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CONSTRUIR UMA INSTITUIÇÃO: DÉCADAS INICIAIS DA FACULDADE DE
EDUCAÇÃO DA USP
Roseli Fischmann
Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, Brasil
roselif@usp.br
RESUMO
O presente artigo tem por objetivo oferecer elementos para uma melhor compreensão de
peculiaridades de como se constituiu a Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo,
tanto em seus antecedentes, como em seus primeiros 20 anos de existência independente, a
partir de sua instalação em janeiro de 1970. Busca também oferecer informações e análises
referentes a um período de mudanças institucionais marcadas por mudanças poticas internas,
além daquelas que ocorriam na sociedade. Metodologicamente, trata-se de pesquisa documental
e bibliográfica, complementada por relato das próprias vivências institucionais da autora em
ininterruptos 50 anos de vida na FEUSP, sendo, nesse sentido, investigação que se aproxima da
abordagem (auto)biográfica.
Palavras-chave: Origens da FEUSP. Mudanças institucionais. Compromisso político.
CONSTRUYENDO UNA INSTITUCIÓN: PRIMERAS DÉCADAS DE LA
FACULTAD DE EDUCACIÓN DE LA UNIVERSIDAD DE SÃO PAULO
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo ofrecer elementos para una mejor comprensión de las
peculiaridades de mo se constituyó la Facultad de Educación de la Universidad de São Paulo,
tanto en sus antecedentes como en sus primeros 20 años de existencia independiente, desde su
instalación en enero de 1970. También busca ofrecer información y análisis referentes a un
período de cambios institucionales marcados por cambios poticos internos, además de los
ocurridos en la sociedad. Metodológicamente, se trata de una investigación documental y
aproximada, experiencia complementada con el propio relato del autor en 50 años
ininterrumpidos de vida en la FEUSP, siendo, en ese sentido, una investigación que adopta el
enfoque (auto)biográfico.
Palabras-clave: Orígenes de la FEUSP. Cambios institucionales. Compromiso político.
THE BUILDING OF AN INSTITUTION: THE FIRST DECADES OF THE FACULTY
OF EDUCATION AT THE UNIVERSITY OF SÃO PAULO
ABSTRACT
This article aims to offer subsidies for a better understanding of the peculiarities of how the
Faculty of Education of the University of São Paulo had been constituted, both in its antecedents
and in its first 20 years of independent existence, from its installation in January 1970. It also
seeks to offer information and analyzes referring to a period of institutional changes marked by
internal political changes, in addition to those that occurred in society. Methodologically, it is
a documentary and bibliographic research, complemented by the testimony of the author's own
institutional experiences in uninterrupted 50 years of life at FEUSP, being, in this sense, an
investigation that is related to the (auto)biographical approach.
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Keywords: Origins of FEUSP. Institutional changes. Political commitment.
CONSTRUIRE UNE INSTITUTION: LES PREMIÈRES DÉCENNIES DE LA
FACULTÉ D'ÉDUCATION DE L'UNIVERSITÉ DE SÃO PAULO
RÉSUMÉ
Cet article vise à offrir des éléments pour une meilleure compréhension des particularités de la
constitution de la Faculté d'Éducation de l'Universide São Paulo (FEUSP), aussi bien dans
son prélude qu’au cours de ses 20 premres années d'existence indépendante, depuis sa création
en janvier 1970. Il vise également à fournir des informations sur et à analyser une période de
changements institutionnels marqués par des changements politiques internes au-delà de ceux
qui avaient lieu dans la société. thodologiquement, il s'agit d'une recherche documentaire et
bibliographique, complétée par les propres expériences institutionnelles de l'auteure au cours
de 50 ans de vie ininterrompue à la FEUSP, étant, en ce sens, un travail l à l'approche
(auto)biographique.
Mots-clés: Origines de la FEUSP. Changements institutionnels. Engagement politique.
INTRODUÇÃO
O ponto de partida que tomo, aqui, é a reflexão presente em artigo precioso da
professora doutora Carmen Sylvia Vidigal Moraes. Ao considerar os muitos textos
celebratórios e em homenagem ao centenário de Florestan Fernandes no meio teórico da
Sociologia, identifica a quase nula atenção dada à relevante obra resultante de suas pesquisas
no campo educacional, incluindo o fato de ter sido orientador de Celso de Ruy Beisiegel e de
Luiz Pereira, assim como a relevante e histórica contribuição de Florestan às políticas públicas
de educação. Afirma então Moraes (2020): [...] ambos passam pela questão difícil e complexa
do apagamento da memória, ou melhor, do esquecimento a que são submetidas circunstâncias,
pessoas e situações no decorrer da hisria”. (p. 3)
Em artigo anterior, apontei o abandono amnésico a que o Estado e a sociedade
brasileira têm relegado a memória coletiva” (FISCHMANN, 2013) e algumas das repercussões
sobre a educação que semelhante abandono ocasiona, incluindo impactos diretos no cotidiano
escolar, de todos os níveis de ensino. No texto da professora Carmen Sylvia há uma explícita
preocupação com o apagamento que governos de ultradireita têm procurado operar em vel
mundial, o que inclui, lamentavelmente, o caso do Brasil sob o governo que se iniciou em 2018,
marcado também pela negação da democracia, da ciência e da própria razão.
