essa medida de uma transformação na cultura escolar, de modo que
o aprendizado se tornasse uma fonte de sentido em si, e não simplesmente um meio para obter
um resultado, fosse ele uma nota ou a aprovação para o ano seguinte. Com esse intuito,
promovemos um amplo processo de discussão abordando as numerosas implicações dessa nova
organização do ensino e visando [...] a superação de alguns mitos, como por exemplo: que a
boa escola é uma escola seletiva, que classes homogêneas são condição para um trabalho de
qualidade e que o castigo é a melhor forma de aprender
13
. O tema foi pauta de reuniões da
equipe pedagógica, nas quais compartilhamos a leitura de textos
14
sobre o assunto e convidamos
colegas docentes. Foi também pauta do conselho de escola e de discussões informais. Não se
tratava de decretar ultrapassadas as antigas práticas em proveito de metodologias pretensamente
12
Para aprofundar a compreensão das contradições ligadas à política de ciclos, cf. “A escola em ciclos.
Fundamentos e debates », de Jefferson Mainardes.
13
Escola de Aplicação da FEUSP, Plano Escolar 2001, mimeo., p. 4.
14
Segundo consta em registro pessoal sintetizando os temas abordados nas reuniões com professores entre agosto
1998 e julho 1999, dois textos foram objeto de leitura e discussão coletiva naquele ano: Avaliação da
aprendizagem e progressão continuada: bases para a construção de uma nova escola, de Zilma Ramos de Oliveira
(1998), e “O Erro na Perspectiva Piagetiana”, de Yves de la Taille (1997).
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inovadoras, mas de proceder a um exame das pticas visando à distinção entre as que devem
permanecer e aquelas que precisam ser modificadas, bem como de promover a articulação entre
os diferentes agentes que atuam na escola.
No bojo dessas discussões, foram decididas medidas complementares. Uma delas
atingiu a avaliação visando a dar elementos para um diagnóstico eficaz sobre o processo de
aprendizagem dos alunos e subsídios para o constante aprimoramento da prática pedagógica.
As notas de zero a dez foram substituídas por menções plenamente satisfatório, satisfatório,
não satisfatório que figuravam tanto nas tarefas como na síntese avaliativa trimestral. Nesta,
as menções deviam vir acompanhadas de um texto descritivo sobre o aproveitamento do aluno,
dando indicações qualitativas a este e à sua família. Constatamos também a necessidade de
reorganizar as atividades de recuperação, visando tornar esse momento uma contribuição mais
efetiva à aprendizagem.
Outra mudança foi a implantação de salas-ambiente para as classes a partir do
Fundamental II. Fixando espaços para cada disciplina, os mesmos poderiam ser melhor
equipados e assim constituir as salas de aula como recurso de aprendizagem. A equipe de
professores julgou que esta reorganização do espaço viria a favorecer o processo de
aprendizagem e relativizar a suposta perda de motivação que resultara da abolição da
reprovação ao final de cada série. Desta reorganização resultaram novas necessidades materiais
que tentamos suprir juntamente com outras já existentes.
Pude constatar as dificuldades em levar a cabo uma efetiva mudança na cultura e
práticas escolares exigida pela progressão continuada. Embora parte significativa dos
professores apoiasse a medida, para outros, e a despeito do processo participativo que pudemos
conduzir, a mesma era invocada como responsável pelas dificuldades encontradas no trabalho
de sala de aula, associada a uma suposta queda do nível de ensino ou a um aumento nas
situações de indisciplina.
Discussão sobre as regras de convivência
A despeito das dificuldades inerentes a esse processo de reflexão coletiva, dele
resultavam novas pautas, algumas das quais permitiram amplo debate na comunidade escolar.
Este é o caso da discussão sobre as regras de convivência. Essa pauta resultou das queixas
frequentes de professores e alunos, as dos primeiros referindo-se a indisciplina, as dos segundos
a um sentimento de injustiça ou impunidade. Na posição de diretora pude constatar a
inoperância de soluções que se limitavam a encaminhar os problemas de sala de aula para a
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orientação escolar e, em segunda instância, para a direção. Graças ao filtro exercido pela equipe
técnico-pedagógica, as situações em que recebi um aluno recalcitrante em minha sala não foram
muito numerosas, mas suficientes para reforçar minhas convicções quanto à eficiência relativa
de advertências ou sanções vindas de uma instância exterior à situação na qual se deu a
transgressão
15
.
A vivência dessas situações e a escuta das queixas vindas de professores e alunos nos
levaram a refletir mais amplamente sobre a questão da indisciplina, que se tornou assunto de
reuniões da equipe pedagógica. Nessas reuniões, começamos por problematizar a concepção
que identifica disciplina a um tipo único de comportamento, em favor de uma visão em que os
comportamentos que se pode chamar de disciplinados não são vistos como absolutos, mas
dependentes das condições exigidas pelas diferentes atividades. Problematizamos também a
ideia segundo a qual a indisciplina é o resultado direto da ação de alunos indisciplinados. Muito
arraigada nos meios escolares, esta ideia impede que se perceba como o contexto pedagógico e
as interações que nele se travam participam da produção da indisciplina. Na ausência desta
percepção sistêmica, o único recurso de que dispõe o professor é repreender ou excluir o(s)
aluno(s) indisciplinado(s). Além de ineficiente, esse tipo de “solução” pode ser muito
prejudicial na medida em que cristaliza papéis no grupo de alunos e, a partir de um certo limite,
aqueles que são identificados como “indisciplinados” não conseguem mais mudar de papel e
acabam atuando em consonância com o mesmo.
