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INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL DE VALÉRIA: DESEJO E PRÁTICA PARA A
EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA EM SALVADOR-BA
Eduardo José Fernandes Nunes
Universidade do Estado da Bahia, Brasil
eduardojosf2@gmail.com
Igor Sant'Anna
Universidade do Estado da Bahia, Brasil
arquivodoutorado@gmail.com
RESUMO
Este artigo apresenta uma experiência de educação libertária em Valéria, bairro periférico da
cidade de Salvador, Bahia, Brasil, entre 2004 e 2014, através da criação do Instituto
Socioambiental de Valéria (ISVA). Utilizamos memórias de nossas próprias vivências,
registros do blog do ISVA, materiais impressos, fotos, vídeos, documentários e entrevista para
a Agência de Notícias Anarquistas (ANA). Teias de aprendizagem (ILITCH, 1973) se
formaram em torno de uma Comunidade Educativa Vivencial (GOODMAN, 1976). Nos dez
anos do ISVA aprendemos que “o caminho da liberdade é a liberdade” (BAKUNIN, 1986) ao
construir diálogos intergeracionais sem hierarquias e unir diversão e responsabilidade dentro
de uma construção coletiva.
Palavras-chave: Instituto Socioambiental de Valéria. Pedagogia libertária. Teias de
aprendizagem.
INTRODUÇÃO
Procuramos apresentar, neste texto, uma experiência de educação libertária, sonhada e
vivida pelos autores, com destaque para a figura do incansável e insurgente Antônio Fernandes
Mendes, realizada no espaço florestal de sua residência. Tal experiência foi fortalecida por
pessoas que também compartilhavam das nossas ideias, e que eram remanescentes do antigo
movimento libertário da década 1970-80 em Salvador. Também contribuíam algumas pessoas
das novas gerações do movimento libertário soteropolitano e de tantas outras que
compartilharam, com empenho, saberes e práticas de solidariedade
1
.
1
Queremos agradecer in memorian a três grandes militantes anarquistas Antonio Fernandes Mendes fundador do
ISVA, Dario Tavares Santos integrante da Revista Barbárie e participante desde o início do ISVA e ao El Brujo
Tavares que também colaborou no Jornal O inimigo do Rei, grupo Bandeira Negra e nas ações do ISVA.
Agradecemos também a Gilberto morador do bairro e fundador do ISVA, Bilu também morador do bairro, Hilda
Braga integrante da Barbárie e fundadora do ISVA, Fanilma Bonfim colaboradora do coletivo Barbárie e do
ISVA, ao companheiro Carlos Baqueiro do Inimigo do Rei, Bandeira Negra e integrante do ISVA responsável
pelo Cine-Clube Valéria e apoiador nas melhorias das instalações, ao Ricardo Liper e Tony Pacheco que sempre
colaboraram financeiramente para a manutenção do instituto, ao Walter Bitencourt morador do bairro, poeta, que
participou de ações no ISVA e conheceu as ideias libertárias. Aos moradores e vizinhos de Seu Antônio que
no dia a dia colaboravam para a existência do Instituto, e às companheiras de São Paulo Doris Accioly e Lucia
Bruno que enviaram colaborações para a manutenção do Instituto e, também, nossos agradecimentos ao querido
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Esta experiência realizada no período de 2004 a 2014, em Valéria, um bairro popular
do subúrbio de Salvador, foi desenvolvida a partir da criação do Instituto Socioambiental de
Valéria, sem a participação do Estado na organização das ações. Reuniu estudantes e
professores de diferentes escolas públicas locais, como também estudantes e professores
universitários e, principalmente, as crianças, jovens e adultos moradores desse bairro e de outros
adjacentes.
