processo de democratização da sociedade brasileira e a progressiva queda do seu véu colonial,
essa manifestação cultural vem se configurando como um exuberante patrimônio imaterial da
cultura brasileira consubstanciado por uma profusão de ações articuladas que passam pela
identificação, documentação, investigação, proteção, promoção, valorização e transmissão
desse saber (IPHAN, 2017) que, por sua vez, agrega, de forma inextrincável, numa mesma
prática sistematizada, diversos elementos culturais estruturantes da condição humana, como a
luta, o canto, a dança, o jogo e a brincadeira.
Ressaltamos que, para que a roda de capoeira, hoje oficialmente registrada como
patrimônio cultural imaterial, possa ser plenamente exercitada, ela necessita de certa
materialidade, como, por exemplo, a produção do berimbau, que implica na extração e no
preparo da madeira, na colheita e no aprontamento da cabaça para o seu uso como caixa de
ressonância, na retirada do arame de pneu de automóvel, na confecção do caxixi, na feitura do
dobrão e na produção da baqueta de madeira, conforme detalharemos posteriormente.
Ademais, desde os anos 1930, alguns intelectuais, como Mário de Andrade, Di
Cavalcanti e Graça Aranha, interessados na discussão sobre o conceito de patrimônio cultural,
alertavam que não há um bem cultural essencialmente imaterial, uma vez que para produzir
bens culturais de qualquer natureza, as pessoas precisam necessariamente de lugares,
equipamentos, instalações, artefatos etc. Há, portanto, um dinamismo nesse processo
(FONSECA, 2003).
A capoeira tem sido pródiga ao incorporar esse dinamismo cultural em sua própria
estrutura configuracional. Inicialmente, aquele aparentemente dissimulado e inocente jogo de
corpo foi se entrelaçando dinamicamente com outros elementos culturais como as lutas, os
rituais de passagem, as indumentárias, os instrumentos musicais e as cantigas.
A pesquisadora Emília Biancardi, em sua obra: “Raízes Musicais da Bahia”, afirma que
as cantigas passaram a fazer parte das rodas de capoeira somente na década de 1930. Em suas
palavras:
A música cantada, conforme pude aprender junto ao saudoso Mestre Pastinha,
durante as longas conversas que com ele mantive, só começou a ter sequência
(ladainha e corrido) e a adquirir importância na década de [19]30 e começos
dos anos [19]40. Antes disso, o que predominava era a música instrumental,
sobretudo o berimbau e, depois deste, o pandeiro. Mestre João Grande
concorda com a opinião do referido Mestre, afirmando que, nas rodas feitas
aos domingos, nos bairros da Liberdade, Pau Miúdo e Lapinha, em Salvador,
a música era pouco cantada, predominando nela a parte instrumental. [...]
Outro prestigiado capoeirista, Mestre João Pequeno, confirmou esse fato, ao
dizer que, na época em que começou a lutar Capoeira, nos anos [19]40, as
cantigas eram pouco usadas, prevalecendo no jogo a parte Instrumental
(BIANCARDI, 2006, p. 108).