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DO ARCO MUSICAL PRIMITIVO AO BERIMBAU DE BARRIGA:
A TRAJETÓRIA DO INSTRUMENTO MOR DA CAPOEIRA
José Luiz Cirqueira Falcão
Universidade Federal de Goiás
joseluizfalcao@hotmail.com
Marcos Duarte de Oliveira
Força Aérea Brasileira, Brasil
mkgunganago@gmail.com
RESUMO
Esse estudo tem por objetivo analisar a trajetória do milenar arco musical até a sua configuração
brasileira como o conhecemos. O berimbau de barriga é hoje considerado, mundialmente, o
principal instrumento da capoeira em todas as suas vertentes. Para atender aos objetivos dessa
investigação, apresentaremos algumas lutas que utilizam instrumentos musicais para a sua
prática, destacando o fato de que nenhuma delas utiliza o arco musical como acompanhamento,
tal como ocorre com a capoeira. Apresentaremos ainda dados alusivos a alguns arcos musicais
antecessores ao berimbau de barriga, conhecidos e divulgados pela humanidade, bem como, os
primeiros registros que evidenciam a presença desse instrumento na capoeira. Defendemos a
ideia de que o berimbau de barriga é uma ressignificação do arco musical africano, ocorrida no
Brasil, no início do século XX.
Palavras-chave: Arco musical. Berimbau de barriga. Capoeira.
DEL ARCO MUSICAL PRIMITIVO AL BERIMBAU DE BARRIGA:
TRAYECTORIA DEL INSTRUMENTO PRIMORDIAL DE LA CAPOEIRA
RESÚMEN
Este estudio tiene por objetivo analizar la trayectoria del milenario arco musical hasta su configuración
brasileña como la conocemos en nuestros días. El berimbau de barriga es hoy considerado,
mundialmente, el principal instrumento de la capoeira en todas sus vertientes. Para atender a los
objetivos de esta investigación, presentaremos algunas luchas que utilizan instrumentos musicales para
sus prácticas, destacando el hecho de que ninguna de ellas usa el arco musical como acompañamiento,
tal como ocurre con la capoeira. Presentaremos incluso datos alusivos a algunos arcos musicales
anteriores al berimbau de barriga, conocidos y divulgados a lo largo de toda la humanidad, así como los
primeros registros que evidencian la presencia de este instrumento en la capoeira. Defendemos la idea
de que el berimbau de barriga es una resignificación del arco musical africano ocurrida en Brasil a
principios del siglo XX.
Palabras clave: Arco musical. Berimbau de barriga. Capoeira.
FROM THE PRIMITIVE MUSICAL ARCH TO THE BELLY BERIMBAU:
THE PATH OF CAPOEIRA'S MAIN INSTRUMENT
ABSTRACT
This study aims to analyze the trajectory of the millenary musical arch until its Brazilian
configuration as we know it. The belly berimbau is today considered, worldwide, the main
instrument of capoeira in all its aspects. For the purpose of this investigation, we present some
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fights that use musical instruments for their practice, highlighting the fact that none of them use
the musical bow as accompaniment, as it occurs in capoeira. We also present data alluding to
some musical arches that preceded the belly berimbau, known and disseminated by humanity,
as well as the first records that show the presence of this instrument in capoeira. We argue that
the belly berimbau is a new meaning given to the African musical arch, done in Brazil, at the
beginning of the 20th century.
Keywords: Musical bow, belly berimbau, capoeira.
DE L'ARC MUSICAL PRIMITIF AU BERIMBAU DE BELLY:
LE CHEMIN DE L'INSTRUMENT « MOR DA CAPOEIRA »
RÉSUMÉ
L´objectif de cette étude est d´analyser la trajectoire du millénaire arc musical jusqu´à sa configuration
brésilienne comme nous la connaissons. Le “berimbau ventral est considéré, mondialement, comme
principal instrument de tout genre de capoeira. Pour arriver aux objectifs de cette recherche, nous
présenterons quelques luttes qui utilisent des instruments musicaux pour leur pratique, ressortant le fait
qu´aucune d’elles utilise l´arc musical comme accompagnement, tel comme il se passe avec la capoeira.
Nous présenterons également des données faisant allusion à certains arcs musicaux qui ont précédé le
berimbau ventral, connus et diffusés par l'humanité, ainsi que les premiers enregistrements qui montrent
la présence de cet instrument dans la capoeira. Nous défendons l'idée que le berimbau ventral est une
redéfinition de l'arc musical africain, qui a eu lieu au Brésil, au début du 20ème siècle.
Mots clés: Arc musical. Berimbau ventral. Capoeira.
INTRODUÇÃO
“Berimbau, berimbau, berimbau,
uma cabaça, um arame, um pedaço de pau”
(Domínio Público)
O berimbau de barriga, tal como conhecemos hoje (Figura 1), consiste num arco musical
com uma cabaça acoplada e toca-se percutindo o arame com uma baqueta e um dobrão,
encostando e afastando a cabaça do abdômen.
FIGURA 1- berimbau de barriga
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Entretanto, pairam muitas dúvidas sobre a sua história, sua composição e suas diversas
configurações. Afinal, quando se deu a associação do berimbau de barriga à capoeira? Qual é a
matéria prima utilizada para a confecção do berimbau de barriga? Em qual categoria de
instrumento musical o berimbau de barriga se insere? Quais são os componentes de um
berimbau de barriga? Essas e outras questões constituem o mote das nossas investigações e
procuramos respondê-las utilizando fontes históricas, resultados de pesquisas e depoimentos de
mestres de capoeira antigos que se interessam pela história desse instrumento.
Em uma de suas inúmeras obras, o filósofo catalão, Josef Pieper, que viveu entre 1904
e 1997, sabiamente destacou: “a música é um secreto filosofar da alma, ao se encontrar tão
próxima com os fundamentos da existência humana” (PIEPER, 2015).
Essa magnífica síntese expressa, de pronto, o valor que a música angaria em
praticamente todas as diferentes culturas.
Algumas manifestações de luta, especialmente na África, tais como: Ladja (ou
Danmyé), Bombosa, Moringue, Mousondi e o Borey, são acompanhadas de instrumentos
musicais.
A música, embora possa ser executada apenas pela entonação harmônica da voz, pode
vir acompanhada por uma infinidade de instrumentos. Muitos desses instrumentos são
altamente complexos e difíceis de serem operados.
A capoeira, (em sua gênese) herança dos negros africanos escravizados no Brasil,
inicialmente perseguida e criminalizada pelo Estado no início da República, foi registrada pelo
Iphan
1
, como patrimônio cultural imaterial do Brasil em 2008, e, posteriormente, em 2014,
reconhecida pela Unesco
2
, como patrimônio cultural imaterial da humanidade. Essa
manifestação cultural tem na música um de seus principais fundamentos. Podemos dizer que a
música está para a capoeira assim como a reza está para a missa.
Se, em suas primeiras gingas, a capoeira era tida como “doença moral”, “ginástica
degenerativa”, “uma verdadeira praga”, e seus praticantes considerados “desordeiros”,
“selvagens” e “ingovernáveis” pelas elites da época (SOARES, 1994), com o paulatino
1
No dia 21 de outubro de 2008, o IPHAN, autarquia federal vinculada ao Ministério da Cultura, responsável por
zelar pelo patrimônio cultural brasileiro, fez o registro da Roda de Capoeira como patrimônio imaterial da cultura
brasileira, cumprindo a decisão proferida pelo Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural na 57ª reunião
realizada em 15 de julho de 2008 (IPHAN, 2008).
