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DOSSIÊ TEMÁTICO
MEMÓRIAS DE PROCESSOS DE RENOVAÇÃO PEDAGÓGICA NO BRASIL:
EDUCAÇÃO BÁSICA, FORMAÇÃO DE PROFESSORES E PESQUISA
EDUCACIONAL NA TRAJETÓRIA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Carmen Sylvia Vidigal Moraes
Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, Brasil
carmensvmoraes@gmail.com
Elizabeth dos Santos Braga
Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, Brasil
elizabeth.braga@usp.br
Roni Cleber Dias de Menezes (FE/USP)
Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, Brasil
roni@usp.br
Em cada época é preciso tentar arrancar a transmissão da tradição ao
conformismo que está na iminência de subjugá-la ... O dom de atear ao
passado a centelha da esperança pertence somente àquele historiador
que está perpassado pela convicção de que também os mortos não estão
seguros diante do inimigo, se ele for vitorioso. E esse inimigo não tem
cessado de vencer.
(Walter Benjamin, Sobre o Conceito de História, Tese VI).
A escolha de um trecho das teses de Walter Benjamin, como epígrafe, tem o propósito
de nos remeter à sua importante orientação de método de interpretação da história, orientação
que nos inspirou na organização deste dossiê.
Benjamin (1991, p. 425) critica as abordagens historiográficas positivistas que se
apoiam na concepção de um tempo “homogêneo e vazio”, um tempo cronológico e linear.
Contra a concepção quantitativa do tempo histórico como acumulação, esboça sua concepção
qualitativa, descontínua, do tempo histórico. Trata-se, segundo ele, para o historiador
“materialista” - isto é, para o historiador capaz de identificar no passado os germes de uma outra
história, capaz de levar em consideração os sofrimentos humanos acumulados e de dar uma
nova face às esperanças frustradas -, de fundar um outro conceito de tempo, “tempo de agora”
(jetztizeit), caracterizado por sua intensidade e sua brevidade.
Em lugar de apontar para uma “imagem eterna do passado ou para uma teoria do
progresso, o historiador constitui uma “experiência” (Erfahrung) com o passado. O passado
contém o presente (jetztzeit), “tempo de agora” ou “tempo atual”. Assim, para Benjamin, a
citação do passado não é necessariamente uma obrigação ou uma ilusão, mas pode ser fonte
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formidável de inspiração, uma arma cultural no combate presente (BENJAMN, 1991; LÖWY,
2005).
Segundo Benjamin,
O passado traz consigo um índice secreto que o impele à redenção. Pois não
somos tocados por um sopro do ar que envolveu nossos antepassados? Não
existem, nas vozes a que agora damos ouvidos, ecos de vozes que
emudeceram? (...) Se assim é, então existe um encontro secreto marcado entre
as gerações precedentes e a nossa. Então, alguém na terra esteve à nossa
espera. Se assim é, foi-nos concedida, como a cada geração anterior à nossa,
uma frágil força messiânica para a qual o passado dirige um apelo. Esse apelo
não poder ser rejeitado impunimente. O materialista histórico sabe disso (Tese
II) (BENJAMIN, 2005, p. 242).
Ao tempo do progresso, “feito à imagem e semelhança do espaço”, reduzido a uma linha
“absoluta, infinita”, Benjamin opõe o tempo da memória, da “rememoração orgânica”, que não
é homogêneo, mas que tem “plenos e vazios” (GUY, C., apud LÖWY, 2005, p. 131). Como
observa Dosse (1998, p. 5), é no interior mesmo desta fratura, desta descontinuidade “que nasce
uma nova consciência historiográfica sobre a base de uma problematização possível da
memória pela história e da história pela memória”.
Nas teses de Benjamin aparecem duas preocupações inerentes ao ofício do historiador,
a questão da subjetividade e da memória na construção do conhecimento histórico. Na tese
XVII, ele afirma que a rememoração tem por tarefa a construção de constelações que ligam o
presente ao passado. Essas constelações, esses momentos arrancados da continuidade histórica
vazia, são “mônadas”, ou seja, “são concentrados da totalidade histórica saturada de tensões”.
Esses momentos constituem uma chance irruptiva, revolucionária, no combate hoje ao
passado oprimido, mas também, sem dúvida, ao presente oprimido.