Das reuniões que tivemos sobre o assunto com a equipe de professores, pudemos
identificar um aspecto do contexto pedagógico que contribuía para a ocorrência de indisciplina.
Constatamos que as regras de convivência não eram claras nem tampouco legítimas aos olhos
dos alunos, o mesmo ocorrendo com as sanções para o seu não cumprimento. Decidimos que
seria necessário rediscutir coletivamente as normas que regiam a convivência escolar, num
processo que incluísse professores e alunos. Assim, cada professor se responsabilizou por
iniciar a discussão com uma classe, numa espécie de brainstorming coletivo a partir do qual
eram levantados o ponto de vista e as proposições dos alunos quanto às regras que lhes pareciam
necessárias para garantir boas condições de ensino, aprendizagem e convivência. Esse material
foi a base para elaboração de um livreto com as “regras de convivência, no qual eram também
explicitados os encaminhamentos quando de não cumprimento das mesmas. O livreto foi
reescrito várias vezes até chegarmos a uma versão que foi aprovada pelo Conselho de Escola,
numa ampla mobilização da comunidade escolar. A versão redigida na época representou um
15
Essa convicção se apoiava também em minhas próprias pesquisas, que mostram como as exigências e situações
escolares podem estar na origem de determinados conflitos entre professores e alunos (GALVÃ0, 2004).
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DOI: 10.20888/ridpher.v7i00.15957
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 7, p. 1-26, e021027, 2021.
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passo importante para tratar a questão da (in)disciplina de um modo mais abrangente,
fornecendo uma base para aperfeiçoamentos posteriores
16
.
Este relato mostra como a preocupação em consolidar um ambiente democrático na
escola vai muito além da criação de instâncias formais de participação. Ela determina o modo
como são introduzidas mudanças no funcionamento escolar. Ela permeia a maneira de se lidar
com as questões queixas, solicitações, conflitos que emergem do cotidiano escolar, tanto no
acolhimento imediato que se pode dar a cada uma, como em sua eventual transformação em
problema a ser resolvido mediante reflexão coletiva e ações planejadas. Sem perder de vista
que, na maioria dos casos, as soluções encontradas não são definitivas e exigem uma atenção
permanente por parte da equipe, que deve se manter vigilante e sempre disposta a renovar sua
reflexão.
III. UMA UNIDADE DE EDUCAÇÃO BÁSICA NO CAMPUS UNIVERSITÁRIO:
TECENDO LAÇOS
Tarefas administrativas ligadas ao quadro de funcionários e à infraestrutura ocuparam
um espaço grande em minha agenda à frente da direção. Muitas eram as necessidades
acumuladas desde anos anteriores, e novas necessidades foram sendo identificadas. O
enfrentamento das demandas administrativas trazia à tona a natureza ambígua das relações entre
Escola de Aplicação e Faculdade de Educação.
Sem orçamento nem estrutura administrativa própria, suas despesas integram a
dotação da Faculdade de Educação. O diretor da EA não tem autonomia orçamentária nem
tampouco visibilidade quanto à dotação sobre a qual pode contar. Os serviços de manutenção,
aquisições, recursos humanos, etc. o comuns à Faculdade de Educação. Devido às
características do cotidiano de uma escola de Ensino Fundamental e Médio, muito diferente da
rotina de uma unidade de Ensino Superior e sujeita a imprevistos que podem colocar em risco
a segurança de crianças e adolescentes, determinadas questões operacionais requerem soluções
urgentes. Foi necessário um esforço constante para estreitar ou criar vínculos com esses
serviços, assim como sensibilizá-los para a especificidade das demandas oriundas de um
estabelecimento de educação básica em relação às das unidades de ensino de nível superior.
16
A legitimação e explicitação das normas de convivência é uma pauta permanente e exige um processo constante
de discussão envolvendo alunos, professores e pais. A versão atual das « normas de convivência », disponível no
site da EA, cf. http://www3.ea.fe.usp.br/normas-regras-procedimentos/, apresenta nítido aprimoramento em
relação à versão produzida anteriormente.
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Tal aproximação supunha um bom conhecimento dos setores existentes na Faculdade
e mais amplamente na Universidade, que muitas das demandas dependiam de instâncias
centrais. Nesse sentido, o contexto da minha gestão foi muito favorável e bem distinto do
quadro subjacente aos períodos anteriores de instabilidade. Após a superação da crise que
precedera minha gestão, a Congregação da Faculdade de Educação mostrava-se convencida da
importância da escola.
Esse reconhecimento se fazia particularmente concreto na atenção dada pela
Professora Myriam Krasilchik aos assuntos ligados à escola. Sua escuta, ideias e grande
conhecimento dos interstícios da Universidade da qual havia sido Vice-reitora
17
, foram
decisivos para que soluções fossem encontradas no âmbito da própria Faculdade e, para o caso
destas não serem possíveis internamente, para nos dar acesso a instâncias centrais da
Universidade. A pertinência da existência da escola era também reconhecida ao nível da
reitoria, mostrando-se o então reitor Jacques Marcovitch muito receptivo a nossas solicitações.