Seguíamos uma concepção de Educação Libertária em que se pese uma oposição a
qualquer atitude tradicional da educação autoritária. Assim, no ISVA todos eram alunos,
inclusive quem estava ensinando. As hierarquias que surgiam em momentos específicos quando
alguém se tornava autoridade em algum assunto, logo se dissolviam, eram temporárias e não se
institucionalizavam. A Educação Libertária que praticávamos foi inspirada em alguns autores
como veremos a seguir, porém sabíamos que era construída e criada na prática de seres humanos
entre si e no imprescindível contato destes com a natureza, e voltada para a comunhão de
momentos sublimes em que era necessário cada participante se sentir livre para contribuir e ser
considerado um agente importante no processo de construção da experiencia social.
O ISVA contava com um amplo espaço florestal urbano proveniente do esforço de
preservação de Antônio Mendes, desde a década de 1970, quando ali chegou fugido da
repressão policial da ditadura militar. Antônio Fernandes Mendes era cearense, natural de
Quixeramobim, descendente do Clã Mendes Maciel (família de Antônio Conselheiro). Era
agricultor desde a infância; autodidata; anarquista, anarco-sindicalista, agroecologista;
curandeiro, sendo profundo conhecedor das plantas e das ervas medicinais. Entre as suas
atividades, destacamos que foi -integrante do jornal O Inimigo do Rei e do coletivo Barbárie.
FIGURA 1 - Antônio Fernandes Mendes.
Fonte: Arquivo do ISVA
companheiro libertário português José Maria que em suas vindas a Salvador sempre visitava o ISVA e
acompanhava suas ações. A todos aqueles que participaram das ações no ISVA.
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Nesse espaço, podia-se armar barracas para participar de simpósios, seminários,
oficinas. No instituto, os visitantes tinham a possibilidade de estudar e participar de atividades
socioambientais. Na biblioteca José Oiticica, encontravam-se livros infantis, literatura para
todas as idades, livros anarquistas, sobre ecologia e agroecologia. Funcionava como um centro
de estudos em várias áreas do conhecimento, priorizando a sociologia, a educação, a ecologia
humana, a geografia dos espaços habitados e habitáveis, artes e ofícios e agricultura sustentável.
Desenvolvia projetos de hortas urbanas e escolares com a perspectiva da educação ambiental
libertária, em um espaço que, ao longo de dez anos, realizou ações educativas com um público
amplo e variado, sempre seguindo ou perseguindo o pensamento libertário, formando teias de
aprendizagens (ILLICH, 1973) e fazendo adaptações quando necessário.
O Instituto Socioambiental de Valéria (ISVA) resulta de encontros de sonhos
anarquistas, mas tornou-se também um centro que fomenta tanto o encontro entre anarquistas,
como os destes com moradores de áreas periféricas soteropolitanas, consubstanciando
comunidades educativas vivenciais (GOODMAN, 1976). Inspirados na ideia de Bakunin
(1986) de que o ensino deve ser integral, nossa convivência educativa era livre de programas
que direcionassem as crianças somente para o exercício mental e alienação intelectual. Nossos
encontros aconteciam a partir de propostas de oficinas diversas, momentos de convivência
informal, mutirões práticos de aprendizado mútuo e diálogos intergeracionais.
O ISVA, localizava-se à margem esquerda da rodovia BR-324, que liga Salvador à
cidade de Feira de Santana, e a cerca de 23 quilômetros do centro da cidade de Salvador. O
bairro de Valéria, ao Norte, limita-se com o município de Simões Filho; a Oeste e Sul, com a
BR 324, a Leste com o bairro de Pirajá e o Parque Florestal de Pirajá e o bairro de Boca da
Mata. A Oeste, além da rodovia, estão os bairros de Bico Doce e Palestina.
Valéria é um sub-distrito de Salvador, abrigava em 2010 aproximadamente 26.210
habitantes, que careciam, e ainda hoje carecem, de várias necessidades fundamentais, em
educação, saúde, habitação, áreas de lazer, saneamento. Essa região de Mata Atlântica era
originalmente ocupada por indígenas Tupinambá, e, mais tarde, por quilombos (Urubu) sendo,
até meados do século XX, pertencente ao município de Lauro de Freitas. Com a expansão
industrial nas décadas de 1960/1970, deixa de ser um bairro basicamente rural e passa a ser um
bairro do município de Salvador, atraindo atividades de serviços e local de residências dos
trabalhadores das industrias instaladas nas proximidades, como as do Centro Industrial de
Aratu, adquirindo algumas características do setor industrial e de serviços para as indústrias
locais e ainda mantendo pequenas atividades rurais.