Tomo a liberdade, ainda, de dialogar com Moraes (2020) para oferecer
complementação, ou derivação, da afirmação feita por ela. Sim, uma parte do que ocorre é
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esquecimento”, que se tenta justificar com base em fatos corriqueiros. Mas, entendo, é tamm
resultado de certa atitude que menospreza, por tantas razões que nem se mencionam e nem se
justificam, o fato de que a construção do saber sempre se faz “sobre os ombros de gigantes”,
frase de Isaac Newton popularizada nos tempos recentes. Entendo que há, também, um
apagamento da memória”, que é acionado de modo informal, mas efetivo: seja por um tipo de
“memória seletiva” no meio acadêmico, que privilegia a escolha pessoal em detrimento do
coletivo; seja pela omissão, em artigos e livros, do reconhecimento de autores e obras dos quais
se retira as informações de que se necessita, mas se as condena à ausência de citação da fonte,
à espera da condescendência de quem aprova aquele apagamento, em meio a outros, ou por
igualmente praticá-lo, ou por qualquer outra atitude simplesmente blasé, no que se refere ao
reconhecimento do mérito de quem o tem. Porque se dá o esquecimento ou como e por que se
faz o apagamento da memória poderiam ser bom objeto de pesquisa, mas não é o objetivo aqui.
Procuro, então, continuar a seguir a inspiração de MORAES (2020) que afirma:
[...] não compactuando com esse relativo silêncio ou apagamento da memória,
o objetivo da intervenção é o de explicitar a contribuição do pensamento de
Florestan Fernandes e sua importância seminal no trabalho fundador daqueles
que, sob sua orientação, contribuíram para a consolidação da sociologia da
educação no país”. (p. 4)
A tarefa de pensar os 50 anos da Faculdade de Educação da USP encontra uma
contribuição indispensável, de grande profundidade e riqueza, nesse artigo da professora
Carmen Sylvia, em especial no que se refere à implantação dos estudos e docência no campo
da Sociologia da Educação, pela atuação do professor Celso Beisiegel. Frente aos belíssimos
resultados obtidos nesse trabalho de MORAES (2020), percebo que aqui apresento apenas um
esboço inicial, que procura oferecer algumas anotações sobre as três primeiras décadas da
FEUSP, igualmente não compactuando com esse relativo silêncio ou apagamento da
memória”, processo tão complexo quanto possível de ser superado, ainda que aos poucos, em
partes e com muita colaboração.
A contribuição que me proponho a oferecer, então, foi elaborada com base em pesquisa
documental e bibliográfica, em parte guiada e complementada por relato de minhas próprias
vivências institucionais, sendo, nesse sentido, trabalho próximo à abordagem (auto)biográfica,
como tratada por Abraão (2013). Como recorte, volta-se para processos, obras e pessoas que
entendo devam ser lembradas. Justifico essa escolha de metodologia combinada, porque
ingressei na Faculdade de Educação da USP em março de 1971, com 17 anos de idade, aprovada
no exame vestibular realizado em janeiro daquele ano, e lá atuo até os dias atuais. Comecei
minha vida como docente no Departamento de Administração Escolar e Economia da Educação
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(EDA) em agosto de 1975, quando realizava o segundo semestre do curso do Mestrado, na
mesma instituição.
Em março de 1998 vivia-se em meio a grandes movimentações no Governo Federal e
no Congresso Nacional para o que seria uma primeira grande reforma da Previdência. Como
contava com mais dos 25 anos então exigidos, para o magistério, para aposentadoria, trazendo
para a contagem o tempo, a partir de abril de 1972, como professora concursada da rede
municipal de ensino de São Paulo, não sem dificuldade tomei, como tantos colegas, a decisão
de aposentar, tendo em vista outras queses que também me tocavam então. Ainda assim, em
nenhum momento interrompi minha colaboração com a FEUSP aos dias atuais, atuando
primeiramente como colaboradora voluntária e, posteriormente, enquadrando-me, mediante
projetos e relatórios bienais apresentados ao EDA e à Congregação, como professora sênior,
desde que essa categoria foi criada, pela USP, em 2012. Ou seja, na prática, com satisfação e
sentido de dever cumprido, vejo me aproximar o tempo de completar, dessa vez em caráter
voluntário, mais outros 25 anos de trabalho docente e de pesquisa na USP. Mas antecipo a
gratidão por completar, em 2021, 50 anos de vida acadêmica na FEUSP.
É assim que, em resumo, o presente trabalho é a primeira parte de dois artigos, que
reúnem resultados da mencionada pesquisa documental e bibliográfica, enquanto oferecem
também, quando oportuno, parte das reflexões e análises que acumulei ao longo de meio século
sobre a instituição, somadas à memória de minha trajetória como aluna de graduação na
Pedagogia, desde 1971 e, simultaneamente, desde 1975, como estudante do mestrado e do
doutorado e, também, como docente.
ORIGENS, ANTECEDENTES
Para compreender a existência da Faculdade de Educação e a fundação da própria USP,
em 1934, é preciso revisitar o período imediatamente posterior à proclamação da República e
as duas primeiras cadas do culo XX, quando a mobilização política e intelectual se dava
em torno de debates sobre a educação e seu papel na construção do regime republicano no
Brasil.