O reforço da equipe administrativa que representou a chegada de Izabel Cristina Pereira,
funcionária que tinha um ótimo conhecimento das várias instâncias e serviços trabalhara
anteriormente na superintendência do Hospital Universitário foi também essencial para
podermos avançar na reorganização administrativa da escola.
No que tange à infraestrutura, as frentes foram diversas. Desde a troca de mobiliário e
a reforma de salas de aula (parte elétrica, hidráulica, divisórias), até a troca de cadeiras do
auditório, passando pela aquisição de novos computadores, compra de materiais e
equipamentos para as salas-ambiente. Para cada item, quando não obtido por meio do
orçamento da Faculdade de Educação, era preciso buscar recursos e imaginar formas originais
de mobilizar parceiros e doadores.
Por exemplo, numa ocasião, convidamos diretores de unidades de ensino cujo
orçamento era notoriamente conhecido como bem dotado, e com quem a Professora Myriam
tinha bom trânsito, para vir tomar um café da manhã na escola. Após esse momento de
confraternização, fizemos uma visita dos prédios mostrando as necessidades materiais e físicas
para as quais pedíamos ajuda. Lembro que desse evento pudemos obter a doação de recursos
para reformar inteiramente uma sala de aula e equipar o laboratório de informática com novos
computadores.
Um outro apoio com que contamos para tentar sanar as inúmeras necessidades
estruturais da EA foi a Associação de Ex-alunos, que se empenhou em tentar obter recursos
17
Na gestão do Reitor Flavio Fava de Moraes (1993-1997).
ISSN 2447-746X
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junto a iniciativa privada. Embora esta alternativa infelizmente sem êxito gerasse certa
discussão de princípios internamente à escola, as demandas eram tantas que não se podia
recusar nenhuma possibilidade de ajuda.
A solução para alguns problemas crônicos da escola nem sempre dependiam da
obtenção de recursos suplementares, mas sim do redesenho de sua organização administrativa.
Um bom exemplo é a biblioteca da escola, que por não figurar no organograma da biblioteca
da Faculdade de Educação não dispunha de verba para aquisição nem de cargo de bibliotecária.
Foram necessárias muitas reuniões para chegarmos ao consenso de que a solução seria
transformar a biblioteca da Escola de Aplicação num ramal da biblioteca da Faculdade, o que
dependia do intermediário do Serviço Integrado de Biblioteca (SIBI) da USP. Uma vez
existindo no organograma da biblioteca da FE a biblioteca da EA pôde também integrar o
catálogo eletrônico próprio à Universidade.
No que concerne ao quadro funcional, as mudanças se originaram de uma leitura das
necessidades que foi sendo feita gradualmente. Elas se concentraram sobretudo na equipe
administrativa e de apoio, que se encontravam desfalcadas e com atribuições confusas. Antes
de concluirmos pela urgência de aumentar o número de inspetores de alunos que compunham
a equipe de apoio, procedemos a um processo de explicitação de suas atribuições, baseado em
discussões com os vários profissionais envolvidos. A sistematização escrita desse processo de
discussão permitiu dar visibilidade e clareza às atribuições, permitindo argumentar a
necessidade de novas contratações e obter uma dinâmica mais fluida de interação com os
demais profissionais. Processo semelhante foi feito com a equipe administrativa, e com a equipe
técnico-pedagógica constituída pela direção e orientação pedagógica
18
.
Quanto à equipe pedagógica, que contava com 42 educadores entre generalistas do
Ensino Fundamental 1 e especialistas do Fundamental 2 e Ensino Médio, tratou-se de atender
a uma antiga reivindicação dos professores. Ocupando cargo de educador previsto no quadro
de servidores não docentes, os professores reivindicavam ajustes no processo de avaliação de
desempenho, cujo instrumento proposto pelo Departamento de Recursos Humanos (DRH) da
Universidade consideravam inadequado pois pautava-se nas atividades de servidores não
docentes. Após termos sensibilizado o DRH para a importância desta pauta, criamos uma
18
Meus arquivos pessoais possuem inúmeras versões de listas de atribuições para os diversos cargos. Relendo-as
vinte anos depois, essas inúmeras versões fazem pensar num exercício quase obsessivo que expressava a
necessidade de obter maior visibilidade quanto à organização de meu próprio trabalho assim como dos demais
membros dessas equipes.
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Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 7, p. 1-26, e021027, 2021.
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comissão mista que elaborou um novo instrumento, o qual, uma vez aprovado pelo DRH,
passou a ser aplicado nas avaliações anuais que se faziam com todos os servidores.
Essas medidas ilustram a necessidade de avaliar as demandas da escola tendo por
referência sua inscrição na Universidade e não as condições de funcionamento das escolas da
rede pública, com a qual a EA não tem vínculo funcional. Nesse sentido, o caráter de
exemplaridade ao qual faz referência Azanha (cf. supra), não deve ser entendido como a busca
de similaridade nos modos de funcionamento de universos tão distintos, mas como a capacidade
que deve ter uma escola de aplicação em tecer laços de colaboração com o seu entorno,
capacidade a ser desenvolvida por qualquer escola que, segundo o mesmo autor (AZANHA,
2004), sempre tem um endereço e uma vizinhança”.