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Valéria faz parte da bacia do rio do Cobre, numa extensa área exuberante de Mata
Atlântica urbana, onde foi construída a Barragem do Cobre em 1932, situada no bairro de
Pirajá, que abastecia de água o subúrbio de Salvador. Atualmente, essa área abriga três parques
no seu entorno: o Sítio Histórico de Pirajá, o Parque de São Bartolomeu e a Reserva Florestal
de Pirajá, em torno do qual foram se formando diversos bairros (Valéria, Pirajá, Alto do Cabrito,
Plataforma, Nova Constituinte, entre outros).
A proposta do ISVA tinha como objetivo construir um centro libertário de resistência,
através de práticas eco-produtivas, oficinas autogestionárias, literatura, artes e, principalmente,
educação ambiental como proposta de preservação do entorno formado por florestas de Mata
Atlântica. Em termos teóricos, o objetivo era refletir sobre a questão da autoridade e do
autoritarismo na educação, sobre poder local, autogestão, ações ecológicas e propostas de
sustentabilidade. Então, a partir de 2004 2005, o instituto inicia suas atividades como um
Centro de Estudos em Ecopedagogia e Agroecologia, a Biblioteca Comunitária José Oiticica, e
a elaboração de um Projeto Integrado de Educação e Cooperativismo na perspectiva da
economia solidária e autogestão social, objetivando desenvolver diferentes ações educativas.
Inicialmente havíamos pensado em criar uma fundação com o nome de Antônio
Fernandes Mendes e seu legado histórico, mas por dificuldades de questões burocráticas,
decidiu-se coletivamente criar um instituto, o ISVA, mediante uma reunião de assembleia,
composta por Antônio, moradores do bairro e integrantes do movimento libertário.
Começamos, portanto, a organizar as atividades com os frequentadores que visitavam
esporadicamente a área de Antônio Mendes, os vizinhos e amigos próximos, grupos de jovens
e adultos locais. Em seguida, fomos ampliando o raio de ação, envolvendo grupos de alunos de
escolas municipais, acompanhados de seus professores; estudantes de nível médio; estudantes
universitários; pesquisadores e visitantes locais, nacionais e estrangeiros. Além desses, havia
os contatos com associações de moradores próximas ao bairro de Valéria, como o bairro da
Palestina, Pirajá, o de Águas Claras, o bairro da Mata Escura, Engomadeira e outros.
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FIGURA 2 - Antônio e alunos de escolas públicas.
Fonte: Arquivo do ISVA
Nesse processo, o ISVA foi se organizando, criando oficinas temporárias como as de
artesanato com bambu, fabricação de instrumentos musicais (alfaia), e as oficinas permanentes
de teatro, compostagem, hortas, literatura, cineclube e feiras agroecológicas. Antônio Mendes,
ao longo do tempo, vinha desenvolvendo inúmeras campanhas de educação ambiental para
preservação dos parques, nas escolas e associações, inclusive nos terreiros de candomblé, que
ficavam próximos da área do instituto.
Os trabalhos dentro do ISVA eram definidos com os participantes das ações, em um
constante diálogo dentro da perspectiva da pedagogia libertária e de como ela vinha nos
ensinando a respeito da educação tradicional, autoritária: primeiro, a crítica ao poder do
professor sobre os estudantes; segundo, a crítica à forma de ensinar confinados em uma sala de
aula como se esta fosse uma cela; em terceiro, a crítica ao sistema de avaliação baseado em
prêmios e castigos onde a competição é estimulada de forma intensa; em quarto o sistema
burocrático de ensino centralizado no governo federal entre outros.