Em artigo indispensável para conhecer as origens institucionais da Faculdade de
Educação, Antunha (1975) informa que, embora criada como unidade na reforma do estatuto
da USP de dezembro de 1969, passando a funcionar nesse caráter em janeiro de 1970, é preciso
recuar significativamente no tempo para compreender como, com diversos nomes, se constituiu
por décadas a Instituição:
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[...] suas origens mais longínquas radicam nos planos dos republicanos
históricos paulistas de criação logo após a Proclamação da República de
um completo sistema de ensino no Estado, compreendendo desde as escolas
primárias (e o Jardim de Inncia) a as superiores. Entre estas,
acrescentando-se a Faculdade de Direito, mantida pela União, e ao lado das
projetadas Faculdades Estaduais de Medicina, de Agricultura e de Engenharia,
pensou-se, nos primeiros anos do regime republicano, na criação de um
Curso Superior de Educação, também a ser mantido pelos cofres estaduais,
como culminação das atividades de formação e de aperfeiçoamento do
magistério, então a cargo exclusivo do Curso Normal (de vel médio) da
Escola Normal da Praça. (ANTUNHA, 1975, p. 25)
Antunha (1975) traça o percurso que tiveram as iniciativas públicas voltadas para a
formação do magistério e das autoridades educacionais em São Paulo e outros estados, assim
como no Distrito Federal nas três primeiras décadas do regime republicano. Indica como chegou
certa influência internacional, em especial norte-americana e francesa, compondo-se de um
modo que ganhava características próprias, o que teria desdobramentos:
Essas ideias, de criação de uma escola de formação e de aperfeiçoamento
pedagógico ao modo de um "Teacher's College" americano de então, ou
mesmo de uma Escola Normal Superior, de inspiração francesa, foram durante
um certo tempo assimiladas à de criação de uma escola superior de altos
estudos e de pesquisas desinteressadas, ou aquele tipo de estabelecimento que
viria mais tarde chamar-se, em nosso país Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras. (ANTUNHA, 1974, p. 31)
No Estado de São Paulo, houve, no ano de 1920, diversas iniciativas voltadas para a
educação pública sob a administração de Sampaio ria
1
à frente da então Diretoria-Geral do
Ensino. Dentre elas, uma trouxe mais frutos posteriores, que medidas imediatas:
[...] embora essa escola não tenha chegado a instalar-se de fato, criou-se [em
São Paulo] pela Lei 1750 [de dezembro de 1920] uma Faculdade de Educação,
com o objetivo de desenvolver altos estudos no campo da educação, da
filosofia e das artes e de preparar pessoal de alto vel para as tarefas da
educação. Entre essa primeira Faculdade de Educação, a Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras (criada em 1934) e a atual Faculdade de Educação
da Universidade de São Paulo, há uma clara continuidade histórica (...).
(ANTUNHA, 1975, p. 32)
Contudo, como antecessor institucional direto, assim considerado por ter sido
efetivamente implantado e colocado em funcionamento, cabe mencionar o Instituto de
Educação, criado em abril de 1933 e logo incorporado à Universidade de São Paulo quando de
sua criação em janeiro de 1934. O Instituto de Educação era “dirigido por um educador do porte
1
Em minha tese de doutorado, tratei da Reforma Sampaio ria como um dos três momentos em que efetivamente
se propôs mudanças, no Estado de São Paulo, independentemente do que efetivamente se alcançou.
(FISCHMANN, 1989).
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de Fernando de Azevedo e contando com professores da estatura de Almeida Junior, Milton da
Silva Rodrigues, Noemi da Silveira Rudolpher, Roldão Lopes de Barros, e outros [...]
(ANTUNHA, 1975, p. 40). Operando por cerca de quatro anos, naquele que seria um modo
provisório, como unidade universitária independente, ao incorporar-se à USP, o Instituto de
Educação foi extinto e transformou-se na Secção de Educação da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras. Posteriormente foi transformado em Secção de Pedagogia e, mais adiante,
Departamento de Educação, o qual serviu de base para a crião da Faculdade de Educação,
com a estrutura que mantém atualmente.
A PRESENÇA DO JORNAL O ESTADO DE S. PAULO NA “PRÉ-HISTÓRIA”
2
DA
FEUSP
Ao longo das três décadas que precedem a criação do Instituto de Educação, da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e da própria USP, uma presença marcante nos debates
e iniciativas em prol da educação pública em todos osveis é a do jornal O Estado de S. Paulo,
em princípio voltada especificamente para o estado de São Paulo, mas com repercussão
nacional. As marcas dessa presença estendem-se, também, pelas décadas seguintes, como será
visto, mas cabe perguntar por onde se iniciaram.
Aqui é preciso fazer um breve interlúdio. Se o cuidado na abordagem histórica exige
a aproximação ao contexto às circunstâncias, no caso do campo da comunicação esse cuidado
precisa ser redobrado, especialmente pelas gerações mais jovens, em um tempo como o atual.
Isso porque a comunicação, seja institucional, seja pessoal, faz-se de modo instantâneo, com a
internet sendo onipresente na vida em geral, resultando que o esforço de compreensão daqueles
tempos pede esforço hercúleo, especialmente, mas não só, para quem é nativo digital. Porque
me refiro e o apenas em relação às três primeiras décadas republicanas, mas às décadas
seguintes, abordadas nesse artigo a um mundo sem internet, o que dizer de internet
democratizada; portanto, um mundo sem redes sociais Twitter, Facebook, Instagram,
Whatsapp ou qualquer outro “app”. Sequer os PCs”, ou computadores pessoais”, que
engatinhavam no fim da década dos anos 1980 e atualmente nem são mais assim mencionados.
O que dizer, então, de notebooks, tablets ou smartphones, que apenas na segunda metade da
cada de 1990 surgiram na versão “celular”, mas apenas para telefonia, sem acesso à internet,
que pouco ensaiava ser financeiramente acessível, sendo-o somente para uma pequena parcela
2
Tomo emprestado o termo utilizado por ANTUNHA (1975) para uma época ainda anterior da construção do que
viria depois a ser a FEUSP, adaptando-o para o estudo que faço aqui.