Exemplos de Parcerias e Projetos
Assim, o esforço de aproximação da EA das demais instâncias da Universidade não
foi motivado somente pela necessidade de resolver problemas acumulados, mas também pela
intenção de criar laços para um melhor aproveitamento dos recursos disponíveis no âmbito do
campus do Butantã (São Paulo), território de implantação da EA. Como fazer com que a
presença um tanto insólita de uma escola de educação básica num campus universitário com
inúmeras unidades de ensino e pesquisa, serviços e instituições culturais fosse um fator de
enriquecimento mútuo?
Essa pergunta, transformada em princípio norteador, guiou o estabelecimento de várias
parcerias e projetos.
Como exemplo de parcerias estabelecidas como serviços da Universidade, podemos
citar a aproximação com o cinema situado no campus (Cinusp), que se dispôs a organizar
sessões especiais para os alunos da EA para projeção de filmes solicitados por professores.
Outro exemplo é a parceria estabelecida com a Coordenadoria Saúde e Assistência Social
(Coseas) órgão que passou a realizar a avaliação socioeconômica das famílias que desejavam
beneficiar de assistência, triagem anteriormente realizada internamente à escola. Além de
aliviar parte da sobrecarga que pesava sobre a equipe de orientação pedagógica da EA, esta
parceria dava visibilidade ao órgão competente quanto às necessidades socioeconômicas de
alunos e suas famílias, reforçando assim o pertencimento dos mesmos à “comunidade USP”.
Para ilustrar parcerias estabelecidas com outras unidades da USP, relato dois projetos
feitos com professores da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, ambos se originando do
desejo de resolver problemas concretos da EA.
ISSN 2447-746X
DOI: 10.20888/ridpher.v7i00.15957
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O primeiro refere-se ao processo de criação do novo uniforme e identidade visual para
a escola, objeto de queixas dos alunos. O que os incomodava não era a exigência de uniforme,
mas seu aspecto: achavam a logomarca feia, antiga lembro de dizerem que parecia “um ovo
frito”. O uso de uniforme também era bem aceito pelos pais, que viam nessa regra uma forma
de minimizar as desigualdades sociais no interior da escola e um fator de segurança, permitindo
que as crianças e adolescentes que circulassem pelo campus fossem identificados como alunos
da.
Discutindo de modo informal com colegas da equipe, veio a ideia de desencadear um
processo participativo de criação de um novo uniforme, inscrevendo-o na reelaboração da
logomarca da escola. Tratando-se de assunto que exigia competências específicas em artes
gráficas, entramos em contato com um docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,
Silvio Dvorecki e em seguida, com Rosa Iavelberg, docente de metodologia do ensino de artes
da Faculdade de Educação. O projeto devia contar com a participação dos alunos da escola,
mas responder a critérios de qualidade gráfica, por isso a ideia de mobilizar estudantes da FAU.
Numa primeira etapa os alunos dos primeiros anos do Ensino Fundamental foram convidados
a participar de uma oficina de artes conduzida por um grupo de estudantes do curso de
arquitetura. As pinturas produzidas nessa oficina foram expostas num saguão da FAU,
juntamente com o edital para um concurso destinado aos estudantes cujo objetivo era elaborar
a logomarca partindo das produções das crianças. Montamos uma comissão que selecionou os
três melhores trabalhos para posterior submissão ao voto dos alunos da EA. As propostas
selecionadas foram impressas em pôsteres nos quais se viam diversas possibilidades de
aplicação (camiseta de vários modelos, abrigo, boné, caneta, papel, etc.). Os enormes pôsteres
foram pendurados no pátio principal da escola para acolher os alunos no primeiro dia de aula
depois das férias. Surpresos e entusiasmados, os alunos votaram em massa. A logomarca
escolhida através desse processo é ainda hoje utilizada pela escola.
O segundo projeto visava intervir diretamente na estrutura física da escola, mais
especificamente nas áreas externas, cujos jardins estavam abandonados e subutilizados. A
parceria foi com os Professores Klara Kaiser Mori e Paulo Pellegrino, no âmbito da disciplina
de graduação “Paisagismo: projeto de plantação”. Os jardins da escola foram usados como
campo de estudo pelos estudantes em Arquitetura e Urbanismo. Ao virem à EA tomarem
medidas dos espaços, os estudantes contavam com a ajuda de alunos de algumas classes das
séries iniciais e do sexto ano do Ensino Fundamental aulas de geografia cujos professores
haviam aderido ao projeto. Com base nos estudos preliminares feitos pelos estudantes em
arquitetura, um anteprojeto para a reorganização das áreas externas da escola foi apresentado e
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discutido pela comunidade EA, resultando num projeto belo e adaptado às necessidades da
escola. Infelizmente nossas tentativas para captar recursos para sua execução não teve êxito e
até o final da minha gestão esta melhoria, tão necessária para renovar o espaço degradado, não
pôde ser executada.
