ISSN 2447-746X Ridphe_R
DOI: 10.20888/ridpher.v7i00.15797
1
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 7, p. 1-5, e021006, 2021.
RESENHA
MEIHY, José Carlos S. B.; SEAWRIGHT, Leandro. Memórias e narrativas: história oral
aplicada. São Paulo: Contexto, 2020. 192 p.
João Lorandi Demarchi
Universidade de São Paulo
joao.l.demarchi@gmail.com
Caminhos para história oral: do projeto à transcriação
O livro “Memórias e narrativas” dos historiadores José Carlos Meihy e Leandro Seawright
é por um lado uma introdução ao campo da história oral, escrito para pesquisadores iniciantes
acadêmicos ou não que se veem envolvidos nos desafios de estudar e trabalhar com a memória
de expressão oral; mas por outro lado, ele é também uma sistematização dos conceitos, reflexões e
teorias desenvolvidos pelos autores ao longo de suas trajetórias acadêmicas e de atuação, sobretudo
como integrantes do Núcleo de Estudos em História Oral da Universidade de São Paulo (NEHO-
USP). A generosidade do livro está justamente : ao apresentar a complexidade do campo da
história oral, os autores explicitam seus posicionamentos frente a esse cipoal, desembaraçando os
caminhos a serem percorridos pelos neófitos pesquisadores que se debruçam sobre a memória e a
história.
O perfil didático do livro reafirmado pelos boxes que destacam partes do texto ao longo
de todos os catulos incorre por diversas vezes em um esquematismo que, embora evite
simplificações, no nimo atalha os debates e as contradições das abordagens sobre história oral.
Considerando que não são objetivos dos autores desenvolver essas reflexões nem se aprofundar no
estado da questão da história oral, eles apresentam os contrapontos apenas à medida que chamam
atenção para riscos e erros a que o historiador oral está sujeito. É o que se verifica, por exemplo,
na Leitura Complementar do primeiro capítulo, denominada “Memória de expressão oral: em busca
de um estatuto”, sobre a famigerada querela entre os queprofessam a manutenção da hisria oral
como complemento e outros [que] propugnam a sua independência e autonomia” (MEIHY;
SEAWRIGHT, 2020, p. 52). Os autores demarcam sua defesa por esta última definição como
característica do campo da história oral e a caracterizam, para além disso, como uma metodologia
que possui procedimento procedente organizado de investigação, de comprometimento
ISSN 2447-746X Ridphe_R
DOI: 10.20888/ridpher.v7i00.15797
2
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 7, p. 1-5, e021006, 2021.
doutrinário e filofico, orientado para a obtenção de resultados a partir de um núcleo documental
específico” (MEIHY; SEAWRIGHT, 2020, p.56).
Ironicamente, a apresentação das especificidades desse campo autônomo de atuação e de
reflexão contrastam com a posição periférica a que é relegada a história oral no Departamento de
História da USP, de onde proveem os autores e o próprio NEHO. Tanto no conjunto das disciplinas
obrigatórias quanto no conjunto das disciplinas optativas para o bacharelado em História, não
oferta de nenhum curso que tenha como discussão central a história oral
1
.Desse modo, é possível
formar-se historiador na USP sem percorrer minimamente as discussões mencionadas no livro.
Portanto, presume-se que os conceitos e metodologia apresentados por este livro sejam
recomendados inclusive para os egressos dos cursos de história, não pela sua utilidade prática,
mas também pela apresentação de reflexões, a partir de uma teorização significativa para a atuação
em história oral.
São pressupostos do livro que o trabalho com a memória de expressão oral já superou os
debates acadêmicos e tem envolvido diversos coletivos e empresas empenhados em valorizar as
narrativas e memórias de determinados grupos sociais acerca de um local ou tema específico. Por
isso, os autores pretendem oferecer dimensões práticas e úteis sobre como desenvolver um trabalho
no campo da história oral, e apresentar significativas reflexões críticas não para acadêmicos.
Trata-se da aplicação da história oral, revelada no subtítulo.
A começar a ler o livro pelos paratextos elementos que acompanham o texto em si e
servem para apresentá-lo, identificá-lo, auxiliando na leitura –, na quarta capa, se lê: “Memória e
História podem parecer, para muitos, apenas denominações distintas de cnicas que visam ao
resgate do passado” (grifo meu). O leitor iniciado nas discussões historiográficas ficaria espantado
com a conotação dada por esse trecho a um passado que poderia ser atendido, cuidado e
ressuscitado. Quando se pensa na dinamicidade da Memória, então, essa consideração do
transcorrido como objetivamente palvel subordina o trabalho mnemônico e a elaboração
subjetiva dos fatos, restringindo-os à verificação dos depoimentos. No entanto, não se pode julgar
o livro pela quarta capa. Os autores o compactuam com essa concepção. Na página 86, por
exemplo, escrevem: “Memória individual ou coletiva é movimento dinâmico e mutável. Por
1
A grade curricular do bacharelado em História na USP pode ser verificada em:
https://uspdigital.usp.br/jupiterweb/listarGradeCurricular?codcg=8&codcur=8030&codhab=103&tipo=N. Acesso
em: 24 jul. 2021.
ISSN 2447-746X Ridphe_R
DOI: 10.20888/ridpher.v7i00.15797
3
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 7, p. 1-5, e021006, 2021.
isso, não se pode falar em ‘resgate da memória’, como se o processo de ‘recordação’ fosse
reintegrado de maneira integral no conjunto mnenico das comunidades”.
Há outras significativas contribuões a partir de conceitos e reflexões para a valorização
das memórias e narrativas. A começarmos pelas orientações éticas do trabalho com memória, os
autores destacam o cuidado que se deve ter com os interlocutores, desde a elaboração dos projetos
que orientarão as entrevistas até a transformação da entrevista oral em documento escrito.