É assim que Benjamin passa do tempo da necessidade para o “tempo dos possíveis”,
uma concepção do processo histórico que acesso a um vertiginoso campo dos possíveis
(DOSSE, 1998, p. 5), sendo as condições objetivas essas condições de possibilidade. E o que
significaria, hoje, essa “abertura da história”?
Para M. Löwy (2005, p. 150), no plano cognitivo,
[...] ela ilumina um novo horizonte de reflexão: a busca de uma racionalidade
dialética que, quebrando o espelho liso da temporalidade uniforme, recusa as
armadilhas da ‘previsão científica’ de gênero positivista e leva em conta o
clinamen rico de novidades, o kairos cheio de oportunidades estratégicas.
E, do ponto de vista político, a concepção aberta da história como práxis humana não
incita necessariamente o otimismo, considera a possibilidade da catástrofe, por um lado, e de
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grandes movimentos emancipadores, por outro. Ao longo do século, enquanto as sociedades
modernas permanecerem submetidas às relações de desigualdade e exclusão, para
Benjamim a possibilidade de novas formas de barbárie, imprevisíveis, ocorrerem. Ao mesmo
tempo, ele nos leva a restituir à utopia sua força negativa, por meio da ruptura com todo
determinismo e com todo modelo ideal de sociedade que alimente a ilusão de um fim dos
conflitos e, portanto, da história.
Benjamin nos permite pensar um projeto revolucionário com vocação emancipatória
geral capaz de responder às exigências éticas e políticas de nosso tempo, e sem suprimir o papel
decisivo das classes sociais, permite repensar a emancipação social e a supressão da dominação
do ponto de vista da multiplicidade dos sujeitos coletivos e individuais, opondo-se inteiramente
“à pseudo-universalidade ideológica que considera o status quo atual como o universal humano
acabado” (LÖWY, 2005, p. 154).
É nessa perspectiva que a pequena digressão às teses de Walter Benjamin “Sobre o
conceito de História” se justifica, pois elas vão ao encontro da nossa preocupação na
organização deste trabalho. Concordamos com Benjamin ao considerar que a abertura da
história, quer se trate do passado ou do futuro, é inseparável de uma opção ética, social e
política. Caminhamos na expectativa de que a memória, utilizada inúmeras vezes como
instrumento de manipulação, possa estar “revestida de uma perspectiva interpretativa aberta
para o futuro, fonte de reapropriação coletiva e não simples museografia do presente” (DOSSE,
1998, p. 6).
Encontramos, em Benjamin, a unidade profunda, íntima, entre a ação transformadora
no presente e a intervenção da memória em um momento determinado da história. E essa ação
subversiva-emancipadora deriva, em última análise, como na utopia de Marx de uma autêntica
comunidade humana, de uma aposta: “o engajamento dos indivíduos – ou dos grupos sociais
em uma ação que comporta o perigo, o risco do fracasso, a esperança do êxito, mas em que
jogam sua vida”. E toda aposta como essa “é motivada por valores transindividuais ... e não
pode ser submetida a uma prova científica ou a uma demonstração fatual” (LÖWY, 2005, p.
156).
Como M. Löwy observa, com pertinência, não é apenas o futuro e o presente que
permanecem abertos na interpretação benjaminiana do materialismo histórico, mas também o
passado. O que significa dizer:
a variante histórica que triunfou o era a única possível. Diante da
história dos vencedores, da celebração do fato consumado das rotas
históricas de mão única, da inevitabilidade da vitória dos que
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triunfaram, é preciso retomar essa constatação essencial: cada presente
abre uma multiplicidade de futuros possíveis (LÖWY, 2005, p. 158).
A abertura do passado significa também que os chamados “julgamentos da história” não
são definitivos ou imutáveis. O futuro pode reabrir dossiês históricos, reabilitar vítimas,
reatualizar esperanças e aspirações vencidas, redescobrir combates esquecidos ou considerados
“utópicos”, “anacrônicos”, na contracorrente do progresso”. A abertura do passado e a do
futuro estão estreitamente associadas (ibidem).