2
Em sua Sessão, realizada no dia 26 de novembro de 2014, em Paris, o Comitê Intergovernamental para a
Salvaguarda da UNESCO reconheceu a capoeira como patrimônio cultural imaterial da humanidade (IPHAN,
2014).
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processo de democratização da sociedade brasileira e a progressiva queda do seu véu colonial,
essa manifestação cultural vem se configurando como um exuberante patrimônio imaterial da
cultura brasileira consubstanciado por uma profusão de ações articuladas que passam pela
identificação, documentação, investigação, proteção, promoção, valorização e transmissão
desse saber (IPHAN, 2017) que, por sua vez, agrega, de forma inextrincável, numa mesma
prática sistematizada, diversos elementos culturais estruturantes da condição humana, como a
luta, o canto, a dança, o jogo e a brincadeira.
Ressaltamos que, para que a roda de capoeira, hoje oficialmente registrada como
patrimônio cultural imaterial, possa ser plenamente exercitada, ela necessita de certa
materialidade, como, por exemplo, a produção do berimbau, que implica na extração e no
preparo da madeira, na colheita e no aprontamento da cabaça para o seu uso como caixa de
ressonância, na retirada do arame de pneu de automóvel, na confecção do caxixi, na feitura do
dobrão e na produção da baqueta de madeira, conforme detalharemos posteriormente.
Ademais, desde os anos 1930, alguns intelectuais, como Mário de Andrade, Di
Cavalcanti e Graça Aranha, interessados na discussão sobre o conceito de patrimônio cultural,
alertavam que não um bem cultural essencialmente imaterial, uma vez que para produzir
bens culturais de qualquer natureza, as pessoas precisam necessariamente de lugares,
equipamentos, instalações, artefatos etc. Há, portanto, um dinamismo nesse processo
(FONSECA, 2003).
A capoeira tem sido pródiga ao incorporar esse dinamismo cultural em sua própria
estrutura configuracional. Inicialmente, aquele aparentemente dissimulado e inocente jogo de
corpo foi se entrelaçando dinamicamente com outros elementos culturais como as lutas, os
rituais de passagem, as indumentárias, os instrumentos musicais e as cantigas.
A pesquisadora Emília Biancardi, em sua obra: “Raízes Musicais da Bahia”, afirma que
as cantigas passaram a fazer parte das rodas de capoeira somente na década de 1930. Em suas
palavras:
A música cantada, conforme pude aprender junto ao saudoso Mestre Pastinha,
durante as longas conversas que com ele mantive, só começou a ter sequência
(ladainha e corrido) e a adquirir importância na década de [19]30 e começos
dos anos [19]40. Antes disso, o que predominava era a música instrumental,
sobretudo o berimbau e, depois deste, o pandeiro. Mestre João Grande
concorda com a opinião do referido Mestre, afirmando que, nas rodas feitas
aos domingos, nos bairros da Liberdade, Pau Miúdo e Lapinha, em Salvador,
a música era pouco cantada, predominando nela a parte instrumental. [...]
Outro prestigiado capoeirista, Mestre João Pequeno, confirmou esse fato, ao
dizer que, na época em que começou a lutar Capoeira, nos anos [19]40, as
cantigas eram pouco usadas, prevalecendo no jogo a parte Instrumental
(BIANCARDI, 2006, p. 108).
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Para a referida pesquisadora, as cantigas começaram a ser executadas nas rodas de
capoeira com o aparecimento das academias. Essa afirmação nos leva a inferir que o berimbau
se insere na capoeira anteriormente às cantigas. Estas, por sua vez, são provenientes de diversas
fontes, dentre elas, das cantigas de trabalho dos negros de ganho, dos cantos dos repentistas,
dos cordéis das feiras de largo, de manifestações religiosas, assim como do samba de roda e
dos cantos dos pescadores de puxada de rede de arrastão. Enfatizamos que essas distintas fontes
são também provenientes de diferentes contextos culturais que, ao se encontrarem no ambiente
da capoeiragem, contribuíram para a diversificada formatação das musicalidades da capoeira.
Esse artigo tem, portanto, como objetivo, analisar a trajetória do berimbau de barriga,
levando em consideração a sua historicidade, suas diferentes configurações e suas
ressignificações, evidenciando com isso a sua condição de instrumento mor da capoeira.
METODOLOGIA
A metodologia utilizada para atingir os objetivos desta investigação consistiu em uma
pesquisa bibliográfica, de abordagem qualitativa.
Além da utilização de fontes bibliográficas e documentais convencionais (livros e
artigos) adquiridas por intermédio de referências primárias e secundárias, recorremos a
documentos em hipermídia, articulando, assim, a pesquisa acadêmica tradicional com fontes
imagéticas, orais e escritas disponibilizadas em sites eletrônicos na internet.
Além de imagens e de vídeos, depoimentos de mestres e pesquisadores, disponibilizados
no Youtube, também foram consultados e permitiram maior flexibilidade, desterritorialização
e rapidez no processo de levantamento e análise de informações.
Por meio de tais fontes, foi possível acessar, virtualmente, registros fílmicos fidedignos
de manifestações culturais que até bem pouco tempo eram de difícil acesso e só eram vistas ou
conhecidas por meio de pesquisas de campo, in loco, que, por sua vez, exigem investimentos
vultuosos.
LUTAS AFRICANAS E DA DIÁSPORA QUE UTILIZAM ACOMPANHAMENTO DE
INSTRUMENTOS MUSICAIS
Tal como aconteceu com a capoeira, outras lutas de origem africana bem como as que
foram transplantadas para regiões que passaram pelo processo de escravização negra, também
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são acompanhadas de instrumentos musicais. Em geral essas lutas combinam aspectos
relacionados com a religiosidade, a ritualidade e a ancestralidade africana. A título de exemplo,
tomando como referência os estudos de Stotz (2010), podemos citar:
Borey - luta do povo mandinga do Senegal e da Gâmbia. Praticada em arenas de areia,
acompanhada pelo som de tambores. Os lutadores se confrontam tentando atirar o adversário
ao chão, nesse meio tempo os tocadores se movimentam entre os espectadores com o objetivo
de coletar dinheiro.
Mousondi - praticada no Congo, se caracteriza como um combate com a utilização de
varas e é acompanhada por dois percussionistas tocadores de tambores e um terceiro que percute
uma tábua de bambu com baquetas. Essa luta foi disseminada pelo Caribe, onde recebeu outras
denominações, como Kalenda e Calinda.
Moringue - luta praticada no norte de Madagascar em que os contendores utilizam os
punhos. É acompanhada de três tambores chamados de Ngoma, que podem ser tocados em pé
ou entre as pernas dos tocadores quando estão sentados sobre eles.
Ladja (ou Danmyé) luta praticada na Martinica proveniente das regiões do Benin e
do Zaire que guarda várias semelhanças com a capoeira é acompanhada de tambores percutidos
em posição horizontal com seus tocadores sentados sobre eles. Além desses, outro tocador
que percute duas baquetas na parte posterior do tambor.