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da população? Essa lembrança não é fortuita, mesmo aqui oferecida en passant, porque é
preciso transportar-se a um tempo em que debater ideias pedia a presença física, mobilizar
pessoas para uma reunião voltada à troca de ideias exigia grande esforço, distribuir um texto do
tipo “para debate” levava dias e dias de trabalho de escrita às vezes primeiramente à mão e,
depois, em máquinas de escrever de teclado pesado, até se levar para uma gráfica de produção
manual, ou mais tarde, até produzir umstencil” ou páginas off-set para impressão a tinta numa
impressora de gráfica, o que já era muito avançado, como se tinha nos anos 1960, 1970, 1980,
ou rodando em um mimeografo, como por tanto tempo se fez em escolas e mesmo nas
universidades. o envio, o que se contava era apenas o correio físico, o que nem se fazia
necessário mencionar naquela época.
Nesse contexto, no que se refere às comunicações a linha editorial dos grandes jornais
da época tinha grande influência na definição de caminhos com relação às prioridades poticas,
sociais e culturais, nacionais e locais, de modo muito decisivo. Por isso é relevante mencionar
aquele que é um dos casos, na imprensa brasileira, de maior relevância para a constituição e
consolidação do campo educacional, nos primórdios da República e décadas seguintes, ou seja,
o mencionado jornal O Estado de S. Paulo, mais recentemente apelidado Estadão
3
. Existindo
desde o Império, quando era denominado “A Província de S. Paulo”, o jornal foi parte
importante nas lutas pela proclamação na busca dos ideais republicanos
4
, dentre os quais se
destacava a ênfase na educação pública, incluindo o ensino superior, que era então incipiente,
como único modo de atingir as mudanças sócio-políticas necessárias para a efetiva construção
republicana do país. A criação de uma universidade constava, então, entre suas principais
recomendações.
Dentre as iniciativas do Estadão naquela época, e nesse sentido acima mencionado,
destaca-se a que teve um caráter inaugural do que viria a ser denominado posteriormente grupo
do Estado” (CARDOSO, 1982; MORAES, 1994) e, mais ainda, que se revestiu de particular e
duradoura relencia para a educação paulista e nacional. Refiro-me ao Inquérito sobre a
Instrução Pública em S. Paulo
5
, realizado em 1926 sob coordenação de Fernando de Azevedo,
3
Utilizarei, também, o apelido “Estadão” ao me referir, no presente artigo, a fatos ou publicações ligadas ao jornal
“O Estado de S. Paulo”, para evitar que se confunda o Estado de São Paulo, ente federativo, e o jornal. Lembro,
também, que o próprio jornal utiliza o apelido que o público deu a ele, antes de ser invenção midiática, como
endereço eletrônico de seu portal: www.estadao.com.br .
4
Entre outras publicações, ver a esse respeito: CAPELATO & PRADA (1980); CARDOSO (1982).
5
A realização e publicação do Inquérito tem sido objeto de diversos estudos, pela relevância de seu papel na
história da educação brasileira. Não se trata, assim, de retomar o que já está assentado no conhecimento do campo,
mas pontuar alguns aspectos de interesse para a discussão que aqui procuro fazer.
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a pedido de Júlio de Mesquita Filho, e publicado paulatinamente no Estadão, entre junho e
dezembro de 1926, em 34 colunas (ENTINI, 2014)
6
.
Matéria do Estadão, publicada por ocasião dos 80 anos de criação da USP, informa
que, consultando professores, cientistas e escritores:
O inquérito investigou todos os aspectos do ensino no Estado, o primário,
secundário, profissionalizante e superior. Para fazê-lo, foi enviado um
questionário para dezenas de pessoas envolvidas no ensino. Das doze
perguntas, três eram sobre o ensino superior. Elas pediam opinião sobre a
'criação de uma universidade em São Paulo, organizada dentro do espírito
universitário moderno' e de que forma uma universidade poderia se tornar uma
"instituição orgânica e viva"'. As respostas foram publicadas no jornal logo
que eram recebidas sob o título “A Instrucção Publica em S.Paulo”. (ENTINI,
2014).
O Inquérito dividiu-se por níveis e ramos do ensino, de acordo com a organização da
educação pública na década de 1920. A primeira parte trata do ensino primário e normal,
lembrando, aqui, que o ensino normal era voltado em maior medida para a formação de
professoras e professores para o ensino primário, por isso serem tratados numa mesma seção
do Inquérito. Foram ouvidos sobre ensino primário e normal: Francisco Azzi, Almeida Júnior,
Renato Jardim, José Escobar, Sud Menucci e Lourenço Filho. Foram propostas as mesmas 16
questões a cada um deles, sendo a 13ª sobre formação de professores e a 14ª sobre a Faculdade
de Educação idealizada na reforma de 1920 e modificações propostas à mesma em 1925.
(AZEVEDO, 1937, p. 19-21).
A segunda parte do Inquérito trata do ensino técnico e profissional, mantendo a mesma
estrutura da primeira. Foram ouvidos: Paulo Pestana, Navarro de Andrade, J. Mello Moraes e
Roberto Mange. Foram propostas 17 questões a cada um dos participantes, versando sobre
ensino técnico e profissional, na terminologia da época, buscando trazer exemplos
internacionais, notadamente europeus, daquele momento, para a reflexão dos entrevistados,
além da articulação entre ensino primário e ensino técnico e profissional.
