ISSN 2447-746X Ridphe_R
DOI: 10.20888/ridphe_r.v7i0.15214
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Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 7, p. 1-5, e021005, 2021.
MEMÓRIA DE MARGOT
Roberto Akira Goto
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Docente aposentado de Filosofia da Educação
Departamento de Filosofia e História da Educação
Faculdade Educação, Universidade Estadual de Campinas, Brasil
goto@unicamp.br
Como os assentamentos burocrático-administrativos permitem presumir, é provável que
tenha começado a lecionar no colégio no segundo semestre de 1963. No Livro de Registro de
Contratos de Professores, o seu é o de número 39, assim redigido: “Nos termos do artigo 14, n° II,
da lei 3.345, de 17-1-56, combinado com o artigo da lei 7.817, de 5-2-1963, e após cumpridas
as formalidades dos artigos 6° (n. XIV) e 11 (n. V), da referida primeira lei acima, fica contratada
a professora d. MARGOT PROENÇA, para ministrar aulas de Filosofia, durante o período de de
agosto de 1963 a 28 de fevereiro de 1964, condicionada a permanência nesse período à aprovação
da Comissão de Acumulação de Cargos, obrigando-se ao cumprimento, inclusive, de todas as
obrigações atinentes à função, determinadas pelas leis, regulamentos e regimentos vigentes. /
Campinas, 1° de agosto de 1963.”
A lei 7.817, segundo sua ementa, estendia “ao Colégio Estadual Culto à Ciência, de
Campinas, o regime de autonomia didática e administrativa, estabelecido para o Colégio Estadual
de São Paulo pela lei n. 3.345”. A autonomia implicava a existência de um corpo docente composto
por três categorias de professores catedráticos, contratados e interinos e de uma congregação,
constituída pelos catedráticos (cujos cargos, vitalícios e inamovíveis, eram providos por concursos
de títulos e provas). A congregação indicava dentre seus membros o diretor e o vice-diretor, que
eram então nomeados pelo governo estadual para mandatos de dois anos, “permitida a
recondução”, conforme estabelecia o art. da lei de 1956. Ao diretor atribuía-se o poder de
“indicar ao Governo, ouvida a Congregação, nomes de professores para contrato e regência
interina” o que dispunha o art. 6°, inciso XIV), ao passo que cabia à congregação, segundo o
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Foi aluno do Colégio Estadual “Culto à Ciência” em 1970 e 1971, e um de seus professores efetivos de Filosofia entre
1989 e 2004.
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inciso V do art. 11, “aprovar a indicação feita pelo Diretor dos nomes de professores para contrato
e regência interina”.
Obteve ela a aprovação da Comissão de Acumulação de Cargos? (Seu contrato é o único
que faz menção a essa condição; tal comissão, aliás, não consta nas leis citadas.) Que cargos estaria
acumulando na época? Em que faculdade ou universidade se formara? Questões para quem se
interesse e se disponha a pesquisar sua passagem pela famosa escola autônoma, como capítulo da
história do ensino de Filosofia em Campinas. De toda a forma, em 1970 continuava por lá. (Em
algum momento, nesse período, chegou a prestar concurso para obter a cátedra?) E se, como consta,
estava então com 37 anos, teria iniciado a carreira como docente do estabelecimento aos 30 anos
de idade.
Como vestígio dessa passagem remanescem, na biblioteca do colégio, exemplares do livro
de Manuel Garcia Morente, Fundamentos de Filosofia compilação, a partir de notas taquigráficas
tomadas por alunos, das “lições preliminares” que o autor espanhol (1886-1942) ministrou na
Universidade de Tucumán, na Argentina, em 1937 e 1938. Logo nas primeiras aulas, com o volume
aberto sobre a carteira, a professora ordenou uma correção a substituição do i minúsculo pelo
maiúsculo na grafia das Ideias platônicas. Sua relação com o livro didático não seria de
dependência, muito menos de subordinação; frequentemente iria adiante de seu conteúdo, às vezes
ao seu lado, mas sempre comentando-o, enriquecendo-o. Mais fiel ao espírito que à letra do texto,
deu vida à proposta do autor: a de propiciar a vivência da Filosofia empreendendo “umas viagens
de exploração dentro do continente filosófico” e é possível que, para um ou outro dos jovens de
16 anos que constituíam o grosso dos matriculados na primeira série do curso colegial (a única das
três em que a disciplina era oferecida), a Filosofia tenha mesmo assumido uma dimensão
continental, mais expressiva e impressiva que as paisagens e os contornos dos demais componentes
curriculares (Português, Estudos Sociais, Matemática, Ciências Físicas e Biológicas, Inglês,
Desenho, Educação Moral e Cívica).
Pode ser que, 51 anos depois, a memória do agora velho, lucilando e vacilando, ainda
retenha algo da luminosidade vívida de suas aulas expositivas, que passeavam dos pré-socráticos
a Aristóteles, de Descartes a Kant, contemplando tanto a informação histórica (outros passeios,
como os do Liceu, peripatéticos, e os de Königsberg, metodicamente pontuais) quanto a
argumentação racional e/ou a intuição genial (a do motor imóvel, a do cogito, a das categorias a
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priori). Algo, também, dos debates, que dividiam a classe em dois ou mais grupos, empenhados e
embrenhados na sustentação e na defesa de pontos de vista acerca de um problema ou da
interpretação de uma sentença, desenhada provocativamente na lousa. Se, além disso, guardou algo
das provas (oficialmente: sabatinas) da época, poderá retomar e renovar a percepção de como a
professora procurava promover nos alunos aquela vivência filosófica.