Nesses dois exemplos, fica posta também a importância da dimensão estética de um
projeto de escola democrática, remetendo ao conceito de “boniteza” proposto por Paulo Freire
(2015). Os esforços empreendidos para construir laços com o entorno, no caso as unidades de
ensino e pesquisa e serviços presentes no Campus Butantã da Universidade de São Paulo,
mostram também a importância de inscrição da escola no território. Aliás, a questão do modo
como as práticas educativas tecem laços com o território veio a se tornar um eixo importante
de meus trabalhos de pesquisa posteriores (GALVÃO, 2007a, 2007b, 2019), em contextos
muito diversos do da EAFEUSP.
IV. ESTÁGIOS: UMA PRÁTICA INTEGRADA À PROPOSTA PEDAGÓGICA DA
ESCOLA
O acolhimento de estagiários é explicitado no Regimento da EA como um dos
objetivos da escola. Inerente ao estatuto de aplicação, este objetivo implica no reconhecimento
do papel de todos os agentes da escola na formação de professores e especialistas em educação.
Ele engendra um conjunto de tarefas que se somam às especificas ao trabalho pedagógico e que
representam um esforço considerável dado o elevado número de estagiários presentes na escola.
Recebíamos uma média de duzentos estagiários por ano, a maioria cursando Pedagogia
ou outras licenciaturas na Faculdade de Educação, sendo muito pequeno o número de
estagiários oriundos de outras universidades. Logo ao assumir a direção percebi que se tratava
de um ponto sensível nas relações entre a EA e a FE. Por parte de alguns profissionais da escola,
ouviam-se relatos de ressentimento quanto a críticas formuladas em relatórios de estágio
entregues a docentes da Faculdade, os mesmos exprimindo o desejo de um maior controle a ser
exercido sobre os estagiários e suas produções. Por parte de alguns docentes, pude ouvir críticas
quanto à pouca acessibilidade da Escola aos estudantes da Faculdade.
Acrescentava-se a essas queixas, minha percepção quanto à falta de organização no
encaminhamento dos estágios. Não havia uma rotina estabelecida para receber essas demandas,
tampouco para avaliar a possibilidade de acolhê-las; as formas de organização variavam muito
de uma área para outra e em função dos objetivos do estágio definidos pelo docente responsável.
As solicitações de estágio passavam por caminhos muito distintos: podiam chegar na mesa da
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diretora, na secretaria ou diretamente nas mãos de professores. Certas áreas possuíam rotinas
próprias e bons vínculos com docentes da Faculdade de Educação, como a área de ciências
humanas (que agrupava professores de história, geografia e filosofia) e a de língua estrangeira
(professores de inglês, francês), produzindo experiências formativas de boa qualidade e
colaboração fecunda do ponto de vista da escola. Outras eram claramente restritivas ao
acolhimento de estagiários.
Essas observações nos apontaram a necessidade de abrir um amplo debate sobre essa
prática, de modo a clarear objetivos, reforçar vínculos onde eles estavam esmaecidos, definir
procedimentos. Fizemos reuniões internas à escola para levantamento das práticas,
necessidades e sugestões; em seguida fizemos reuniões com docentes da faculdade para
conhecer suas ideias e expectativas.
Paralelamente, a FEUSP discutia a reforma curricular dos cursos de Pedagogia e
demais Licenciaturas, em adequação à Lei Federal 9394/96 (LDB) e à Deliberação 12/97 do
Conselho Estadual de Educação, diretrizes legais que valorizavam o papel do estágio na
formação do professor. A reestruturação da prática de estágios na EA pretendia assim oferecer
um parâmetro para os convênios que viriam a ser estabelecidos entre a FEUSP e as escolas das
redes estaduais e municipais.
O esforço que empreendemos foi o de promover um processo amplo envolvendo
professores e docentes, sem restrições à participação numa eventual comissão especialmente
criada para tal. Esse processo de discussão levou à identificação de práticas que funcionavam e
de problemas que deviam ser sanados, permitindo a elaboração de propostas para a
reorganização das atividades de estágio, visando torná-las mais integradas ao projeto
pedagógico da Escola.
As propostas resultantes desse processo de discussão tomaram forma num documento
intitulado “diretrizes para realização de estágios na EA”, amplamente distribuído em ambas as
instituições e entregue a cada estudante que procurava a escola em busca de um campo de
estágio. O documento indicava os encaminhamentos a serem seguidos da solicitação inicial à
entrega do relatório. A indicação desses trâmites era fundamental para que o recebimento de
solicitações de estágio, assim como o futuro acompanhamento do estagiário, entrasse numa
rotina que reduzisse o grau de interferência dessas atividades no funcionamento cotidiano da
escola.
Além disso, o documento explicitava o conceito de estágio proposto pela EA, visando
fornecer as bases para uma relação construtiva para as partes envolvidas. Essa concepção
desdobrava-se em dois pontos principais. O primeiro enfatizava a ideia de que o exercício da
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docência não se restringe a “dar aulas”, que esta prática se insere numa instituição escolar
com seus objetivos, tarefas e problemas concretos. O documento dava exemplos de atividades
e modos de inserção na vida da escola, além da participação e/ou observação em sala de aula:
reuniões pedagógicas, biblioteca, laboratório de informática, recreio, etc.