Com essas preocupações conceituais e de método, estimulados pelas comemorações dos
50 anos de existência da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, e dos 60 anos
de sua Escola de Aplicação, instituições onde atuamos como docentes e pesquisadores, e a
convite da editora da Revista Iberoamericana do Patrimônio Histórico-Educativo, Profa. Dra.
Maria Cristina Menezes, organizamos o presente dossiê.
O seu principal objetivo consiste em problematizar aspectos da história dos processos
de renovação pedagógica e de modernização institucional da educação pública brasileira,
elegendo como ponto de partida estabelecimentos exponenciais da Universidade de São Paulo
(1934) que guardam, em diferentes momentos de suas trajetórias, a começar pelas feições
adotadas e finalidades atribuídas desde suas respectivas fundações, signos marcantes dos
discursos e projetos de transformação dos atuais níveis de ensino fundamental, médio e
superior. Trata-se da Escola de Aplicação da Faculdade de Educação da Universidade de São
Paulo (EA-Feusp), surgida em 1959, e da própria Faculdade de Educação da Universidade de
São Paulo (Feusp), originária do Departamento de Educação da FFCL-USP e erigida em
unidade de ensino em 1969, todos eles relacionados ao Centro Regional de Pesquisas
Educacionais de São Paulo/CRPE-SP (1956), organizado pelo Instituto Nacional de Pesquisas
Educacionais/INEP na gestão de Anísio Teixeira (1952-1964).
Seguindo os ensinamentos do saudoso prof. Celso de Rui Biesiegel, temos a convicção
de que a identidade construída na história de uma instituição é importante na formação
intelectual e moral de seus professores, alunos e funcionários (BEISIEGEL, 2003, p. 357).
Nessa direção, nossa escolha se prende, por um lado, à instigante tarefa a que se entregaram
docentes, alunos, funcionários e pesquisadores das duas instituições por ocasião das
comemorações de criação de ambas as instituições, quando uma série de atividades,
especialmente ligadas à produção e evocação de memórias, animaram todo o ano de 2019. Por
outro, o conjunto de textos, expressando a diversidade de abordagens teóricas e políticas que
nos caracterizam, busca explorar a irrupção no cenário educacional de inovações e reformas
que redimensionaram os traços da educação no país nos últimos 60 anos, por meio do exame
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dos estímulos e rebatimentos de tais transformações tendo os estabelecimentos mencionados
como atores privilegiados no curso de tais mudanças.
Parte significativa dos textos reunidos neste dossiê referem-se aos anos iniciais da
Faculdade de Educação, às suas origens como Seção de Pedagogia e, depois, como
Departamento de Educação da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade
de São Paulo, os vínculos com o Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo
(CRPE-SP) e seu projeto de formação docente e construção de uma escola pública voltada à
transformação da realidade social do país, onde se criou a então denominada Escolinha de
Demonstração (hoje Escola de Aplicação da FEUSP), e com o antigo Colégio Aplicação, o qual
até o seu fechamento pelos governos da ditadura civil militar serviu como espaço para a
realização de estágio pedagógico aos alunos dos cursos de licenciatura da USP.
Nesse período, o Brasil passou por processo intenso e acelerado de industrialização e de
urbanização. No entanto, a escola pública continua excludente, um privilégio econômico e
social, ao mesmo tempo que atua como um foco de conservantismo sociocultural, sem preparar
a inteligência para os desafios da época (FERNANDES, F., 2020).
Como bem observa F. Rodrigues (2021, p. 138), era um momento em que intelectuais
como Anísio Teixeira, Florestan Fernandes, Josué de Castro, Celso Furtado, entre outros,
procuravam captar em seus respectivos domínios de conhecimento “o essencial da realidade
brasileira”, ir além das ilusões do desenvolvimentismo.
À época, ao mesmo tempo, desenvolve-se uma Campanha Nacional em Defesa da
Escola Pública. Movimentos populares e setores sindicais, ao lado de professores e acadêmicos
das universidades públicas e, entre eles os da USP, particularmente de sua FFLCH, em meio à
tramitação da primeira Lei das Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB - 1961), vão às
ruas nos embates em defesa do ensino público, contra as forças privatistas. É também o
momento em que as populações periféricas dos grandes centros urbanos se organizam e saem
vitoriosas na luta pela ampliação das oportunidades educacionais. No estado de São Paulo, a
rede oficial passa de 41 ginásios públicos em 1940 para 561 estabelecimentos de ensino
secundário. Pela primeira vez, a rede privada perde a situação predominante ao absorver apenas
47% dos alunos matriculados nesse ramo de ensino (BEISIEGEL, 1964).