Esse conhecimento e as discussões sobre a educação envolvia-nos cotidianamente na
maneira de lidarmos com os participantes que vinham frequentar o instituto. Sempre estávamos
comentando uma ou outra característica da educação autoritária e de como podíamos agir nesse
espaço diferentemente. A história da pedagogia libertária, desde suas primeiras ideias no século
XIX, foi permeada de muitos exemplos, constituindo-se enquanto experiências significativas e
qualitativamente importantes para tecer propostas de convivência livres da dualidade oprimido-
opressor.
As dificuldades para empreender a educação libertária eram também uma dimensão
importante dentro do grupo para podermos construir uma proposta que fosse oposta a educação
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autoritária e que despertasse o interesse dos frequentadores do instituto para a realização de
suas ões. Essa memória histórica de teorias da educação antiautoritárias e de centenas de
escolas libertárias criadas em diversas partes do mundo serviam como estímulo às nossas
intenções nesse bairro de Salvador.
As experiências no caso brasileiro, por exemplo, em que pese o apagamento dessa
memória de mais de meia centena de escolas anarquistas fundadas no início do século XX, eram
exemplos de experiências que também nos formavam para as nossas ações no bairro de Valéria.
A essas experiências somavam-se as de um grupo de professores de diferentes países, que na
atualidade vem se dedicando à filosofia da educação anarquista, como a exemplo do professor
Sílvio Gallo, um dos grandes pensadores brasileiro no campo da filosofia e da história da
educação anarquista, ao lado de autores como Codello, na Itália; Solà, na Espanha, e Lenoir,
em França.
Francesco Codello, em seu livro A boa educação: experiências libertárias e teorias
anarquistas de Godwin a Neill, faz uma profunda análise histórica das teorias e práticas
anarquistas voltadas para as experiências educativas libertárias. Para o autor a educação
libertária é mais “uma mescla contínua de teorias e experiências, de ideias anarquistas aplicadas
à educação, mas também das teorias e práticas educativas e didáticas que, frequentemente,
mesmo de um modo implícito, podem remeter ao anarquismo” (CODELLO, 2007, p. 19).
Gallo, por sua vez, também com uma extensa produção teórica sobre o anarquismo,
publicou, entre outros trabalhos, uma interessante coletânea com o título Pedagogia libertária:
anarquistas, anarquismos e educação, onde reuniu diversos artigos seus publicados em
diferentes revistas e capítulos de livros da última década do século XX e início do XXI.
Os temas abordados por esses autores vão desde educação anarquista; a filosofia
política da pedagogia libertária de Godwin a Neil; a concepção de politecnia em Proudhon;
estudos sobre ética, ciência e educação na perspectiva anarquista; experiências de pedagogias
libertárias; a experiência da escola moderna de Barcelona; os limites de uma educação
autogestionária; a experiência da pedagogia institucional; como também as propostas de
universidades libertárias. Tudo isso nos proporcionou uma extensa e profunda reflexão sobre a
importância de se estudar novas experiências que ocorrem ainda hoje em várias partes do
mundo.
Em realidade, o aprendizado prático de ofícios manuais, entremeado por discussões
analíticas, tinha como princípio preparar as crianças para a vida do pensamento e do trabalho,
como diz o próprio Bakunin (1986, p. 49): “Tendrá el conocimiento de la naturaleza como base
y la sociologia como cima”. Assim, ambientados por uma floresta plantada pelas mãos
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humanas, vivenciando experiências diversas, levávamos a sério a ideia de uma educação onde
a autoridade constituída seria gradualmente desfeita e as experiências pessoais seriam vividas
cada vez mais de forma autônoma considerando que “Los niños, como los hombre maduros, no
llegan a ser sábios más que por la experiência que ellos mismos hacen, nunca por los otros”
(BAKUNIN, 1986, p. 51).