6
As imagens das páginas originais das 34 colunas relativas ao “Inquérito” estão disponibilizadas na matéria citada
(ENTINI, 2014), para assinantes ou para pesquisadores mediante autorização do jornal. O texto integral, sem
alterações, foi também publicado posteriormente pela tradicional Companhia Editora Nacional (AZEVEDO,
1937), lembrando que a diferença de 11 anos entre a realização do Inquérito e respectiva publicação no Estadão,
em 1926, e a publicação do livro corresponde às características da época quanto à tecnologia então disponível para
processos editoriais, como referido anteriormente, porém devendo ser lembrado, ao longo de sua leitura, que o
texto é de 1926, para que façam sentido boa parte do texto por exemplo, ao discutir a criação de uma Universidade
em São Paulo, que pela época já existia, com o nome de Universidade de São Paulo. O SIBI da UFRJ disponibiliza
o texto digitalizado do livro para livre acesso.
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Na continuidade do debate, a terceira parte volta-se para o ensino secundário e
superior. Observe-se que, embora fossem oferecidos após o ensino primário, os ramos de ensino
denominados normal, técnico e profissional, não mantinham relação ou equivalência com o
ensino secundário, que era voltado para a preparação para o ensino superior, com o qual foi
tratado conjuntamente no Inquérito. Para essa parte foram ouvidos: Ruy de Paula Souza, Mario
de Souza Lima, Amadeu Amaral, Ovídio Pires de Campos, Raul Briquet, Theodoro Ramos,
Arthur Neiva.
Se a iniciativa do Inquérito serviu para seu realizador, Fernando de Azevedo
7
como
um despertar para os temas da potica educacional e das tendências na escola e no ensino, em
todos os seus níveis, era outra a situação para Júlio de Mesquita Filho, que foi quem tomou a
iniciativa.
Fernando de Azevedo atuava já havia alguns anos n’O Estado de São Paulo, mas suas
áreas de trabalho eram a educação física e a crítica literária (PILETTI, 1994), daí a necessidade
de buscar subsídios e mesmo formação para a tarefa que Mesquita Filho lhe atribra. Este, por
sua vez, vinha da tradição do jornal de sua família, com alto grau de envolvimento na potica
de então. MORAES (1994), em estudo sobre o Inquérito, aborda esse envolvimento, inclusive
com participação intensa na política partidária e nos intrincados embates no interior de partidos
de então. Nesses embates, o tema da educação ocupava lugar de destaque, especialmente no
sentido de compreenderem, aqueles ativistas, que dela dependia o que chamavam de
reconstrução nacional”. Em abordagem aprofundada em sua tese, Cardoso (1982) estudou essa
mobilização do jornal e, mais ainda, de seus aliados, em torno da “Comunhão Paulista”,
indicando o quanto atuaram para que fosse possível chegar à criação da Universidade de o
Paulo, ressaltando como lá estiveram presentes as marcas do pensamento político e acadêmico
daquele grupo.
Foi em meio, e como parte, desse ambiente de mobilização e debate que foi gestado e
dado a público um dos documentos mais relevantes da educação brasileira, qual seja, o
Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. Como no caso do Inquérito, o Manifesto, como
patrimônio nacional da educação, que é, tem sido alvo de diversos e competentes estudos, não
sendo aqui o foco da análise. Mas é indispensável citá-lo, pois se encontra nas raízes da FEUSP,
pela participação de Fernando de Azevedo e, da mesma forma, por vincular-se ao Inquérito.
7
A respeito, com base em estudo documental, afirma Nelson Piletti (1994, p. 87-88): “Por ocasião do inquérito de
1926, seu organizador reconhece que pouco ou nada entendia da maria (...). Por isso mesmo, seu primeiro
trabalho foi ler tudo o que se escrevia sobre o assunto, particularmente sobre as novas tendências da educação”.
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A articulação dos dois documentos faz-se evidentemente, mas o só, em torno de
Fernando de Azevedo, que muito se empenhou pela criação da USP, fato que além de ser objeto
de inúmeras publicações, integra artigos-testemunhos de grandes mestres e mestras do porte de
Antonio Cândido (SOUZA, 1994) e Maria Isaura Pereira de Queiroz (QUEIROZ, 1994). A
historiografia registra que, após a repercussão que teve o Inquérito, Fernando de Azevedo
conquistou grande destaque, contando com reflexão acumulada que o alentado material obtido
junto a personalidades e autoridades dos diversos níveis e ramos da educação. Foi chamado,
assim, em 1927, a assumir a Diretoria Geral da Instrução Pública do Distrito Federal (então,
Rio de Janeiro), quando pôde colocar em prática as ideias, ideais, princípios e valores debatidos
no Inquérito.
Em interessante artigo que traça relações entre Carneiro Leão e Fernando de Azevedo,
PAULILLO (2013) tanto menciona e analisa diversos autores e autoras que se dedicaram a
estudar tanto o Inquérito, quanto o Manifesto, quanto procura depreender novas análises no que
denomina de tipo mais microscópico” (PAULILLO, 2013, p. 47). Como se observa, esse autor
procura explorar ainda mais as destacadas e relevantes obras de CAPELATO & PRADO (1982)
e de CARDOSO (1982), anteriormente aqui citadas, especialmente no que se refere à relevância
do trabalho de Fernando de Azevedo no jornal O Estado de S. Paulo, como se vê a seguir:
O convite para dirigir a Instrução Pública da capital viria em janeiro do ano
seguinte, de acordo com o que se sabe, por indicação de Renato Jardim, um
dos entrevistados no inquérito. Fernando de Azevedo reconheceu que O
Estado de S. Paulo foi a escola onde se preparou para a função: “somente ao
ser provido no cargo é que avaliei, em todo o seu alcance, os serviços
inestimáveis desse contato a que me forçou a profissão de jornalista, com os
fatos e os problemas da educação” (1937, p. XXVI). (PAULILLO, 2013, p.