Bombosa (ou Mani, de Cuba) luta praticada por meio de golpes desferidos com as
mãos, com a cabeça e cotovelos. São também utilizados desequilibrantes e movimentos
gingados de corpo. É acompanhada de canções crioulas em que os tambores de yuka típicos do
Congo, ditam o ritmo.
Essas lutas têm como característica comum a utilização de instrumentos musicais de
percussão e, tal como a capoeira, expressam a cultura de onde são praticadas. Entretanto, a
capoeira tem uma distinção particular que consiste na utilização de um arco musical (o
berimbau de barriga) que, diferentemente das demais lutas citadas, não tem o tambor como o
seu mais importante instrumento. Indiscutivelmente, na capoeira, o berimbau é o instrumento
mor, ou seja, o mais importante entre os que compõem a chamada bateria. É bastante comum,
inclusive, se delegar metaforicamente a ele, a tarefa de “comandar” a roda.
OS PRIMEIROS ARCOS MUSICAIS CONHECIDOS E DIVULGADOS PELA
HUMANIDADE
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Segundo Shafer (1977), o arco musical é um dos instrumentos mais antigos da
humanidade. Originalmente, sua corda era confeccionada de cipó ou tripa de animais.
indícios de que era utilizado cerca de 15.000 anos antes de Cristo. Descreveremos a seguir,
alguns desses arcos musicais encontrados em algumas regiões espalhadas pelo mundo.
MALUNGA
O Malunga (Figuras 2 e 3) é um instrumento utilizado em Gujarat na Índia que foi levado
para mais de 700 anos, por povos africanos, fugidos ou traficados, em decorrência de
guerra. Constitui de uma verga de madeira flexível arcada por uma corda feita de tripa trançada,
uma cabaça, uma baqueta e um chocalho especial chamado "mai misra", que é feito de casca
de coco. As modulações do som são diferenciadas tanto pelo uso do dedo indicador, como pela
percussão alternada da baqueta acima e abaixo do laço que amarra a cabaça. Os mestres
tocadores desse instrumento são chamados de Siddi. Com base na religiosidade muçulmana
sufi, eles realizam apresentações, festivais e rituais espirituais, sincretizando o sagrado e o
profano. Os Siddi sobrevivem da caridade de seus devotos e espalham as crenças sufies tocando
esse arco musical (malunga) pelas ruas das comunidades, abençoando seus moradores.
FIGURA 2 - Tocador do Malunga FIGURA 3 - Tocador do Malunga
CHITENDE
Tipo de arco musical que possui uma cabaça posicionada no meio do instrumento,
cortada numa das extremidades com a sua abertura direcionada para fora. Para tocar esse
instrumento, encosta-se e afasta-se a cabaça junto ao peito, alternando os movimentos para
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diferenciar o som. Com os dedos de uma das mãos o tocador pressiona o fio e com a outra mão
segura uma baqueta que percute alternadamente as duas metades do arame. O Chitende (Figuras
4 e 5) pode ser tocado de forma instrumental ou acompanhado pelo canto. No passado, apenas
os jovens do sexo masculino utilizavam o instrumento como passatempo e por vezes realizavam
competições entre si. Atualmente é possível observar também mulheres tocando esse
instrumento.
FIGURA 4 - Tocador de Chitende FIGURA 5 - Tocador de Chitende
CHIVOCONVOCO
É um arco musical (Figura 6) de origem angolana proveniente das regiões de Maputo e
Gaza. Constituído por uma verga de madeira arcada por uma corda. Esta verga atravessa, por
meio de dois orifícios, a extremidade de uma cabaça, ou coco, que serve de caixa de
ressonância, cuja abertura é coberta por uma membrana de couro animal. A corda que arqueia
a verga tangencia pelo centro a boca da cabaça ou do coco. Com uma das mãos, o tocador
segura o instrumento e com a outra percute a corda com uma baqueta.
FIGURA 6 - Chivoconvoco
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HUNGO
O Hungo (figura 7) é um instrumento de corda cuja origem remonta Angola, onde povos
humbis, quibundos e khoisan ainda hoje o utilizam. Possivelmente este instrumento se trata de
um dos arcos musicais ancestrais ao berimbau de barriga que foi trazido na memória cultural
daqueles povos que também foram escravizados aqui no Brasil.
Confeccionado com uma vara de madeira forte e de boa flexibilidade, o hungo tem
aproximadamente 1,50 m de comprimento e 1,0 cm a 1,5 cm de diâmetro. Essa vara é arqueada
por um arame de aço preso nas extremidades. Contém uma cabaça de fundo cortado que
funciona como caixa de ressonância e é fixada à cerca de 15 centímetros da extremidade inferior
da vara. Logo abaixo do nó que firma a cabaça, há um pequeno ressalto de madeira, que tem a
função de tencionar o fio de aço.
Para se tocar o hungo usa-se uma das mãos para sustentá-lo e com o movimento de
afastamento e aproximação do abdômen consegue-se a variação do som. No polegar da mesma
mão utiliza-se um gargalo de garrafa de vidro para pressionar o arame variando seu tom. Na
outra mão, segura-se uma varinha que serve para percutir o arame para a obtenção do som e do
ritmo.
Diferentemente do berimbau de barriga, o hungo não é acompanhado de caxixi e do
dobrão.
FIGURA 7 Arco musical Hungo (Mulumba 2019)
BURUMBUMBA
Outro arco musical, ancestral ao nosso berimbau de barriga, é o Burumbumba (Figura
8), existente em Cuba. Ele é confeccionado com um tipo de madeira flexível com cerca de 75
cm a 1 m de comprimento e com uma corda, originalmente de vegetal ou de tripa. Atualmente
é usado com arame de aço. Fixado ao arco ligeiramente abaixo do meio, um ressonador de
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meia cabaça aberta com aproximadamente 15 cm de diâmetro, amarrada à curva externa do
arco oposto à cinta. A abertura da cabaça é afastada e aproximada do abdômen do jogador para
variar o timbre enquanto ele dedilha a corda. Segundo Shaffer (1977) uma suspeita de que
este arco musical possivelmente é derivado da mbulumbumba angolana.
FIGURA 8 - Tocador de Burumbumba (ROOTS, 2021)
COMPARAÇÃO DE INSTRUMENTOS DE UMA MESMA FAMÍLIA
Como apontamos anteriormente, existem vários tipos de arcos musicais; temos os
friccionados, os percutidos, os beliscados e os dedilhados. Essas diferenciações mudam suas
características e os tornam diferentes instrumentos, mesmo que pertencentes à mesma família.
Outra forma de modificação de um instrumento se pela adição de outros objetos à
sua antiga configuração, o que traz à sua estrutura uma nova conformação. No caso do berimbau
de barriga, além do acréscimo do arame de aço após 1900, com a invenção do pneu de
automóvel, houve também a incorporação do dobrão, bem como a inserção do caxixi.
Exatamente por ter ocorrido tais modificações, foi possível acontecer a transformação do arco
primitivo, que era confeccionado com corda de tripa e/ou cipó, no berimbau de barriga que
conhecemos hoje.
Conforme as figuras 09 e 10 abaixo, a família dos instrumentos de “cordas
friccionadas”, (violinos, violas, violoncelos e contrabaixos), se caracteriza basicamente pela
semelhança em suas estruturas físicas e em suas funções sonoras. Embora eles produzam
sonoridades distintas, são integrantes da mesma da família. Semelhante ao que acontece com a
família dos instrumentos de sopro em um quarteto de flautim, clarinete, aboé e fagote (soprano,
contralto, tenor e baixo).