A politecnia presente na teoria educacional anarquista, analisada por Gallo (1993)
como desdobramento de ideia de educação integral, foi inspiração importante nas atividades do
ISVA, no sentido de possibilitar o acesso ao aprendizado de múltiplas técnicas, levando-se em
conta as dimensões físicas, intelectuais e morais para o desenvolvimento humano. Uma
adaptação contextual básica necessária, pois não podíamos pensar numa politécnica baseada
apenas no processo industrial como propunha Proudhon. Essa politecnia, segundo Gallo, era
uma:
[...] opção por uma educação conscientizadora e que respeite o indivíduo,
dando-lhe condições de desenvolver suas aptidões e habilidades, encontrando
um ofício que esteja em harmonia com suas condições pessoais e particulares,
mas que procure desenvolver neste indivíduo o sentido das solidariedade e da
comunidade, conscientizando-o de seu importante papel enquanto ator de uma
sociedade da qual é parte ativa. (GALLO, 1993, p. 44).
Além das artes e dos jogos lúdicos, havia o trabalho com a terra, quase sempre
coordenado por Antônio Mendes, e a aprendizagem sobre as ervas medicinais e a diversidade
florestal das árvores e cipós e plantas medicinais que haviam no espaço, dentro de uma
perspectiva ecológica de análises sociopolíticas e ambientais do planeta. Isso incluía tanto os
impactos à saúde provocados pela ação humana na natureza, bem como uma permanente lição
de como extrair o necessário para viver da natureza sem depredá-la. Então trabalhávamos com
a politecnia quando oferecíamos aos jovens e crianças uma oportunidade de conhecer e praticar
novos conhecimentos dentro da perspectiva libertária e agroecológica.
SONHO QUE SE SONHA JUNTO É REALIDADE
A vida é feita de encontros e reencontros. Como dizia o poeta baiano Raul Seixas:
“sonho que se sonha só é só um sonho, mas sonho que se sonha junto é realidade”. O Instituto
Socioambiental de Valéria (ISVA) nasceu desses sonhos anarquistas que se encontraram,
reencontraram, reciclaram, reformularam e se realizaram para além do ato de sonhar.
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Anarquistas que desejaram se unir para praticar mudanças e imprimir na história mais uma
experiência de educação libertária.
No ano de 2003, um dos autores deste artigo, Eduardo Nunes, baiano, anarquista desde
meados da década de 1970, ex-integrante do Inimigo do Rei, fundador da Revista Barbárie,
retorna da Universidade de Barcelona, onde concluiu Doutorado em Geografia, e retoma seu
cotidiano como professor na Universidade do Estado da Bahia. Certo dia, andando pelos
corredores da universidade se reencontra com seu antigo parceiro, companheiro de militância
Antonio Fernandes Mendes (1936-2015).
Após 20 anos sem contato, o reencontro de Eduardo e Antônio renderiam frutos que
nem os próprios imaginavam. Lembranças que afloravam desse reencontro, quando nos idos da
década de 1970/80 os dois participavam juntos do Coletivo Barbárie e atuavam no bairro de
Valéria e no sindicato de trabalhadores rurais. Nesse dia, conversando entre si, Eduardo e
Antônio ficaram de marcar um encontro, do qual nasceu o desejo de retomar novas atividades
no bairro de Valéria
2
.
A área onde o ISVA foi fundado era localizada no fim de linha de Valéria, bairro da
periferia de Salvador, onde Antônio Fernandes Mendes passou a residir a partir de 1972.
Ocupou um terreno, antigo campo de futebol local, onde construiu sua casa e implantou, através
da prática da agroecologia, a primeira horta ecológica em Salvador (Horta Natureza),
abastecendo os principais restaurantes naturais da cidade. No ano de 2004, o lugar antes
destinado à horta, já havia sido transformado em uma pequena agrofloresta.