O segundo ponto enfatizava a importância de que a presença do estagiário
representasse uma contribuição efetiva para a consecução da proposta pedagógica da escola,
alertando o estudante, futuro profissional, de suas responsabilidades como educador. No
subtítulo “observação, colaboração e crítica”, o documento fornecia elementos para balizar a
relação entre estagiário e escola e para orientar a postura das partes envolvidas. Esses
elementos, embora insuficientes para eliminar desencontros e eventuais conflitos, eram
importantes para reduzir os mesmos e evitar cristalizações, nefastas para as relações entre a EA
e a FEUSP.
Consultando o site da EA, constato que a versão atualizada e melhorada das
“diretrizes para realização de estágios”, mantém o conteúdo desse item tal como fora formulado
em sua versão primeira, deslocando-o do final do documento para sua introdução:
Espera-se que a relação entre estagiários e profissionais da escola seja de
colaboração e aprendizado mútuo. Para isso, é preciso que o estagiário respeite
o professor como profissional com mais experiência na instituição e que o
professor da escola veja o estagiário como pessoa capaz de contribuir, seja por
meio de suas ações, seja por meio de seu olhar.
O fato de não pertencer à instituição permite ao estagiário um olhar
distanciado sobre o cotidiano escolar, favorecendo que ele perceba coisas
muitas vezes "invisíveis” para aqueles que vivenciam mais tempo esse
cotidiano. Assim, as críticas, os comentários e as sugestões dos estagiários
serão bem recebidas. Contudo, atitudes de desrespeito frente aos alunos ou
profissionais da Escola serão analisadas e, conforme o caso, poderão resultar
no desligamento do estagiário.
19
Explicitando as bases para uma relação de aprendizado mútuo esses elementos
enfatizam a ideia de que o estágio se inscreve numa concepção do trabalho pedagógico como
prática em permanente construção, que exige reflexão contínua e se beneficia do diálogo entre
diferentes pontos de vista. Nesse sentido, o acolhimento de estagiários oriundos da Faculdade
de Educação representa uma contribuição efetiva para a formação de educadores
potencialmente comprometidos com o ensino publico, na medida em que possibilita uma
experiência formativa coerente no âmbito de uma escola pública de qualidade.
19
« Diretrizes para realização de estágio na EAFEUSP » (versão atualizada em fev/2019, modificada em mai/21,
revista em ago/21), Disponível em: http://www3.ea.fe.usp.br/estagios/. Consultado em 09 setembro 2021.
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V. PARÂMETROS PARA SE REPENSAR AS PRÁTICAS DE PESQUISA:
COLABORAÇÃO E RECIPROCIDADE
A promoção de projetos de pesquisa visando ao aperfeiçoamento do processo
educativo aparecia como segundo objetivo da EA no Regimento de 1998 e sua consecução
concentrou parte importante de minhas reflexões e ações durante o período de 1998 a 2001.
O fato de estar situada na cidade universitária a tornava objeto de frequentes
solicitações provenientes das mais diversas unidades e institutos: Faculdade de Medicina,
Instituto de Psiquiatria, Instituto de Psicologia, Instituto de Ciências Biomédicas, Faculdade de
Odontologia, Escola de Educação Física, Faculdade de Ciências Farmacêuticas, Faculdade de
Saúde Pública… Embora algumas dessas solicitações, quando aceitas, se convertessem em
prestação de serviços e potenciais benefícios à comunidade escolar, chamou-me a atenção o
pequeno numero de projetos ligados à educação. Chamou-me atenção também a carga de
trabalho que decorria dos encaminhamentos ligados a essas atividades, entre o exame de
numerosas propostas recebidas e o acompanhamento dos projetos em curso. Não havia rotina
nesses encaminhamentos, nem tampouco registro sistemático das pesquisas em curso e/ou
realizadas, o que impedia uma avalição destas.
Foi assim que nos aproveitamos de um edital lançado pela Pró-Reitoria de Pesquisa e
elaboramos um projeto solicitando uma bolsista para proceder a um levantamento dos projetos
e fornecer subsídios para a avaliação do impacto das pesquisas que vinham sendo realizadas na
Escola de Aplicação. A bolsista
20
deveria também auxiliar no acompanhamento das pesquisas
em curso, visando aliviar a carga de trabalho que recaía sobre a direção e a orientação
pedagógica. O levantamento realizado (1988-1998) confirmou que a maior parte das pesquisas
provinha de campos outros que os relativos à educação. Apontou também que a escola estava
se comportando mais como receptora de pesquisas, pouco ousada na proposição de projetos.
Juntamente com esse levantamento, desencadeamos um processo de discussão interno
à escola, buscando uma escuta ampla sobre as experiências vividas, as expectativas e eventuais
necessidades que justificariam a colaboração com pesquisadores. Num procedimento
semelhante ao empregado com os estágios, elaboramos um documento sistematizando as
diretrizes para a realização de pesquisas na EA
21
, o que nos permitia estruturar a recepção e
avaliação das propostas recebidas.
20
Erica Benvenuti cursava o quarto ano de pedagogia na FEUSP.
21
Para versão atualizada das mesmas, cf. http://www3.ea.fe.usp.br/pesquisa/.
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Foram feitos esforços para estabelecer vínculos com pesquisadores que pudessem
atender às necessidades identificadas na escola, dinamizando o protagonismo desta que não
mais se posicionava como simples « campo » mas se colocava também na origem da
colaboração com pesquisadores. O amplo processo de diálogo empreendido com os docentes
da FE deu credibilidade ao potencial da escola como parceira de pesquisa, aumentando o
número de propostas de colaboração emanando da Faculdade e incentivando os professores da
EA a expressarem demandas ou a se engajarem em processo de pesquisa no âmbito da Pós-
Graduação.