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FIGURA 09 Família de cordas FIGURA 10 Família de sopros
a família dos arcos musicais (Figuras 11, 12 e 13) se define pelo retesamento da corda
ou do fio empregado e pela envergadura da madeira, embora se diferenciem no modo de
execução, uns são percutidos, outros são friccionados, beliscados ou dedilhados. Nesse sentido,
apresentam semelhanças em suas extruturas físicas, mas a sonoridade extraida é diferenciada
pela forma com que cada arco musical é executado.
FIGURA 11 -Goura FIGURA 12 - Berimbau FIGURA 13 - Indono
A nossa intenção em demonstrar, ainda que sucintamente, a comparação entre as
famílias dos diversos instrumentos musicais tem o objetivo de expor a multiplicidade de
instrumentos, a diversidade das formas de execução dos mesmos. Destacamos ainda que cada
instrumento tem seu valor simbólico próprio a partir do contexto em que se encontra inserido.
O BERIMBAU DE BARRIGA E SUA INSERÇÃO NA RODA DE CAPOEIRA
O berimbau de barriga é proveniente da família dos antiguíssimos instrumentos de arco.
Atualmente, extrapolou o domínio da capoeira e tem sido utilizado por percussionistas em
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bandas musicais e em algumas cerimônias de celebração. Muitas orquestras de berimbaus são
vistas embalando espetáculos culturais e cerimônias artísticas em geral. Na “Meca da capoeira”,
Salvador - BA, o berimbau se transformou em símbolo da cidade.
A música na capoeira é embalada pelo som de instrumentos musicais, que formam a
orquestra, também chamada de bateria
3
, sendo o berimbau de barriga, atualmente, o mais
importante. Se a música é o alimento da alma e o “o bom capoeira é aquele que se movimenta
pela alma”, como dizia Mestre Pastinha, o berimbau de barriga certamente é o principal
instrumento responsável pela articulação desses dois fenômenos.
O reconhecimento do berimbau de barriga como instrumento “mestre” da capoeira
parece ser uma referência consagrada pela maioria dos seus praticantes, entretanto, pairam
muitas dúvidas quanto à sua utilização sistemática na condução das rodas de capoeira, bem
como, muitas alegações fantasiosas acerca desse instrumento.
Biancardi, (2006, p. 114) argumenta que “não se pode precisar, de maneira concreta, a
época em que o berimbau [de barriga] foi introduzido como elemento essencial do folguedo”.
Embora exista registro da palavra berimbau no Brasil desde 1584 (CARDIN, 1925), não
se sabe, ao certo, se este instrumento é o mesmo que se associou à capoeira possivelmente no
final do século XIX. Provavelmente, trata-se do berimbau-de-boca (Figura 14), definido por
Antônio Moraes Silva, em seu Dicionário da Língua Portuguesa, como “instrumento sonoro do
tamanho apenas de cinco a seis centímetros, de forma quase circular, com duas hastes
prolongadas, e sendo atravessado por uma palheta de aço; aplica-se à boca, encostando-o aos
dentes e, com o dedo, vibra-se a palheta, produzindo um som de que o nome do instrumento é
imitativo” (SILVA, 1877, p. 341).
Biancardi (2006) argumenta que a origem do vocábulo berimbau é controversa e que
alguns pesquisadores consideram se tratar de um termo de origem ibérica que era utilizado para
designar outro instrumento chamado “birimbao”, confeccionado em metal e que possui no
centro uma fina lingueta flexível. Para tocá-lo prende-se a parte ligeiramente curva com a boca
e com uma das mãos dedilha-se a haste flexível. Este instrumento foi introduzido no Brasil
pelos portugueses e é conhecido em toda a América Latina como trompa de Paris ou Harpa de
boca.
3
Um fato curioso apresentado por Biancardi é que Mestre Pastinha lhe afirmou que, “nos anos [19]40, era comum
uma viola de 12 cordas aderir o conjunto musical da brincadeira e que, nessa época, o berimbau e o pandeiro
integravam esse conjunto” (BIANCARDI, 2006, p. 114).
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Pela descrição abaixo de Key Shaffer, podemos dizer que o berimbao de boca é
definitivamente diferente do berimbau de barriga, em sua estrutura, em suas características, em
sua forma de execução e em sua entonação.
Berimbau ou birimbao (Figura 14): instrumento de metal, importado da
Europa para divertimento individual: usado geralmente por marinheiros e
outras pessoas (incluindo, até, um padre que foi considerado um virtuoso do
instrumento). Devido a seu alto custo, não foi provável o seu uso pelos
escravos (SHAFFER, 1977, p. 15).
FIGURA 14 - Berimbao de boca
Luís da Câmara Cascudo (1972) argumenta que Koster fez um registro do berimbau de
barriga em Pernambuco no ano de 1816, como um grande arco com uma corda tendo uma
meia quenga de coco no meio, ou uma pequena cabaça amarrada. Colocam-na contra o
abdômen e tocam a corda com o dedo ou com um pedacinho de pau” (KOSTER, 1818, apud
CASCUDO, 1972).
A afirmação de Koster, citada por Cascudo (1972), sobre a utilização do dedo para tocar
a corda do instrumento, nos faz deduzir que não se trata do berimbau de barriga e sim de um
antecessor a ele, exatamente por se referir ao uso de uma corda e não do arame de aço, que
passou a ser utilizado somente a partir de 1900, sendo necessária a utilização de outro
componente que não o dedo, como veremos mais adiante.
Para Kay Shaffer (1977), a associação do jogo da capoeira com o berimbau ocorreu
provavelmente no final do século XIX.
Para Cascudo (1972), o instrumento musical que se associou ao jogo da capoeira foi,
portanto, o antiquíssimo arco musical que teria sido trazido para o Brasil pelos negros
escravizados.
Debret (1940), em Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil (1838-1843) pintou em uma
de suas gravuras, O Negro Trovador, um instrumento conhecido como “urucungo”, com a
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seguinte explicação: “Este instrumento se compõe da metade de uma cabaça aderente a um arco
formado por uma varinha curva com um fio de latão sobre o qual se bate ligeiramente”. [...] [O
som] é obtido batendo-se ligeiramente sobre a corda com uma pequena vareta que se segura
entre o indicador e o dedo médio da mão direita” (DEBRET, 1940, APUD CARNEIRO, 1975,
p. 18).
Cascudo (1972), em seu “Dicionário Folclórico Brasileiro”, enumera ainda uma série
de outros nomes para designar esse instrumento percussivo, gunga, urucungo, rucumbo,
uricumgo.
Edison Carneiro (1975) aponta para a existência de arcos musicais que podem ser
considerados antecessores ao berimbau de barriga. Classifica esses arcos musicais como
instrumentos cordofones e argumenta que não razões plausíveis para negar suas origens
africanas. Esse autor argumenta que na Bahia o berimbau, tal como o conhecemos, era chamado
de gunga e na região Centro-Sul do Brasil, de Urucungo. Carneiro (1975) ainda levanta a
hipótese de que foi somente no século XX, e na Bahia, que o berimbau de barriga se associou
à capoeira “de maneira insubstituível, caracterizante e dominadora” [...] e acrescenta ainda:
Foi a partir de então, provavelmente, que o instrumento se fez mais comprido,
que o arame substituiu de vez a corda de fio ou de tripa e que o berimbau se
enriqueceu com o caxixi e a moeda de cobre, dobrão, 40 réis ou dois vinténs
do tempo do Império, com que o conhecemos agora (CARNEIRO, 1975, p.