Este era o cenário do local que sediou a experiência de uma das primeiras atividades
que renderiam posteriormente a existência do Instituto Socioambiental de Valéria: Eduardo
Nunes, então professor no Curso de Bacharelado em Urbanismo, organizou uma visita como
atividade programada da disciplina Sociologia Urbana. Estudantes do curso, alunos da
disciplina, sabendo da afinidade ideológica entre o professor Eduardo e um colega militante
estudantil articulam, sem saber, mais um encontro que viria a alimentar a semente do ISVA.
Igor Sant’Anna, o outro autor deste texto, também baiano, estudante do Curso de
Bacharelado em Urbanismo, ex-integrante do Diretório Central dos Estudantes e do Centro
Acadêmico de Urbanismo, havia abandonado o movimento estudantil institucionalizado para
2
As atividades no bairro de Valéria paralizaram desde 1984\1985. Na época, os caminhos dos integrantes do
Coletivo Barbárie se dispersaram em decorrência de atividades profissionais. Antônio tinha escolhido trilhar pelo
crescimento da sua horta orgânica que abastecia vários restaurantes naturais de Salvador, a qual havia sido
ampliada a partir de 1985 com a participação muito ativa de Salomé, sua companheira, e Tânia, sua filha. Além
disso, sua militância e ações através da agricultura orgânica foram crescendo em direção a outras regiões da
Bahia e em outros estados, e fizeram com que seus caminhos seguissem diferentes rumos do coletivo.
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fundar, juntamente com outros colegas, um movimento estudantil para atuar nas comunidades
do entorno da universidade. Anarquista, foi fundador do AULA (Amigos Unidos pela
Liberdade da Autogestão) e depois do NAPA (Núcleo Autônomo de Prática Autogestionária),
integrante do corpo editorial do Fanzine Matutaí.
Igor, que na ocasião não era ainda aluno do professor Eduardo, se integra à turma como
convidado extra e segue para o sítio que guardava tantas histórias de vivências anarquistas.
Naquele dia através de um fértil encontro entre Eduardo, Antônio e Igor foi plantada uma
semente de algo que ninguém ali imaginava ainda: o Instituto Socioambiental de Valéria. O
ISVA foi tecido de ações práticas, encontros cotidianos, sonhos coletivos e articulações. A
partir desse encontro outros viriam, com mais força, crescendo e atraindo a rede de atuação
libertária de Salvador além de acionar redes de movimentos comunitários periféricos da cidade.
Assim, em 2004, começou mais uma ação com Antônio no bairro de Valéria, com a
criação do Instituto Socioambiental de Valéria (ISVA). A partir desses contatos iniciais, fomos
amadurecendo essa nova proposta. Inicialmente, imaginamos criar uma fundação com o seu
nome, mas as complicações burocráticas nos levaram a desistir e a criar o instituto, embora não
tenhamos conseguido de fato legalizá-lo, em que pese todo o esforço empreendido.
As ideias e conversas iniciais conduziram-nos a criar uma biblioteca e, a partir dela,
ampliar nossas ações. Começamos a coletar livros doados de pessoas de diferentes lugares, até
mesmo de uma biblioteca comunitária da qual participávamos e que tinha recebido uma doação
grande, mas não cabia no espaço deles. Além disso, elaboramos um projeto para a criação de
uma biblioteca para o Ministério da Cultura em nome de Antônio. Esse projeto adquiriu um
computador, duas estantes e cerca de 500 livros sobre literatura, ciências e história, entre outros
assuntos.
Após 20 anos, esse reencontro gerou a possibilidade de empreendermos novas ações
no bairro. Fomos retomando os contatos e contatando outros companheiros do movimento
libertário e estudantes da UNEB. Os vizinhos dele eram ainda quase todos os mesmos, e ainda
permanecia ali o terreiro de candomblé em frente, a fábrica ao lado, D. Maria mais à esquerda
e outros mais. No decorrer desses anos, ele teve uma nova companheira, que veio a falecer, e
alguns dos filhos dela frequentavam sua casa e o ajudavam em alguns serviços. De um radical
naturalista, passara a ter uma postura mais condescendente com os alimentos. Contudo, o perfil
ambiental, a preocupação com a preservação dos espaços, a defesa de uma agricultura
biodinâmica e orgânica tinham permanecido, assim como a luta social, a organização do bairro
e de outros permaneceram também.