É importante assinalar as várias experiências desenvolvidas naqueles anos, uma espécie
de ensaio para a democratização do ensino médio: os “ginásios voltados para o trabalho”, as
escolas experimentais, os ginásios vocacionais, os “ginásios únicos-pluricurriculares” e, no
final dos anos 1960, os grupos escolares ginásio, os quais foram instituídos em São Paulo “[...]
como projeto piloto de uma experiência voltada à integração progressiva do ensino primário e
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do primeiro ciclo de nível médio” (BEISIEGEL, 1984, p. 398). E essas experiências
desenvolvem-se com o envolvimento e compromisso de muitos dos professores que
trabalhavam no Departamento e, depois, Faculdade de Educação da USP, que atuavam em
outros espaços institucionais dentro e fora da universidade.
Os artigos abordam também a virada dos anos 1970, marcado pelos rumos brutais
tomados pela ditadura civil militar após 1968, os violentos ataques às classes trabalhadoras, ao
movimento sindical e estudantil, à vida universitária. Buscam, principalmente, problematizar
as profundas derrotas sofridas no campo cultural e educacional e as sequelas e contradições que
se instalam na vida acadêmica, institucional, e na sua relação com o Estado autoritário e a
sociedade. Na expressão de Guimarães Rosa, uma bela lembrança de F. Rodrigues (2021, p.
139), às vezes, “é preciso ver as trevas para ver melhor”!
Ao intervir na universidade, a ditadura interrompeu ou mutilou o compromisso da
ciência com a sociedade, da educação voltada às possibilidades de transformação da sociedade
brasileira. As antigas alianças entre docentes, representativos da pluralidade teórica e política
da vida universitária, que permitiram o projeto em defesa da escola pública, por exemplo,
desaparecem. Instala-se uma nova universidade, reformada à sombra do Ato institucional 5
e do Decreto n. 477, “tendo como pano de fundo uma combinação do Relatório Atcon (1966)
e do Relatório Meira Mattos (1968)” (CHAUÍ, 2001, p. 47), introduzindo os parâmetros da
administração gerencial e refutando a ideia “perigosa” da autonomia universitária, propiciadora
de espaços para o ensino de conteúdos prejudiciais à ordem social.
O CRPE-SP e seus projetos, fragilizados pela ausência recorrente de recursos
orçamentários, morrem de inanição, ao mesmo tempo em que se procura, pela mordaça do
silêncio, extinguir sua memória e a do INEP. Da mesma maneira, experiências democráticas
mais avançadas de ensino renovado, como os Ginásios Vocacionais e o Colégio de Aplicação
são extintas, as escolas invadidas pelas forças policiais e, posteriormente, fechadas, com a
prisão de alguns professores e alunos. As tentativas, não inteiramente vitoriosas de apagamento
da memória, se realizam tanto pelo silêncio imposto como pela destruição das fontes
documentais produzidas por essas instituições.
Mais uma vez, a contradição emerge do movimento da realidade social, e observa-se a
força das pressões populares se materializar na ideia da ampliação do acesso ao ensino médio,
expressa na lei 5692, de 1971, promovida pela ditadura, por meio da implantação da
obrigatoriedade do ensino de 8 anos, com a eliminação do exame de admissão e a unificação
do antigo primário ao ginásio (o primeiro ciclo do ensino secundário) (AZANHA, 1987;
BEISIEGEL, 2005). A reforma permitiu superar uma das barreiras verticais do acesso ao ensino
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secundário, enquanto as barreiras seletivas no plano vertical e horizontal, transferidas para o
segundo ciclo do ensino médio, persistiram (MORAES, 2013, p. 987).