20).
Em relação à questão das primeiras utilizações do berimbau de barriga nas rodas de
capoeira, Biancardi, em conversa com Mestre Pastinha, expõe que, “nos primitivos berimbaus,
os músicos usavam a unha do dedo polegar da mão esquerda para obter efeito sonoro,
colocando-a próxima ou distante da corda desse instrumento nessa época feita com cipó-timbó
ou arame comum” (BIANCARDI, 2006, p.114).
Convêm destacar que o arco musical angolano conhecido como “hungoé tocado de
forma semelhante aos primitivos berimbaus de barriga, com a diferença de que, ao invés da
unha do dedo, usa-se um gargalo de garrafa para diferenciar os tons.
Segundo Assunção (2012), o instrumento retratado na famosa gravura de Debret não é
bem um berimbau de barriga, como muitos acreditam. A maneira como o africano segura o arco
musical é tipicamente angolana, tal como é usada no hungo contemporâneo.
Biancardi aponta ainda que, segundo o depoimento de Mestre Pastinha, o berimbau de
barriga passou a conter arame de aço a partir da chegada dos primeiros automóveis importados,
à cidade de Salvador, no início do século XX. Os capoeiras da época verificaram que o aço
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temperado, retirado dos pneus dos carros, produzia uma melhor qualidade de som se comparado
com o som produzido pelo cipó-timbó ou pelo arame de cerca utilizados até então.
A inserção do arame de aço trouxe a necessidade da utilização de outro componente,
conhecido como “dobrão”, em substituição à unha utilizada até então, que, por sua vez,
possibilitava a produção de efeitos variados na modulação do arame de aço.
Assunção (2012) confirma esse argumento de Biancardi (2006), afirmando que o
berimbau seria, portanto, uma transformação ocorrida no Brasil, promovida pelos
afrodescendentes, em relação aos arcos musicais antecessores. A mudança da postura da mão e
a introdução do dobrão caracterizariam definitivamente essa transformação. o hungo
moderno, uma tradição do Norte de Angola, para ser tocado, utiliza-se gargalo de garrafa ao
invés do dobrão.
Emília Biancardi (2006) argumenta ainda que, além de não ser possível afirmar com
exatidão o período em que o berimbau de barriga passou a integrar de forma orgânica a roda de
capoeira, também não se sabe ao certo quando esse instrumento deixou de ser designado por
seus nomes africanos e passou a ser chamado apenas de berimbau.
Em depoimento ao programa “Na identidade da capoeira” (8/11/2020, Live 123, 45:10
47:05 min), Mestre Olavo afirma que foi Mestre Waldemar o primeiro a inserir o arame de
aço no berimbau de barriga.
Antes da utilização do arame de aço, no instrumento eram usadas tripas de animais e
cipós, como o de Timbó e o de Imbé, por exemplo. Posteriormente, foram utilizados fios de
cobre, arame de cerca e arame recozido empregado na construção civil (SHAFFER, 1977).
Em relação ao tipo de madeira apropriada para a confecção do berimbau de barriga,
Shaffer (1977) entrevistou vários mestres sobre esta questão. Nos depoimentos coletados
aparece a madeira chamada de “pau pombo” que, segundo as informações, era facilmente
quebrada e não adequada para a construção do berimbau. “É possível que o pau-pombo tenha
sido usado enquanto a corda não era feita de arame e que a grande tensão do arame forçou os
tocadores a procurarem uma madeira mais resistente” (SHAFFER, 1977, p. 21).
O arame de aço e a utilização do dobrão foram os principais responsáveis pela mudança
do tipo e do tamanho da verga utilizada para a confecção do berimbau de barriga.
A partir dessas referências históricas, ainda que possam surgir muitos argumentos de
outras naturezas, inclusive míticas, podemos afirmar categoricamente que o berimbau de
barriga envergado com arame de aço e tocado com a utilização de “dobrão” e acompanhado
pelo caxixi, constitui uma nova configuração desse instrumento em solo brasileiro.
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OS COMPONENTES DO BERIMBAU DE BARRIGA AS VERGAS: SEUS TIPOS E
FORMAS
VERGA OU MADEIRA
O componente mais importante do berimbau de barriga é a verga ou madeira.
Dependendo do tipo de verga, é possível aos mais experts identificar a sua origem geográfica e
a qualidade do instrumento.
Existem diversos tipos de madeiras adequadas para a confecção do berimbau de barriga.
Todas elas devem conter, preferencialmente, quatro características básicas que determinam a
possibilidade para sua confecção e uso. Elas devem ser: retas, leves, flexíveis e fortes (valentes,
como usualmente se refere na capoeira). Esta última qualidade, em particular, é necessária para
que, ao envergarmos a madeira e colocarmos o arame de aço, ela consiga ser forte suficiente
para retesar o arame na tensão necessária. Quando estas quatro características são atendidas
para construirmos um berimbau de barriga, já são excluídas para essa possibilidade centenas de
outros tipos de árvores e exatamente por esse fato, identificamos a dificuldade para se encontrar
vergas adequadas, mesmo estando numa vasta floresta, quando não se conhece a vegetação
local.
As madeiras mais conhecidas e utilizadas para a construção do berimbau de barriga são:
a Biriba, o Pau Pombo, o Guatambu, Pau Pereira, Cutia, entre outras. Todas elas possuem estas
quatro características necessárias para a construção do instrumento.
O berimbau de barriga também pode ser confeccionado de Bambu, muito usado na
década de 1980 entre os capoeiras em todo o Brasil e é ainda encontrado até hoje em algumas
rodas de capoeira.
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No ensino de capoeira para crianças, vemos educadores e educadoras ensinarem às
crianças a construção e o manejo dos berimbaus de barriga confeccionados de PVC com a
cabaça de garrafa Pet (Figura 15), como experiência didática de aprendizagem. Esse processo
é uma maneira inicial de proporcionar uma melhor compreensão e conhecimento do
instrumento, de modo que, ao passar dos tempos, elas possam aprender a construir e a manejar
o berimbau de barriga confeccionado artesanalmente de madeira.
É conhecido também no meio capoeirístico o berimbau de tarraxas (Figura 16),
confeccionado com aglomerados de lâminas de madeiras prensadas, muito procurado por
percussionistas e também por alguns capoeiras.
Outro berimbau de barriga difundido no meio da capoeiragem é o berimbau
desmontável (Figura 17) confeccionado de madeira com encaixes para montá-lo.
O berimbau de tarraxas, o de PVC e o desmontável não são habitualmente encontrados
compondo as baterias das rodas de capoeiras.
Acrescentamos aqui que estes três tipos de berimbaus não se tratam de novos arcos
musicais e sim de variações do berimbau de barriga, pois usam os mesmos componentes,
mudando apenas os materiais e suas tecnologias.
FIGURA 15- Berimbau de PVC FIGURA 16 - Berimbau de Tarraxa
FIGURA 17 - Berimbau desmontável
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Para melhor compreendermos alguns segredos sobre as matas (figuras 18, 19 e 20), onde
e como as vergas podem ser encontradas, é muito importante que, antes de se entranhar em uma
mata, conversar com pessoas nativas conhecedoras da região (conhecidos como mateiros) para
compreender primeiramente que tipo de madeira aquela região produz e quais as precauções
que se deve tomar, em relação a proteção contra animais peçonhentos e outras adversidades.