Para o Colegial F (a classe em que se achava inscrito então o jovem que o velho foi), a
primeira sabatina consistiu no desafio de debruçar-se reflexivamente sobre a pergunta: “A Filosofia
deve seu valor às questões que ela coloca ou às respostas que ela dá?” Em outras avaliações, no
decorrer daqueles três primeiros bimestres de 1970, ela propôs e instigou:
“Comente esta frase de Paul Valéry: ‘Considero filósofo todo homem qualquer que seja seu
grau de cultura que tente, de vez em quando, obter uma visão de conjunto, uma visão
ordenada, de tudo que ele sabe e, sobretudo, daquilo que ele sabe por experiência direta, interior
e exterior.’ Observe os seguintes pontos: 1) Este homem construiria um sistema de tipo
metafísico ou filosófico (visão de conjunto, ordenada...)? 2) Que método emprega, se parte de
uma experiência direta, interior e exterior? (Exemplos conhecidos para comparação.) 3) Faça
uma conclusão que relacione toda a frase.”
“Faça uma comparação entre um filósofo, um cientista e um artista abordando os seguintes
pontos: 1) Campo de atuação; 2) Métodos ou técnicas empregados; 3) Que personalidade eles
deveriam ter, levando-se em consideração os itens 1 e 2.”
“Comente a frase: ‘Há cegos, mudos e tontos que se agitam daqui para lá, multidão de
insensatos para quem o ser e o não-ser parecem ora o mesmo, ora coisas diversas, e para quem
os caminhos que levam às coisas estão em direções opostas.’”
Base e pano de fundo da “matéria para prova”, o conteúdo do livro tinha de ser estudado e
memorizado, mas fazê-lo era insuficiente para haver-se com as tarefas demandadas pelos
enunciados (assinalar Parmênides como autor da frase, por exemplo, de nada valia se a informação
não ensejasse uma interpretação consistente do texto e de seu contexto). Tampouco era suficiente
a doxa, a mera formulação da opinião; “fundamento” e seus cognatos “fundamentação”,
“fundamental”, “fundamentalmente” eram vocábulos frequentes de seu discurso didático. Não
diferia, quanto a isso, da maioria dos professores, não poucos dos quais manifestavam abertamente
sua aversão ao “achismo”. E se não requisitava como estimulava o trabalho interpretativo, é
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porque, tacitamente ao menos, ia na contracorrente da mania de se tomar o texto como portador de
uma “mensagem” – mania que outros docentes faziam questão de ironizar explicitamente.
Sim, era exigente menos, contudo, no que diz respeito aos parâmetros avaliatórios (diziam
que reservava a nota máxima “só para Deus”, mas ela própria nunca o disse) do que no que
concernia ao seu magistério, à substância de seu ensino. Acontece que não levava o aluno pela mão
nas incursões e excursões por territórios filosóficos; cada um devia fazê-lo por si próprio, por sua
conta e risco, aventurando-se por veredas e ermos desconhecidos. Ela, por sua vez, arriscava-se
num diálogo pertinaz, insistente: a cada resposta que alguém apresentava à questão formulada,
objetava com um “por quê?”; a nova resposta motivava outra objeção e outro “por quê?”, e assim
por diante, até que se pudesse vislumbrar, talvez, que a reflexão e a argumentação são passíveis
sempre de ser aprofundadas, que as questões filosóficas não são meramente retóricas, que as
respostas e razões podem ser múltiplas, como de fato são, que novos fundamentos podem ser
assentados para serem, a seguir, também solapados ou deslocados tudo em meio à percepção ou
sensação de que esse diálogo em sala de aula não era simulação do diálogo infindo da Filosofia,
mas um seu fragmento, tão autêntico e instrutivo quanto o todo de que ele é parte.
Essa maiêutica rediviva não se limitava a descortinar o filosofar, mas o praticava com a
exuberância de sua floração original. A vivência filosófica que ela propiciou podia equiparar-se,
doravante, à experiência dos jovens interpelados e interrogados por Sócrates na ágora ateniense.
Também ela ensinava espicaçando e arejando mentes, provocando e colocando à prova o pensar.
Tinha por regra que seguia à risca nunca expor sua opinião pessoal a respeito dos assuntos
debatidos e das questões que eram objeto de sua maiêutica, assim respeitando em cada um a
liberdade de dispor de seus pensamentos e sentimentos. Quando, no segundo semestre, pôs-se a
traduzir e a ditar trechos de uma obra de Lucien vy-Bruhl (1857-1939) provavelmente La
mentalité primitive , foi nesse contexto em que já se exercitava o pensar por conta própria como
gesto tensionado pela escolha e carregado de responsabilidade.
É preciso talvez retroceder um passo: para Diotima ou os pré-socráticos; para o mito mas,
neste caso, o da própria Filosofia. Retrocedendo, -se que o continente é antes um mundo, na
verdade uma constelação, um universo, todo um conjunto de mundos de outros modos, até então
insuspeitados, de ver, viver, sofrer o real. Um dia, no começo do ano (que jamais lhe será dado
terminar), irrompe na sala de aula; sopra uma aragem o vento do pensamento , abre-se a
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perspectiva infinita do filosofar, na busca do horizonte da sabedoria inalcançável. É um gesto
inaugural fundador, mítico –, lançado pelo ímpeto do entusiasmo, o “deus dentro” assumindo a
forma da humana centelha do espanto filosófico, do logos socrático.
Um dia, a Filosofia, pelas mãos da professora Margot naquele 1970 que a arrebatou do
tempo e ficou seu para sempre.
Recebido em: 08 de março de 2021
Aceito em: 09 de março de 2021