O grande número de projetos em curso exigia um esforço constante de sistematização
para permitir uma melhor coordenação e dar visibilidade dos mesmos à equipe pedagógica.
Relendo o quadro de síntese que produzi em agosto de 2000, constato uma dezena de projetos
de pesquisa em andamento naquele momento. Essas colaborações, com docentes da FE e de
outras unidades da USP, tomaram diversas formas, muitas delas contando com financiamento
de agências de fomento.
Partindo dos elementos contidos na referida síntese, o quadro abaixo apresenta uma
breve descrição dos projetos, com os seguintes dados: título do projeto; instituição parceira e/ou
docente responsável; financiamento; caracterização sumária.
Projetos de pesquisa em andamento, agosto de 2000
22
“Prevenção do uso de drogas”; Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas (GREA), resp. Artur Guerra
de Andrade, Faculdade de medicina USP; FAPESP, linha “melhoria do ensino público”, bolsa para 6 professores-
pesquisadores EA; concepção e realização de ações de prevenção após diagnostico baseado em questionário
respondido pelos alunos.
“Preservando a memória do Ensino blico Paulista: a Escola de Aplicação (1959-1999)”; Centro de Memória
FEUSP, resp. Diana Gonçalves Vidal; FAPESP linha “melhoria do ensino publico”, bolsa para 3 professores-
pesquisadores; organização e conservação dos arquivos da escola, com envolvimento de alunos.
“Gênero, fracasso escolar e indisciplina”; Prof. Dra. Marília Pinto de Carvalho (FEUSP); FAPESP; observação
participante em classes do ensino fundamental 1, restituição e discussões com equipe de professoras.
“Educação ambiental: mudança de comportamento frente à questão do lixo”; bolsa de Iniciação Científica (IC)
integrada a Projeto Temático FAPESP coordenado pela Prof. Dra. Myrian Krasilshik (FEUSP); atuação do bolsista
IC junto à comunidade escolar.
“Videopsicodrama pedagógico, pedagogia da comunicação e educação: formação em temas emergentes e
urgentes: sexualidade”; Prof. Dra. Heloisa Dupas (FEUSP), Dr. Ronaldo Pamplona; vivências de psicodramas em
torno da questão da sexualidade, envolvendo professores e alunos do Ensino Médio.
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Síntese de documento de uso interno, arquivo pessoal.
ISSN 2447-746X
DOI: 10.20888/ridpher.v7i00.15957
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 7, p. 1-26, e021027, 2021.
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“Horários escolares e ritmo de sono e vigília das crianças e dos adolescentes”; Grupo Multidisciplinar de
Desenvolvimento e Ritmos Biológicos (GMDRB) do Instituto de Ciências Biomédicas USP, resp. Luiz Menna-
Barreto; acompanhamento do impacto da mudança da 5a série do EF do período da manhã para o da tarde.
“Ensino de Física”, Prof. Dra. Anna Maria Pessoa de Carvalho (FEUSP); formação e acompanhamento a
professoras do primeiro ciclo do Ensino Fundamental visando a implantação de atividades de física.
“Língua portuguesa: discussão curricular e de princípios”; Prof. Dr. Claudemir Belintane, Prof. Dra. Neide Luzia
de Rezende; envolvendo professoras do primeiro ciclo EF e da área de língua portuguesa, sob a forma de reuniões
periódicas e atividades de formação.
“Laboratório Didático Virtual de Física”; Instituto de Física USP; Fundação Vitae, Secretaria Estadual de
Educação; envolvendo professores de física e matemática do Ensino Fundamental 2 e Ensino Médio.
No documento original do qual essa síntese foi extraída, os projetos aparecem
classificados em duas categorias pesquisa/intervenção, pesquisa/formação. Ao articular o
termo “pesquisa” a um segundo termo, esta classificação sinaliza que todos contavam com
algum tipo de participação direta de professores ou de alunos da EA. Como indica o quadro
acima, dois deles contavam inclusive com financiamento na linha “melhoria do ensino público”
da Fapesp, sendo nove o número de professores bolsistas.
O projeto “Letras e livros”, mencionado anteriormente, ausente do quadro por não
se basear em parceria com pesquisador externo à EA, merece ser destacado por se tratar de
exemplo de pesquisa/intervenção plenamente absorvida pela escola. A despeito do afastamento
por aposentadoria da Prof. Dra. Heloysa Dantas, o projeto prosseguiu com a atuação de
estagiários financiados por bolsa-trabalho COESAS, sob a coordenação da equipe de orientação
pedagógica. Marlene Isepi, atual diretora da EA e na época orientadora pedagógica, fez dele
objeto de sua dissertação de mestrado
23
em educação, dando prosseguimento à dimensão de
pesquisa presente no início.
O ingresso de professores da EA na pós-graduação deve ser sublinhado como uma
pertinente modalidade de integração entre a escola e a Faculdade de Educação. Representa um
ponto alto da perspectiva colaborativa que procuramos incentivar, o objeto da investigação
correspondendo ao intuito de melhor compreender dimensões da prática pedagógica do
professor-pesquisador e da escola
24
.