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As atividades que foram realizadas na área verde: plantio, coleta de frutos, coleta de
plásticos, preparação de composto orgânico, construção de mandalas, preparo de remédios
naturais. Atividades dentro da biblioteca: empréstimo de livros, oficinas de leitura, desenhos,
origami, trabalhos escolares; cineclube, teatro, atividades de lazer: banho no tanque,
brincadeiras dentro do espaço, histórias, feira ecológica, feira de livros, seminários. Ações
realizadas pelo ISVA: oficinas de leitores, oficinas eco-produtivas (bambu, instrumentos
musicais), teatro, educomunicação, cooperativismo, rodas de leituras, vídeos, cordéis,
cineclube, feiras de livros e de economia solidária.
O curso de Bambu em Valéria, realizado em primeiro de novembro de 2008, em
parceria com Vítor da H2Bio, organização solidária que tem suas oficinas em Pituaçu, deu
resultados positivos. Logo após a realização do curso, o grupo criou uma oficina e fabricou
algumas peças. Participaram cerca de 18 pessoas de Valéria, com idades variando entre 12 e 70
anos. Como no próprio instituto e nas imediações existe bambu, acreditamos que era possível
desenvolver essa atividade, preservando as espécies, mas ajudando na renda dos participantes.
Nesse sentido, é que organizamos, na época, a formação de uma Cooperativa de Agroecologia
de Valéria (CAVA) para atuarmos na área de artesanato, plantas medicinais, mudas de árvores
nativas da Mata Atlântica, árvores.
FIGURA 3 - atividade na Biblioteca José Oiticica
Fonte: Arquivo do ISVA
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O Instituto Socioambiental de Valéria, em parceria com a Universidade Federal da
Bahia, realizou através do projeto Oficina de Formação de Leitores Dom Quixote, na
Biblioteca Comunitária Professor José Oiticica, do bairro de Valéria, diversas atividades lúdicas
para crianças e adolescentes do bairro.
O principal objetivo dessa oficina era fazer com que todas (os) começassem a entender
que a criança é o elo mais fraco e exposto da sociedade. Assim, nos expressávamos no texto
que elaboramos para divulgar esse evento. Se um país é uma árvore, a criança é um fruto e está
para o progresso social e econômico como a semente para a plantação, nenhuma nação
consegue progredir sem investir numa educação libertária e libertadora, o que significa investir
na infância. Por um motivo bem simples, ninguém planta nada se não tiver uma semente. Por
isso, era necessário lançar agora a sua semente. Assim era divulgado esse trabalho, que
funcionava nos dias de terça, quarta e quinta-feira, a partir das 9:30 da manhã. Tínhamos à
frente dessa oficina Marcela, estudante de artes da UFBA, que abraçou o trabalho com garra e
carinho para com as crianças que participavam, com idades que variavam de 7 a 13 anos. Ela
interagia não apenas na biblioteca, mas com o espaço verde, levando-as para coletar plantas e
sementes e a criarem histórias.
FIGURA 4 - Marcela em atividade da Oficina de Formação de Leitores D. Quixote
Fonte: Arquivo do ISVA
Outra oficina importante foi a de confecção do instrumento percussivo alfaia, realizada
em parceria com a casa de Nagô Axé, tinha como objetivo possibilitar aos jovens e adultos do
bairro de Varia, possibilidades de autossustentação através da arte na produção de
instrumentos musicais, além da formação de grupos culturais na comunidade. A oficina era
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aberta ao público externo ao bairro, para pessoas que pudessem pagar, e, com esse investimento,
possibilitar a 15 jovens e adultos do bairro a aquisição de insumos para a fabricação de seus
próprios instrumentos. A oficina foi realizada em três finais de semana consecutivos, nos dois
turnos, ou seja, das 9h até as 17h, com a participação dos moradores do bairro. Ao final, todos
tiveram, além da experiência no fabrico do instrumento, a possibilidade de ter o seu próprio.