Além disso, hoje em dia, está em pauta, na capoeira, a adoção de medidas coerentes com a
preocupação ambiental e preservação da natureza no que diz respeito a extração das madeiras
utilizadas para a construção do berimbau de barriga.
Algumas vergas são encontradas em áreas de cachoeiras, outras em morros, matas
fechadas, banhados, descampados ou perto de mangues.
FIGURAS - 18, 19 e 20
Muitos capoeiras preferem colher vergas na lua minguante (Figura 21), por acreditarem
que nessa fase da lua a madeira não racha. Outros preferem colhê-las bem no início da lua nova
(Figura 22) no período chamado pelos capoeiras de “noites sem lua”, por se acreditarem que a
madeira é mais forte e mais seca nessa época. É importante destacar que estes saberes não são
cultivados por todos os capoeiras, alguns praticam outros saberes.
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Segundo Liliana Allodi (2016), a lua interfere diretamente na plantação e no cultivo da
madeira, sendo que em alguns casos a madeira plantada na lua minguante apresenta mais
parasitas e são mais vulneráveis a pragas e cupins do que as plantadas em outras luas.
A fase da lua crescente (Figura 23) é mais usada para o replantio dessas árvores, onde
se percebe o crescimento mais rápido das mudas.
FIGURA 21 - Lua Minguante FIGURA 22 - Lua nova FIGURA 23 - Lua Crescente
DIFERENÇA DE PESO ENTRE AS VERGAS
Para certificarmos que existe uma diferença de peso entre as vergas verdes e secas,
fizemos um estudo comparativo com algumas conhecidas em outras regiões, assim como
com vergas da região de Santa Catarina, num total de 78 vergas analisadas. Elaboramos um
quadro comparativo entre o peso bruto da madeira verde recém-colhida e o seu peso após sete
dias secando à sombra. Todas as madeiras testadas guardavam as características necessárias
para a confecção do berimbau de barriga, ou seja, todas eram: retas, leves, fortes e flexíveis.
Além das madeiras já conhecidas, biriba e guatambu, foram analisadas as vergas dos seguintes
tipos de madeira: palheiro (Figuras 24, 25 e 26), pindaíba (Figuras 27, 28 e 29), mamica de
cadela (Figuras 30, 31, 32) e jacaré (Figuras 33, 34 e 35).
Tipo de Vergas
comparadas verdes e
secas
Média de
perda de
Peso em g.
pindaíba
122 g
guatambu
59 g
mamica-de-cadela
95 g
jacaré
75 g
palheiro
112 g
biriba
70 g
total de vergas
analisadas
78
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FIGURAS 24, 25 E 26 - Palheiro
FIGURAS 27, 28 E 29 - Árvore Pindaíba
FIGURAS 30, 31 32 -Mamica de Cadela
FIGURA 33, 34 E 35 - Árvore do Jacaré
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A CAIXA DE RESSONÂNCIA DO BERIMBAU: CABAÇAS, PORONGOS, CATUTOS
E COITÉS
A caixa de ressonância do berimbau de barriga pode ser constituída de diferentes frutos,
formas e denominações, entre elas: cabaça, porongo, coité e catuto (figuras 36, 37, 38 e 39).
Estas denominações se diferenciam a depender das regiões onde são cultivadas.
A cabaça e o porongo são denominações para o mesmo tipo de fruto proveniente de uma
planta que pode ser rasteira ou em forma de trepadeira (Lagenaria siceraria). Existe uma enorme
variedade de tamanhos e formas desta espécie. É originária da região Sul da África e trata-se
de uma das mais antigas plantas cultivadas pela humanidade. Além da caixa de ressonância do
berimbau de barriga, seus frutos são também utilizados para confecção de diversos utensílios e
instrumentos, como, por exemplo: no Brasil, a cuia de chimarrão e a maraca. Na índia a cítara
ou sitar. No artesanato temos os mates burilados do Peru e diversas peças no Brasil
(TREVISOL, 2013).
o coité (Crescentia cujete), também conhecido como catuto, pertence à família
Bignoniaceae e consiste num fruto arredondado de casca duríssima que alcança até 25
centímetros de diâmetro. Trata-se de um fruto cultivado em árvores perenes que atingem
aproximadamente entre 12 e 16 metros de altura. Serve como vasilhame para diversas
finalidades, como boias em redes de pesca e para a confecção de instrumentos musicais,
tipo maracás, xequerês e chocalhos. Sua polpa e sementes são utilizadas para tingimento
(TREVISOL, 2013).
FIGURA 36 - Cabaça FIGURA 37 Porongo
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FIGURA 38 - Coité FIGURA 39 - Catuto
ARAME DE AÇO
Desde a pré-história o ser humano domina e utiliza o ferro, mas o aço, como conhecemos
atualmente, só foi desenvolvido em 1856, no auge da Revolução Industrial, com a invenção de
fornos que permitiam o corrigir as impurezas do ferro, como também acrescentar-lhes
propriedades que traziam maior resistência ao desgaste, ao impacto e à corrosão. Esse produto
alcançou grande repercussão no meio industrial, porque se mostrou mais resistente que o ferro
fundido, passando assim a ser produzido em grandes quantidades, servindo de matéria-prima
para diversas indústrias (METAL: HISTÓRIA, COMPOSIÇÃO, TIPOS, PRODUÇÃO E
RECICLAGEM, 2000).
A chegada dos primeiros automóveis com motor à explosão, no Brasil, ocorre
aproximadamente em 1900, entretanto os pneus desses automóveis eram compostos apenas de
borracha maciça. Não havia ainda a estrutura dos pneus de aço como conhecemos hoje.
Em 1891, C.K. Welch inventa o pneu com cabos no talão, o que marca uma importante
evolução na história da indústria automobilística (HISTÓRICO DO DESENVOLVIMENTO
DO PNEU, S/D).
Somente entre 1904 a 1908, a Firestone e a Goodyear desenvolveram um padrão de
pneus com cabos em lados retos, tal como conhecemos hoje.
Embora o primeiro talão com arame de aço tenha surgido antes de 1900, segundo
Tompkins (1981), somente a partir de 1924 essa tecnologia passou a ser adotada na fabricação
em série dos pneus de automóveis.
A primeira fábrica de automóvel inaugurada no Brasil foi a Ford em 1919 na cidade de
São Paulo. Em 1925 chega a General Motors. Entre 1920 e 1939, no estado de São Paulo a
quantidade de automóveis saltou de 5 mil para 43 mil.
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Antes de 1939 quando foi inaugurada a primeira fábrica de pneus do país: A Goodyear,
os pneus encontrados até então eram ainda componentes de carros importados, portanto, após
a inauguração da fábrica é que passam a circular os automóveis com pneus nacionais.
Diante desses dados históricos e analisando os depoimentos dos velhos mestres,
deduzimos que a utilização do arame de aço que era retirado dos pneus dos automóveis para ser
utilizado nos berimbaus ocorreu fundamentalmente a partir do início do século XX.