Em relação às entrevistas, os autores evidenciam a importância desse momento em que os
entrevistados elaboram sua memória a partir dos questionamentos e do ambiente a que o
submetidos. Embora a memória seja exteriorizada oralmente, é necessário que os entrevistadores
estejam atentos à performance total dos seus interlocutores. Estes deverão ser estimulados a
desenvolverem ideias e impressões, por isso a importância de não serem elaboradas perguntas
limitadoras e fechadas. É preciso perceber as pausas, os gestos, as variações na fala, as emoções,
os silêncios. Os autores alinham-se à afirmação de Ecléa Bosi: “cabe a nós interpretar tanto a
lembrança quanto o esquecimento” (2003, p. 18). E nesse esforço interpretativo está a importância
do caderno de campo, um diário íntimo, em que os pesquisadores deverão anotar suas impressões
e outras observações sobre o transcorrer das entrevistas. Ele será útil na transcrão das entrevistas.
No entanto, como os autores insistem em destacar, entrevistas isoladas e independentes
o se constituem em história oral. Para tanto, é preciso elaborar um projeto: definir o tema que
será trabalhado, quais são os objetivos pretendidos, estipular o grupo de interlocutores, a colônia e
sua rede; elaborar a justificação, estabelecer qual será o corpus documental; e levantar hipóteses.
O projeto norteará todo o percurso a ser desenvolvido, servindo como referência e coesão para as
entrevistas, sem que isso signifique rigidez, tampouco intransincia. É preciso aceitar e incorporar
as imprevisibilidades que surgirem no meio do caminho. Ao final, a “história do projeto será
escrita e exposta justamente como forma de elucidar a todos a trajetória do trabalho, os pontos de
partidas escolhidos, os desvios, as decisões, as correções.
O protagonismo dos interlocutores é primordial. Eles não devem ser considerados como
depoentes, objetos da pesquisa nem informantes, mas como colaboradores. São eles que irão
desenvolver o trabalho conjuntamente com os pesquisadores. Devido à vocação pública dos
projetos de história oral, ao seu sentido democrático e ao seu apelo social, eles devem ser
desenvolvidos para e com os colaboradores, em consonância com as suas demandas. Ainda que
ISSN 2447-746X Ridphe_R
DOI: 10.20888/ridpher.v7i00.15797
4
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 7, p. 1-5, e021006, 2021.
seja destacada a contribuição da contradição, buscar ouvir grupos que se contrapõem aos
interlocutores prioritários, como exercício democrático, pode revelar a complexidade do tema.
A relação estabelecida com os colaboradores deve ser ética e empática. Na abordagem de
memórias difíceis, os pesquisadores devem respeitar as recusas em prosseguir ou se aprofundar em
determinados assuntos. O diálogo será bem-sucedido apenas a partir da confiança constrda entre
os interlocutores e os entrevistadores. Por isso, os autores indicam que deve ser feita mais de uma
entrevista ao longo do tempo para que os sujeitos se conheçam e estabeleçam relações de maior
proximidade. Nesse sentido, os autores tangenciam o tema das entrevistas por meio de aplicativos
de reuniões virtuais. Embora eles considerem o diálogo virtual e não o desprezem no trabalho com
história oral, eles apontam a conveniência de se estabelecer pelo menos um primeiro contato
presencial para que as pessoas se conheçam minimamente.
Como este livro foi publicado em maio de 2020, ele foi finalizado às vésperas do
distanciamento social que vem ocorrendo pela pandemia. Ao longo dos 16 meses de isolamento (e
contando) muitos trabalhos de história oral não puderam ser paralisados, de modo que eles tiveram
que ser adequados às exigências sanitárias e, com isso, os pesquisadores foram impelidos a criar,
inventar ou adequar metodologias de entrevistas para manter o diálogo com os colaboradores e
executar os trabalhos pendentes. Assim, os recursos e aplicativos digitais foram instrumentos
providenciais, embora impregnados de limitações. Por isso, a reflexão crítica sobre a relação entre
história oral e o uso desses tipos de tecnologia deverá ser revisitada e aprofundada, não em
edições posteriores, mas em outros esforços teóricos.
Ainda no campo da ética e da empatia, os autores desenvolvem o conceito de transcriação.
Inspiram-se nas concepções de liberdade da tradução de poemas propostas por Haroldo de Campos.
Trata-se da transcrição das entrevistas como um processo artesanal e criativo. Os colaboradores
participam centralmente e têm a decisão final do que poderá ser registrado ou deverá ser suprimido.
Como concebido pelo livro, as entrevistas não são o fim da história oral, mas sim um meio para se
atingir a materialidade documental que possibilite condições para a análise. Nesse sentido, “o que
interessa é a boa recepção do escrito, fato que implica pensar que as ideias são mais relevantes do
que a transposição perfeita das palavras.” (MEIHY; SEAWRIGHT, 2020, p. 133). Essa
transformação da oralidade em escrito é um procedimento que consiste em desnaturalizar a
memória disparada pela fala, expressão de humanidade, dando nova forma. Ao cabo, o tratamento
ISSN 2447-746X Ridphe_R
DOI: 10.20888/ridpher.v7i00.15797
5
Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 7, p. 1-5, e021006, 2021.
dado às entrevistas deve visar tornar a memória de expressão oral compreensível, respaldando-se
na livre performance e no protagonismo do colaborador.
REFERÊNCIAS
BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê, 2003.
MEIHY, José Carlos S. B.; SEAWRIGHT, Leandro. Memórias e narrativas: história oral
aplicada. São Paulo: Contexto, 2020.
Recebido em: 27 de julho de 2021
Aceito em: 18 de setembro de 2021