FIGURA 5- Oficina de Confecção de Instrumento Percussivo Alfaia
Fonte: Arquivo do ISVA
Uma outra atividade importante do ISVA foi a criação do Cineclube de Valéria,
organizada pelo companheiro Carlos Baqueiro, que funcionava geralmente aos sábados, no
final da tarde, quando se projetavam filmes seguidos de debates. Dentre eles, foram exibidos os
seguintes: Araguaia, Nação Fast Food, Mediterrâneo, Tempos Modernos, The Edukators,
Machuca, Macunaíma, Quanto vale ou é por Quilo?, Revolução dos Bichos, Vozes Inocentes,
A Onda, entre outros. Uma atividade que se tornou importante não apenas pelos debates e
conversas após a exibição, mas pela interação do grupo com os moradores.
A feira agroecológica foi uma atividade que contava sempre com pessoas que vinham
visitar o instituto, inclusive de outros países, com a participação do grupo de artistas, dos
palhaços, barracas de alimentos, roupas, remédios naturais, almoço coletivo, plantio de árvores
e visitas ao espaço, mudas de plantas.
CONCLUSÕES GERMINADAS
A experiência do ISVA no bairro, gerou uma interação com estudantes de várias
escolas, além de associações de moradores do próprio bairro, bem como de outros onde
ISSN 2447-746X
DOI: https://doi.org/10.20888/ridpher.v8i00.16984
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Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 8, p. 1-13, e022012, 2022.
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tínhamos contatos, como Palestina, Mata Escura, Engomadeira e Estrada das Barreiras. Eram
desenvolvidas atividades conjuntas com essas associações de bairro e o intercâmbio de
conhecimentos. As visitas do grupo nas escolas e a realização de atividades em conjunto, em
aulas ao ar livre, tratos culturais, como a compostagem, plantio e organização de hortas. No
espaço, desenvolvíamos esportes como lutas com bastão, leituras de histórias, teatro, atividades
intensas que demandavam planejamento e organização não diretiva.
Nesse percurso e período de grandes aprendizagens mútuas entre os participantes do
local, ficamos com a certeza de que o “o caminho da liberdade é a liberdade”, sem prêmios ou
castigos, não apenas em salas fechadas e professores plenos de saber. Troca de conhecimentos,
diálogos sem hierarquias, diversão e responsabilidade, construção coletiva. O ISVA deixou um
legado importante para todos que ali estiveram e contribuíram. Nos últimos anos, as
dificuldades apareceram e logo em seguida, com a doença e o falecimento do companheiro
Antônio Fernandes Mendes, foram encerradas as atividades no ISVA. O espaço foi vendido
pela família e uma empresa ocupou a área, desmatando o espaço natural preservado pelo
companheiro ao longo de grande parte da sua vida, desde a década de 1970. Flores para os
rebeldes que lutaram.
REFERÊNCIAS
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sobre educacion. Colección Clásicos, Educación, n. 1. Lérida, Madrid: Grupo Cultural Zero,
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CODELLO, Francesco. A boa educação: experiências libertárias e teorias anarquistas na
Europa de Godwin a Neill. V. 1. A teoria. São Paulo: Imaginário: Ícone, 2007.
GALLO, Sílvio. Pedagogia libertária: anarquistas, anarquismos e educação. São Paulo:
Editora Imaginário/Editora da Universidade do Amazonas, 2007.
GALLO, Sílvio. Politecnia e educação: a contribuição anarquista, In: Pro-posições, v. 04, n.
3[12], p. 34-46, nov. 1993.
GOODMAN, Paul: La des-educación obligatoria. 2. ed. Barcelona: Fontanella, 1976.
ILLICH, Ivan. A sociedade sem escolas. Petrópolis: Vozes, 1973.
Recebido em: 18 de setembro de 2022
Aceito em: 16 de dezembro de 2022