Emília Biancardi, em seu depoimento, afirma que:
Conforme relatado por Mestre Pastinha, o berimbau passou a ter corda de aço
com a chegada dos primeiros automóveis importados a salvador, quando os
músicos da brincadeira, na sua maioria carregadores das docas, verificaram
que o aço temperado existente nos pneus desses carros produzia um som de
melhor qualidade que o obtido com o cipó-timbó ou o arame, passando assim,
a utilizá-lo. Além disso, começaram a usar os “dobrões”, para obter efeitos
variados de modulação na corda, substituindo a unha (BIANCARDI, 2006,
p.114).
Ratificando o depoimento acima, Mestre Olavo afirmou na Live do programa, Na
Identidade do Capoeira, Nr.123, de 09/09/2020, que: quem iniciou a técnica de retirada do
arame de aço (Figura 40) do pneu, sem queimá-lo, foi Mestre Waldemar, e que antes de ser
informado pelo referido mestre sobre essa maneira de removê-lo, tentou usar arame recozido
de construção e que não obteve bom resultado (OLAVO, 2020).
FIGURA 40 - Arame de Aço
Tudo leva a crer que a descoberta dessa nova maneira de retirada do arame de aço, sem
queimar o pneu do automóvel, constituiu uma inovação que transformou o arco musical
antecessor no berimbau de barriga que conhecemos hoje.
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A BAQUETA DO BERIMBAU
A baqueta utilizada para percutir o arame do berimbau é também conhecida como vareta
(Figuras 41, 42, 43, 44). Tem seu formato cilíndrico, o comprimento aproximado de 40 cm e
seu diâmetro varia entre 0,15 e 0,30 cm. É habitualmente confeccionada a partir de diversos
tipos de madeira, como: ticum, bambu ou da própria matéria prima usada para confeccionar a
verga do berimbau.
Podemos encontrar baquetas confeccionadas em diversas configurações: torneadas,
apenas lixadas, envernizadas, enceradas, pintadas com tinta colorida, em formatos mais lisos
ou ásperos para melhor aderência nos dedos, com proteção de fita emborrachada, para dar mais
firmeza na pegada da mão e outras mais. Apesar de terem as mesmas funções e objetivos, estas
diferentes formatações se dão pela preferência pessoal de cada tocador.
É importante considerar que a baqueta é também usada em diversos outros instrumentos
de percussão, variando em peso, tamanho, espessura e diâmetro. Ela pode ser confeccionada
por diferentes matérias primas como: madeira, plástico ou fibra. Esse nome baqueta tem sua
origem no termo italiano “bacchetta ou bacchio” que signfica bastão.
FIGURAS 41, 42, 43 e 44 - Baquetas
O DOBRÃO E SEU USO NA CAPOEIRA
O dobrão, popularizado hoje como um dos componentes do berimbau, na realidade era
uma moeda de ouro cunhada na época de Dom João VI, que correspondia ao valor de 20.000
réis, a moeda de maior valor circulada no mundo à época e de uso exclusivo da Corte em
Portugal (Figura 45). No Brasil essa moeda correspondia em tamanho (cerca de 50 mm de
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diâmetro) às moedas de cobre de 80 e de 40 réis que aqui circulavam (Figura 46 e 47). Por essa
inusitada correspondência, o povo passou a chamá-las ironicamente pelo nome de dobrão.
Mais tarde, no reinado de Dom Pedro II, em decorrência da desvalorização, as antigas
moedas de 80 réis foram carimbadas e reajustadas para o valor de 40 réis (PIERRY, 2018).
Esses dobrões de 80 e de 40 réis, após sua extinção como moeda corrente, passaram a
ser adotados pelos capoeiristas para pressionar o arame de aço do berimbau, com a finalidade
de obter um timbre melhor e uma boa afinação de seu tom.
Com o passar dos tempos e com a escassez dessas referidas moedas, os capoeiristas
passaram a utilizar uma pedra lisa e resistente para alcançar a mesma finalidade adquirida com
o dobrão. Por tradição, alguns capoeiristas ainda chamam essas pedras de “dobrão”.
Segundo Edson Carneiro, foi Manoel Querino o primeiro a se referir sobre a utilização
da moeda de cobre para se tocar o berimbau (CARNEIRO 1975, p.19).
Kay Shaffer (1977, p. 26), sobre essa questão, argumenta que:
Hoje, os mestres e tocadores todos usam uma moeda de cobre de 40 réis,
moeda que eles chamam de vintém ou dobrão. Agora esta moeda pode ser
ainda encontrada nos mercados ou em feiras, onde há vendedores de moedas
antigas. Um dos mestres disse que, no tempo em que o real era a unidade do
sistema monetário, era quase impossível ao tocador de berimbau usar o dobrão
(moeda de 40 réis), ou mesmo o vintém (moeda de 20 réis), para tocar o seu
instrumento.
Essas informações históricas servem como contraponto aos discursos ingênuos que
afirmam ser o uso do dobrão uma tradição da capoeira desde os tempos da escravidão.
Conforme pontuamos anteriormente, essa moeda tinha um valor considerável e os negros
escravizados não tinham condições de adquiri-las, muito menos de usá-las para tocar o
berimbau.
É oportuno frisar que no início da República, quando a moeda de réis começou a ser
desvalorizada, o uso do dobrão chegou a ser um sinal de prestígio social entre os capoeiristas.
FIGURA 45 - Dobrão de Ouro
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FIGURAS 46 E 47 - Moedas de Cobre Conhecidas popularmente como Dobrões
Essas moedas de cobre que tinham os valores de 40 e 80 réis passaram a ser
denominadas, pejorativamente, de dobrões, como uma ironia popular que questionava a
inferioridade do Brasil em relação à Corte Portuguesa.
Por algum tempo, essas moedas foram utilizadas pelos capoeiras para tocar o berimbau
de barriga. Com o passar dos anos elas se tornaram escassas e, consequentemente, os capoeiras
passaram a substituí-las por outros objetos, como pedras (Figura 48), arruelas de parafusos,
mais usadas como ornamento dos berimbaus para turistas (Figura 49) e também, pequenos
discos de latão e de cobre, confeccionados em oficinas (Figura 50). Esses discos ganham o
nome de dobrão, em referência às antigas moedas, preservando, assim, o seu nome tradicional.
FIGURA 48 Pedras FIGURA 49 Arruelas FIGURA 50 Discos de latão
O CAXIXI
O caxixi é um pequeno chocalho de cesto feito de palha trançada, cipó, casca de bambu
e junco, com a base feita de cabaça ou coco (Figura 51). Na parte superior contém uma alça
feita pelo mesmo material. No seu interior são adicionadas sementes secas, como: Lágrimas de
Nossa Senhora, bananeira do mato, que tem a função de provocar um som característico que
tem por objetivo acompanhar a batida da baqueta e do movimento da mão do tocador, algumas
vezes preenchendo o tempo vazio entre as batidas da baqueta.
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“O caxixi é a maraca africana”, afirmou o pesquisador e músico Bira Reis (in: GALLO,
2012). Para ele o nome “caxixi” é uma corruptela de “mucaxixi”, que corresponde ao som
produzido pelo próprio instrumento.
Shaffer (1977) afirma que não encontrou, em suas pesquisas, relatos de viajantes sobre
a associação do Berimbau de barriga com o caxixi, tanto na África como no Brasil.
A associação do caxixi ao berimbau continua sendo uma incógnita até os dias de hoje.