A partir de 1968, com a reforma universitária, iniciam-se os novos tempos, os da
universidade administrada (CHAUÍ, 2001). Além da repressão à intelligentsia promotora da
desobediência civil e da oposição aberta, Florestan Fernandes (1971) observa, na mesma
direção dos estudos de Antonio Gramsci, que no processo de organização e manutenção do
poder as classes dominantes não podem prescindir da criação de intelectuais da ordem existente
(MORAES, 2020). Nos centros de produção e divulgação do conhecimento, esses intelectuais
“operam acordos, convênios e intensa propaganda no (e sobre o) sistema escolar(LEHER,
2005, p. 224).
O momento de esvaziamento político e empobrecimento teórico coincide com a
institucionalização e expansão dos programas de pós-graduação nos anos 1970, que se
constituem no novo lócus da produção da pesquisa nos institutos especializados. Para nós, do
campo educacional, significou substantivas mudanças e novos desafios administrativos e na
produção de conhecimentos. A expansão do número de professores e a diversificação dos
estudos foi acompanhada da tendência à especialização da pesquisa entre os integrantes das
áreas.
A esse respeito, Beisiegel (2013, p. 605), em arguta análise sobre o campo educacional
e os rumos da pesquisa, levanta uma importante questão: “[...] estaríamos caminhando com
segurança em direção ao aprofundamento das especialidades e, ao mesmo tempo, a algo como
uma desejável interdisciplinaridade dos estudos no campo educacional?” Problematização que
alimenta nossas reflexões atuais, presentes em alguns textos deste dossiê, os quais analisam o
avanço do conhecimento em áreas diferentes do trabalho da FEUSP, e suas consequentes
implicações tanto na concepção e construção das propostas curriculares do Curso de Pedagogia,
quanto na elaboração de um programa comum de formação de professores integrando os cursos
de licenciaturas da Universidade de São Paulo.
Enfim, face à nossa trajetória institucional e ao legado histórico que alimentou nossas
práticas e consolidou, desde suas origens e na diversidade de posicionamentos de seus
profissionais, um projeto político de formação docente sustentado no princípio fundamental do
direito universal à educação e na defesa da escola pública, gratuita, laica, de qualidade social
referenciada, qual tem sido a contribuição da FEUSP para o avanço do conhecimento nas
diferentes disciplinas ou domínios de pesquisa em Educação e na sua prática pedagógica,
dimensões inseparáveis, nos diferentes contextos políticos, sociais e educacionais que
atravessamos?
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Complementarmente e numa tentativa de síntese, apresentamos a seguinte interpelação
à reflexão coletiva: qual tem sido a apropriação deste legado pelos sujeitos educacionais,
professores, alunos e funcionários da FEUSP, como analisam - na perspectiva de sua posição e
inserção profissional - a natureza, a consolidação e as mudanças desse patrimônio histórico,
educacional?
Neste primeiro dossiê, os artigos exploram, no segundo bloco, a trajetória de
contribuições no campo do ensino e da pesquisa, das propostas de formação docente nas
diferentes disciplinas que compõem o nosso projeto de formação do educador (como
carinhosamente F. Fernandes denominava o professor da rede básica, ao mesmo tempo
professor, pesquisador e gestor), projeto que viemos a ampliar, modificar e enriquecer: quais
nossas dificuldades e superações? As reflexões se iniciam com artigo que relata importante
estudo de interlocução acadêmica com a universidade portuguesa, um dos primeiros projetos
de internacionalização da FEUSP. Na sequência, duas análises examinam momentos distintos
da vida da Escola de Aplicação, e encerra-se esse bloco de considerações com outro artigo que
apresenta e comenta a fala de colegas sobre suas trajetórias enquanto alunos e professores na
instituição.
Parte substancial dessas reflexões, abordando outras áreas e disciplinas onde se expressa
o efetivo protagonismo da Faculdade de Educação, será publicada proximamente pela Revista,
em continuidade a este dossiê.
Incluímos, na organização da publicação, um outro espaço que consideramos relevante,
o Documentos/Dossiê, onde situamos , complementarmente, os trabalhos de organização física
e virtual de diferentes fontes documentais e museológicas - a constituição das bibliotecas de
“livros raros”, transferidos do antigo Instituto de Educação da Praça da República, e a nossa
coleção de livros didáticos, assim como o acervo e atividades do Centro de Memória da
Educação e do Museu do Brinquedo, espaços que pretendemos integrar enquanto Museu de
Educação por meio de atividades conjuntas voltadas ao ensino e à preservação da memória
educacional. Por fim, a seção fecha com depoimento relevante que apresenta a atuação da
gestão participativa construída na Unidade para o complexo enfrentamento das dificuldades
acadêmicas durante a pandemia.