47).
A partir dessa análise, Paulillo (2013) detalha informações que comprovam a
importância do trabalho como jornalista no Estadão, reconhecido em diferentes oportunidades
por Azevedo, mas de modo muito particular fica evidenciado o papel que desempenhou o fato
de ter sido o responsável pelo Inquérito.
Enquanto continuavam as mobilizações no plano potico, envolvendo educadores e
intelectuais, a situação que se criava com o Governo Provisório de Getúlio Vargas, em 1931,
provocava novos posicionamentos, mais incisivos. Foi um momento de embates que
antecipavam o que viria, posteriormente, com a ditadura varguista. Além da clássica obra de
CURY (1979), referência no debate sobre o período, é preciso destacar importante artigo de
CARVALHO (1994), que analisa Fernando de Azevedo em seu posicionamento como
pioneiro da educação nova” e responsável pela redação do Manifesto de 1932. Nesse trabalho,
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encontram-se ponderações que reposicionam tanto o apoio entre aliados de Fernando de
Azevedo quanto conflitos havidos com seus opositores. Em especial, destaca aquela autora que
ajustes” incorporados por Azevedo em seu livro A Cultura Brasileira, ao tratar do período,
acabaram por dar aparência de homogeneidade e harmonia, onde havia conflito e posições
diversas.
Para o que é aqui abordado, vale frisar que, ao ser escolhido como responsável pela
redação, ou como relator, do Manifesto, pelo grupo que decidiu por fazer e assinar o documento,
essa indicação representou liderança, respeito por seus posicionamentos e por sua atuação, em
especial como reformador da educação no Distrito Federal - DF. Como mencionado, Fernando
de Azevedo foi nomeado para a Diretoria da Instrução Pública do DF pela repercussão do
Inquérito realizado e publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo. É importante ser traçada essa
relação, porque traz, por intermédio da atuação de Fernando de Azevedo, a presença do Estadão
e das ideias de potica educacional que o jornal defendia, dentre as quais, a criação de uma
universidade em São Paulo e de uma faculdade de educação.
Um olhar atento às diferentes publicações das obras de Azevedo, como o realizado por
Silva, Vidal e Abdala (2020), possibilitam reiterar o grau de relação do jornal O Estado de S.
Paulo com as questões educacionais, como em relação à publicação dos resultados do Inquérito,
de 1927, como livro, em 1937, ou seja, apenas 10 anos depois, como anteriormente mencionado.
Lembram os autores que, ao se aproximar o que seria a eleição para presidente da República,
em 1938, que não ocorreu em razão do golpe de Getúlio Vargas; era, então, um dos candidatos
o Armando de Salles Oliveira, líder do Partido Constitucionalista, e, como se sabe, redator do
Estadão como sociedade anônima, interventor e depois governador do Estado de São Paulo.
Nesse sentido, a publicação tardia teria representado, na interpretação dos citados autores,
“lançar uma plataforma potica” ligada ao candidato (SILVA; VIDAL; ABDALA, 2020, p.
62). Além disso, “reafirmava a intimidade de Azevedo com as questões educativas e reiterava
o compromisso do jornal O Estado de S. Paulo com o debate sobre a educação nacional”.
(SILVA; VIDAL; ABDALA, 2020, p. 62). O vínculo do jornal com o candidato oposicionista
a Getúlio e ao Estado Novo, mais manifestações em favor da liberdade e imprensa, levou a um
período significativo ao longo da ditadura varguista, a partir de 1940, de intervenção no
Estadão, que marcou sua história. Para Fernando de Azevedo, foi tempo de dedicação à tedra
que ocupava na recém-criada USP, na “Secção de Educação”, continuidade do Instituto de
Educação que acabava de ter sido incorporado à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras,
como mencionado; nessa época, Azevedo contou, por exemplo, com Florestan Fernandes
como assistente, como lembra MORAES (2020).
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Essa referência mútua entre Azevedo e o Estadão, é um tipo de relação que o jornal
acabou por repetir com outros uspianos ao término da intervenção censória em 1945, que
coincide com a promulgação da Constituição Federal de 1946. A partir de indicações que
recebeu de seu filho Júlio Mesquita Neto e de seu sobrinho Rui Mesquita, que eram estudantes
da FFCL, Júlio Mesquita Filho entrou em contato com Laerte Ramos de Carvalho, igualmente
da área da Educação, como Fernando de Azevedo. Ainda jovem, aquele professor já ocupava a
Cadeira de História e Filosofia da Educação e chefiava, naquele momento, o Departamento de
Educação da FFCL, quando foi convidado pelo Estadão, em 1946, a atuar como colaborador.
Em tese dedicada ao estudo de Carvalho, com foco em sua atuação naquele jornal no período
entre os anos 1940 e 1960, Bontempi Jr. (2001) explicita o interesse do jornal em “rejuvenescer”
sua atuação em defesa da escola blica, especialmente tendo em vista a determinação da recém
promulgada Constituição de ser a União responsável pelas diretrizes e bases da educação
nacional, o que sinalizava a elaboração e promulgação e portanto os respectivos embates
políticos de uma lei que tratasse de tão importante tema.