Não há registros precisos acerca do contexto, das circunstâncias e dos motivos que levaram os
tocadores de berimbau a utilizarem este instrumento acompanhado de um caxixi. Estes
argumentos não passam de meras especulações. Ainda que hoje aparentem fazer parte de um
único instrumento musical, o berimbau e o caxixi são dois instrumentos diferentes que na África
eram utilizados em contextos distintos. Entretanto, hoje, no ritual da roda de capoeira é
praticamente inconcebível se tocar o berimbau sem o acompanhamento do caxixi, até porque
muitos toques criados por mestres renomados contêm partes exclusivamente executadas pelo
caxixi.
Segundo Mukuna (1979), entre os lubas, de onde o caxixi deve ter alcançado a parte
litorânea a fim de ser transplantado para o Brasil, o arco musical mais comum, lukomba, não é
tocado junto com o caxixi. O fato é que não há informações concretas e fidedignas de quem no
Brasil tocou pela primeira vez um berimbau acompanhado de um caxixi.
Para o referido autor o lukomba e o caxixi eram utilizados em diferentes cerimoniais.
Consequentemente, em suas regiões de origem eles não eram tocados juntos. Alguns autores
argumentam que os arcos musicais eram utilizados para o pastoreio e em manifestações de
caráter mítico-religioso (SHAFFER, 1977).
Segundo Dournon (in: MYERS, 1992), na África o caxixi era associado a crenças, a
instituições, ao ciclo da vida, a poderes espirituais e temporais etc. O uso desse instrumento é
acompanhado de mitos e tabus que regulam inclusive a sua confecção. Em algumas cerimônias
o caxixi é o principal instrumento, muitas vezes cultuado como sagrado.
No Brasil o caxixi é frequentemente observado em cerimoniais no Candomblé e também
usado por percursionistas e músicos populares. No nosso entendimento a associação do caxixi
com o berimbau ocorreu no Brasil.
É importante notar que a combinação de alguns instrumentos musicais é uma
possibilidade colocada nas culturas populares que, de certa forma, permitem hibridações
inusitadas como nesse caso da associação do caxixi com o berimbau.
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FIGURA 51- Caxixis
A CONSTRUÇÃO DO BERIMBAU DE BARRIGA
A maneira de se construir um Berimbau é pessoal e traz algumas particularidades
diferenciadas entre os artesões, mas basicamente há uma forma semelhante entre todos eles em
se confeccionar o instrumento.
Após colher a madeira, alguns a deixam secar por algum tempo, mas outros preferem
retirar a casca logo que colhida por acreditarem ser a forma mais apropriada de trata-la.
Depois de descascá-las deixam a verga descansar na sombra por algum tempo, alguns
preferem uma semana, outros duas, um mês e por aí vai.
Em seguida, corta-se no tamanho que achar ideal, o mais comum é o cumprimento de
sete palmos.
Após o corte da verga, lixa-se retirando os nós e alisando-a o máximo possível para
deixá-la mais apresentável, nesse momento muitos costumam aprontar o (parte inferior
onde se prende o arame), neste mesmo momento inserem o coro na parte superior do
instrumento.
São usados alguns tipos de couro para essa função: couro tratado (Figura 52), couro de
sola de sapato (Figura 53) e groupon (Figura 54), este último é um couro mais espesso, usado
pra reforçar botas e calçados, diferente do couro usado para o solado.
Logo após, pinta-se ou enverniza-se a verga, sendo que atualmente há vários trabalhos
de pirografias ilustrando as vergas, essas práticas se diferem pelo hábito particular de confecção
de cada artesão.
Por último, coloca-se o arame amarrando-o com um barbante. Alguns dos mais
conhecidos são: rami (Figura 55), sisal (Figura 56), barbante de algodão (Figura 57) e outros
da preferência de cada construtor.
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FIGURA 52 - Couro Tratado FIGURA 53 - Couro Sola de Sapato FIGURA 54 - Groupon
FIGURA 55 - Rami FIGURA 56 - Sisal FIGURA 57 - Barbante de
Algodão
Oficina de confecção de berimbaus organizada pelo Mestre Léo Borges, Grupo
Beribazu, Brasília-DF, realizada em 10 de maior de 2013.
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Disponível em: http://capoeiraconduta.blogspot.com/2013/05/como-fazer-um-berimbau-gente-
atendendo.html
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
O berimbau de barriga, em suas configurações pré-existentes, nem sempre esteve
associado à capoeira. Registros históricos evidenciam que o arco musical, antes de se vincular
definitivamente à capoeira, era utilizado com outras denominações, como urucungo, gunga,
rucungo etc., por negros de ganho e ambulantes em atividades de venda e de esmola à época da
escravidão no Brasil e, também, em cerimônias religiosas específicas.
Procuramos demonstrar que a configuração atual desse instrumento musical com o uso
do fio de aço em lugar de tripa de animal ou cipó de árvore ocorreu no Brasil no início do século
XX com a chegada dos primeiros automóveis ao país e é resultado de processos de
ressignificação de antigos arcos musicais utilizados em diversas manifestações culturais
profanas e sagradas de origem africana esparramadas pelo mundo afora.
Nesse artigo analisamos por meio de fontes históricas, iconográficas e de narrativas,
aspectos do movimento histórico e sociocultural que gravitaram e gravitam em torno do
berimbau de barriga que é utilizado na capoeira atualmente em todas as suas vertentes e
configurações.
Descrevemos as características principais dos seus componentes (verga, cabaça, arame
de aço, dobrão, baqueta e caxixi) e pontuamos alguns procedimentos alusivos à sua confecção,
destacando, especialmente, os materiais e métodos mais utilizados nesse processo.
A intenção de condensar essas informações históricas, funcionais e morfológicas acerca
do berimbau de barriga, além de tornar acessível em um mesmo texto informações geralmente
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fragmentadas, é realçar a importância e o simbolismo que esse instrumento exerce sobre os
capoeiras em geral, que chegam a considerá-lo o “dono” da capoeira.
Convém destacar, entretanto, que, ainda que tenha se consagrado como o principal
instrumento da capoeira, o berimbau de barriga somente adquire tal destaque e certa veneração
quando é tocado em conjunto com os outros instrumentos que formam a bateria na roda de
capoeira.
É fato inconteste que o berimbau de barriga atualmente contribui, de maneira
incomparável, com seu som, por vezes melancólico, por vezes eufórico, com um complexo
manifesto sociocultural único, peculiar e irrepetível a capoeira, que, a despeito de muita
perseguição e desprezo engendrados pelas estruturas de poder do Estado brasileiro, edificou
uma mistura sincronicamente articulada do cantar, do tocar, do batucar, do dançar, do jogar, do
lutar e do brincar. Tudo isso junto e misturado forma, estrutura e movimento a essa
envolvente manifestação que articula uma intrincada relação de bens culturais materiais e
imateriais e desafia perspectivas restritivas e estreitas de lidar com o conceito de patrimônio
cultural.
Retomando o início das nossas problematizações, podemos inferir que, se concordarmos
que o canto é o secreto filosofar da alma, portanto uma produção cultural imaterial, no contexto
da capoeira esse canto, para ser plenamente efetivado e legitimado pela comunidade da
capoeira, deve vir acompanhado de instrumentos musicais, especialmente do seu instrumento
mor, o berimbau de barriga, um bem cultural inquestionavelmente material.
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Recebido em: 17 de agosto de 2021
Aceito em: 19 de novembro de 2021