23
“Interações adulto-criança em situações de leitura: a experiência do Projeto Letras e Livros”, dissertação de
mestrado sob orientação da Prof. Dra. Marta Kohl de Oliveira, defendida na FEUSP, em 1999.
24
Tive a oportunidade de orientar o mestrado de três colegas da EA: « O que os alunos dizem sobre avaliação? »,
de Beatriz Cortese, 2004; « Reflexões a partir da prática de orientação sexual na Escola de Aplicação da FEUSP »,
de José Carlos Carreiro; 2005. « Memórias de uma escola - uma história da Escola de Aplicação da FEUSP contada
a partir de entrevistas com ex-alunos (1974-1990) », de Jussara Vaz Rosa, 2005, todas defendidas na FEUSP.
ISSN 2447-746X
DOI: 10.20888/ridpher.v7i00.15957
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 7, p. 1-26, e021027, 2021.
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Recusando que a escola seja simplesmente vista como campo de “coleta” de dados ou
de “aplicação” de teorias e métodos de ensino elaborados em laboratórios acadêmicos numa
posição de assujeitamento esse processo de reorganização da prática de pesquisa da Escola
de Aplicação reforça a convicção quanto à necessidade de se pensar a pesquisa educacional em
meio escolar levando em consideração o ponto de vista da escola e seus protagonistas.
CONCLUSÃO
Embora não exaustivas, as memórias compartilhadas nesse texto abrangem diversos
aspectos da vida da EAFEUSP a partir da experiência que tive à frente da direção, num
aprendizado que marcou meu percurso posterior como educadora e pesquisadora. O relato de
aspectos próprios à gestão escolar evidencia uma preocupação permanente com a organização
e estabelecimento de procedimentos para o funcionamento das instâncias de participação,
atribuições dos diferentes perfis profissionais, atividades de estágio e pesquisa. Esta intenção
de clarificar e sistematizar, aguda em momentos de restruturação, deve, contudo, manter-se
vigilante para o risco de criar uma rigidez excessiva, ou mesmo burocratização, que venha a
impedir a criatividade necessária para enfrentar os desafios que se apresentam cotidianamente
a qualquer escola.
O esforço permanente para incitar o debate em torno da construção do projeto político-
pedagógico destaque à importância de inscrevê-lo num processo de reflexão coletiva baseado
no diálogo entre os vários atores da comunidade escolar profissionais, alunos, famílias, num
processo frágil que deve ser permanentemente cultivado. Não basta instalar as instâncias
previstas no Regimento para assegurar a participação e escuta necessárias a uma gestão que se
quer democrática.
Esta orientação vale também para a integração da EA com os demais departamentos e
serviços da Faculdade de Educação. Se o pertencimento da diretora ao corpo docente da FE se
mostrou útil para esta integração, o acúmulo das tarefas de gestão de uma escola às de docente
universitário cargo submetido a forte pressão de produtividade é exigente e difícil de
conciliar. Por isso a necessidade de manter canais efetivos de diálogo e contar com a vontade
política das instituições para garantir à escola os meios necessários ao seu bom funcionamento.
Uma escola de aplicação será exemplar se, com os meios compatíveis às instituições
a que pertence, ela for comprometida em assegurar o desenvolvimento e a aprendizagem de
todos os seus alunos e buscar formas para tornar públicas suas práticas. É graças a esse
compromisso que ela pode se constituir em ambiente formador para futuros professores.
ISSN 2447-746X
DOI: 10.20888/ridpher.v7i00.15957
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Do ponto de vista das atividades de pesquisa, trata-se de construir vínculos de
reciprocidade entre escola e pesquisadores externos, em que a primeira possa assumir papel
ativo na formulação de problemas e participar de igual para igual na definição do papel que lhe
interessa ocupar. O protagonismo a ser exercido pela escola não implica na utilização de uma
metodologia única. Se abordagens do tipo pesquisa-ação (MONCEAU, 2005) ou pesquisa
colaborativa (DEGAIGNÉ, 1997) são referências evidentes, o mesmo pode ser assegurado em
outras abordagens, como por exemplo pesquisas de tipo etnográfico, desde que estas sejam
atentas à construção dessa relação de reciprocidade (LE-STRAT, 2017) entre as partes
envolvidas.
Ao terminar este texto, a lembrança do grande número de projetos e parcerias traz à tona
o sentimento estimulante de desafio, mas também a impressão de excesso vividos na época.
Mesmo que essas ações tenham ganho coerência graças ao trabalho de reflexão e sistematização
empreendido, a sobrecarga de trabalho que esta intensa atividade gerava para a equipe escolar
alerta para a necessidade de uma estrutura adequada para acompanhar tais projetos de forma a
que não prejudiquem o trabalho pedagógico cotidiano com os alunos.
O equilíbrio entre uma escola fechada em seus muros e em seu próprio cotidiano e uma
escola aberta a colaborações, com atores externos, é tênue e difícil de ser atingido. A busca
desse equilíbrio é um desafio que se apresenta a qualquer escola, seja quando esta se implica
voluntariamente num processo de abertura, seja quando se vê objeto de solicitações exteriores.
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Recebido em: 30 de setembro de 2021
Aceito em: 30 de novembro de 2021