Em breve retornarei a esse tema. Mas, antes, é relevante lembrar como o jornal O
Estado de S. Paulo empenhou-se em ser um órgão de imprensa caracterizado pela atuação de
intelectuais. Bontempi Jr. (2001) sistematiza informações sobre as atuações de docentes da USP
que colaboravam regularmente com o Estadão, como era do conhecimento de estudantes e
docentes, então. Nomes como Décio de Almeida Prado, Lourival de Almeida Machado, além
dos professores franceses que haviam chegado com a missão de implantar a FFCL, como Levy-
Strauss, Roger Bastide e Paul Arbousse-Bastide, nomes indicados e convidados por Júlio
Mesquit Filho, a pedido do então governador de o Paulo, Armando de Salles Oliveira, ainda
quando da criação da USP, em 1934. Além disso, Antonio Cândido foi o responsável pela
criação e, por muitos anos, o editor do célebre Suplemento Literário, do Estadão.
Frente aos dados que levantara, Bontempi Jr. (2001) aponta uma relação peculiar:
Isso faz da relação entre OESP e FFCL-USP um jogo de espelhos, em que se
reitera a excelência daquela instituão universitária, ao mesmo tempo em que
os seus intelectuais, figurando nas tradicionais páginas do jornal, adquirem a
visibilidade e a legitimidade que o próprio jornal conquistou ao longo de sua
história. (BONTEMPI JR., 2001, p. 144).
Se é fato que a expressão “jogo de espelhos” conta de uma (notável) parte da
relação, entendo que há aspectos políticos de relevância que vão além da legitimidade
mencionadas na citação. Evidentemente o jornal apoiava aqueles que se identificavam com seu
ideário, expresso na linha editorial, porém de mais longo alcance. Ao mesmo tempo, fazendo
parte da instituição que se tornou ao longo da história o Estadão, integrando o já instituído,
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esses intelectuais representavam também o instituinte (CASTORIADIS, 1982), participando da
elaboração desse ideário, ao mesmo tempo que eram respaldados politicamente em sua atuação
pública, sempre que se apresentava a situação.
Com Fernando de Azevedo essa dinâmica fica evidente nas repercussões: se houve o
prestígio (ou visibilidade) e legitimidade pessoais para ele, que acabaram por levá-lo a assumir
postos destacados na educação pública, as repercussões históricas desse apoio, não apenas nos
feitos durante o exercício à frente desses postos, mas também no avanço do próprio campo
educacional, são evidentes. Azevedo ter sido escolhido, entre pares, como relator do Manifesto
é uma dessas situações. A criação da USP, com o destaque dado à Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras e, nela, à questão do ensino e do magistério, com a crião e posterior
incorporação do Instituto de Educação a ela como Secção e depois Departamento de Educação
(e posteriormente, Faculdade de Educação, independente), é outro exemplo.
É nessa direção que o chamado que Júlio Mesquita Filho fez, para colaborar com o
jornal, a Laerte Ramos de Carvalho e, depois, a Roque Spencer Maciel de Barros, que era, na
época, seu assistente na Cadeira de História e Filosofia da Educação, deixou marcas na história
da FEUSP e na educação brasileira, que talvez possam ser caracterizadas como diversas e
contraditórias, tão duradouras que muitas delas viriam a ser, posteriormente, depositadas na
Faculdade de Educação, a partir de sua criação.
UM IMENSO CANTEIRO DE OBRAS
Tratarei agora de dois acontecimentos no campo educacional, ocorridos no peodo
entre 1950 e 1968, com recorte determinado pelo eixo deste trabalho, qual seja, a história
pregressa e das primeiras três décadas da Faculdade de Educação, para compreender os
complexos e contraditórios antecedentes dessa instituição. Ao mesmo tempo, o presente item
dá continuidade e amplia a análise da presença do jornal O Estado de São Paulo nessa história.
São eventos que antecederam a reforma da USP, aquela que conduziu a elaboração de seu
Estatuto de 1969 e, como parte desse processo, a criação da FEUSP em dezembro do mesmo
ano, com o início de funcionamento em janeiro de 1970. O ponto central desse período em si
um acontecimento, que, para tratar especificamente, extrapolaria os limites deste artigo é a
primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº. 4.024, de 20 de dezembro de
1961. Dentre as disputas públicas que precederam a promulgação dessa lei, será lembrada como
primeiro acontecimento, para os fins deste estudo, a Campanha em Defesa da Escola Pública.
O segundo acontecimento a abordar é a Reforma Universitária de 1968.
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Vale lembrar, preliminarmente, que o longo e conturbado processo de elaboração da
Lei 4.024/61 se inicia assim que é promulgada a Constituição Federal de 1946, com a
Assembleia Constituinte realizada imediatamente após a ditadura estadonovista.
Significativamente, sua promulgação antecede apenas em pouco mais de dois anos o golpe de
31 de março de 1964.
Antonio Cândido, ao analisar a obra A Cultura Brasileira, de Fernando de Azevedo
(1943), explora a questão da estrutura do livro, no qual a educação aparece como a última de
três partes, o que se compõe como um trecho um pouco longo, mas necessário citar:
[...] Antes de Fernando de Azevedo, e creio que também depois, não houve
outra tentativa equivalente de conceber deste modo o sentido da cultura
brasileira. Em vez de tratar a educação como um dos setores desta, em vez de
estudá-la do ponto de vista específico, isto é, pedagógico, ele a concebe como
coroamento e ângulo privilegiado para compreender a cultura de seu país.