Por fim, é preciso mencionar alguns aspectos da intencionalidade que informa a
organização deste dossiê e sua especificidade. O primeiro diz respeito à inadiável necessidade
de darmos uma resposta ao luto, aos infortúnios e desafios do presente, no qual políticas
genocidas do governo federal que combinam de forma inédita o neoliberalismo econômico
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da extrema direita e características políticas neofascistas promovem a subversão bonapartista
autoritária do regime político construído nos últimos 30 anos.
Nestes tempos de crises sanitária, econômica, política e cultural da sociedade capitalista,
quando, entre nós, observamos grandes retrocessos nas políticas públicas de educação e, uma
vez mais, a escola e universidade públicas encontram-se sob ataque, quando damos por
conjunturalmente perdidas as nossas caras reivindicações em favor da escola pública e sua
qualidade social, quando medidas privatizantes retiram da população trabalhadora todos os
seu direitos, incluindo o direito a uma educação igualitária, à apropriação do conhecimento, é
importante lembrar algumas considerações de método formuladas por Benjamin, inerentes ao
ofício do historiador: a questão da subjetividade e da memória na construção do conhecimento
histórico. E como indicamos em outra passagem, a abertura da história, quer se trate de
passado ou do futuro, é segundo Benjamin inseparável de uma opção ética, social e política.
Dadas a especificidade temática proposta neste dossiê, os textos se distribuem enquanto
artigos baseados em estudos e pesquisas, e ensaios que priorizam a forma de depoimentos, nos
quais a memória da experiência pessoal se entrelaça com o exame dos acontecimentos
históricos. O que nos faz lembrar as distinções apontadas nos estudos de Jean P. Miraux (2005,
p. 11-12) entre o gênero memorialista, aqui adotado, e a autobiografia. Segundo esse autor, o
memorialista inscreve a história de sua vida na história dos acontecimentos, e essa inscrição é
dominante em sua obra, enquanto o autobiógrafo em movimento contrário, inscreve a história
na escritura de sua vida.
E, aqui, entramos no segundo aspecto de nossa escolha teórica a relação entre memória
e história. Tal como nos orienta Benjamin (1991, p. 455), “a memória, assumindo a presença
da ausência, continua a ser o ponto essencial entre passado e presente, deste difícil diálogo entre
o mundo dos mortos e o dos vivos”.
De acordo com François Dosse (1998), na perspectiva de uma história social da
memória, “é no interior dessa fratura, dessa descontinuidade, que nasce a consciência
historiográfica sobre a base de uma problematização possível da memória pela história e da
história pela memória:
O falso dilema da escolha a ser feita entre o pólo de uma história baseada em
seu contrato de verdade e o de uma memória alimentada pelo critério da
fidelidade se transforma hoje, no momento de um verdadeiro deslocamento
historiográfico, em conjunção nutrida por múltiplas lealdades à prova da
verdade expressa pelo trabalho de uma nova história social da memória. Após
o primeiro movimento, que assegura a primazia do olhar crítico,
distanciamento, objetivação e desmitologização, segue-se uma segunda fase
complementar, sem a qual a história seria puro exotismo, a de uma
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rememoração de sentido, que visa a apropriação do várias sedimentações de
sentido legadas por gerações anteriores, das possibilidades não comprovadas
que sujam o passado dos vencidos e mudos da história. (DOSSE, 1998, p. 11)
Na apreciação poética de Benjamin (1991, p. 453): “o método histórico é um método
filológico, cujo fundamento é o livro da vida”.
Encerramos aqui as nossas notas iniciais. Esperamos que apreciem a leitura do dossiê e
que os estudos e reflexões apresentados venham a contribuir para uma história da educação
aberta e a construção de um ensino democrático, emancipatório, para todos os brasileiros.
REFERÊNCIAS
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Recebido em: 23 de dezembro de 2021
Aceito em: 28 de dezembro de 2021