Com efeito, não se trata de uma história expositiva da educação, mas de-la
como parte orgânica da sociedade e da cultura, capaz de servir de ponto de
apoio para interpre-las de maneira mais profunda. (...) Vista dessa maneira
a educação aparece na história social do Brasil com uma força explicativa que
ninguém tinha percebido antes e significado novo aos fatos do ensino.
(SOUZA, 1994, p. 13).
A percepção que Antonio Cândido oferece do modo de pensar de Azevedo sobre a
educação, incita a buscar, para as duas décadas da história da educação de que trata este item,
mutatis mutandis, metáfora utilizada por Vovelle (1989). Nesse texto, apresentado no
Congresso Internacional das Luzes, em Budapeste, o historiador francês, convidado a tratar da
questão referente aos ecos da Revolução Francesa, identifica a tarefa a ingressar em um
imenso canteiro de obras” como é a Revolução Francesa (p. 25) tão amplo que pode ser
considerado como sendo composto por “canteiros bem balizados” (p. 31).
Bem compreendido, o parecer de Antonio Cândido sobre o papel da educação no
contexto nacional como vislumbrado a partir da obra de Fernando de Azevedo, ou seja, como
uma força explicativa para o estudo da história social do Brasil, é crucial estudar a educação no
período no período mencionado, no centro do qual se deu o Golpe civil-militar de 1964, desse
que se configura, efetivamente, como um imenso canteiro de obras.
O período proposto se inicia em 1946, com um dispositivo que trouxe grande
expectativa positiva em nível nacional, quando se determinou, entre as atribuões da União, de
modo aentão inédito, legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional” (BRASIL,
1946, Art. 5º, XV, d). Com a promulgação da Lei nº 4.024, em 20 de dezembro de 1961,
conhecida como “LDB”, foi atendido o dispositivo constitucional, mas não o foi aquela boa
expectativa. Ao contrário, era grande a frustração de quem apoiava fortemente a escola pública.
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Voltando a Vovelle (1989, p. 39), em determinado ponto de sua exposição afirma que
se trata de “imenso canteiro que nós não tentaremos prospectar”, como modo de encaminhar o
que antes afirmara: “A bem dizer, a diversidade das contribuões propostas deixa
incontestavelmente a impressão de um canteiro amplamente aberto (...). Sendo, antes, em
termos de problemas ou de programas de balanço, que convém apresentar esta exposição.”
(VOVELLE, 1989, p. 26).
A situação em relação a esse período, tanto prévio à promulgação da Lei4.024/61,
assim como as disputas poticas durante a tramitação dos projetos de lei que nela resultaram,
como não menos a Reforma Universitária de 1968, guardam relação com a afirmação citada de
Vovelle, no sentido de haver grande número de obras já publicadas, como artigos, dissertações,
teses, livros, dentro de canteiros bem balizados”, tantas que seria imprudente citar, tão
conhecidos que são uma boa parte delas. De modo que aqui se trata mais de levantar algumas
questões que possam colaborar para encontrar novos problemas que possam sugerir novas
possíveis vertentes de estudo, ao mirar o tema das origens da FEUSP. Estariam localizadas
parte dessas origens nesse amplo e ainda aberto canteiro de obras? Acredito que sim.
O item anterior do presente artigo havia se encerrado informando o momento em que
o professor Laerte Ramos de Carvalho passou a integrar os quadros de analistas e editorialistas
do jornal O Estado de o Paulo, em 1946, levando consigo, em 1948, o professor Roque
Spencer Maciel de Barros, seu assistente na Cadeira de História e Filosofia da Educação.
Sucede que, sendo considerada procedente a análise de Bontempi Jr. (2001) quanto à intenção
do Estadão de garantir um acompanhamento modernizado, qualificado e influente sobre o
processo, que viria, de elaboração de uma lei que atendesse o dispositivo constitucional relativo
às diretrizes e bases da educação nacional como atribuição da União, torna-se possível
identificar uma ação proativa do jornal.
Décadas acumuladas, praticamente desde a fundação do Estadão ainda no Império, e
muito intensamente após a proclamação da República, demonstraram como o jornal
desenvolveu uma potica própria, que os primórdios do regime republicano facilitaram que
viesse a tomar modos de partido político (MORAES, 1994; FISCHMANN, 1982), com
propostas dirigidas à educação pública em seus diversos níveis, bem como seu posicionamento
explícito de apoio efetivo à USP e seu papel como formadora do magistério, também para os
diversos níveis de ensino.
Mais que apoio, por meio da atuação de Fernando de Azevedo na realização do
Inquérito de 1926 e, depois, como redator/relator do Manifesto dos Pioneiros da Educação
Nova, a pedido de seus signatários, O Estado de S. Paulo garantiu forte presença e influência,
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tanto na definição de um tipo de agenda” para a educação pública, como mais ainda, uma
situação de hegemonia nos ideais, princípios e valores que caracterizaram aquelas iniciativas.
Se ao término da ditadura varguista, a Constituição Federal de 1946 de certa forma
ecoava o Manifesto, e portanto o Inquérito, os novos tempos indicavam uma nova configuração
quanto a partidos políticos, assim como novos embates e conflitos na educação pública que, se
haviam estado latentes, tenderiam a eclodir em disputas pela hegemonia a partir dali. O caso da
defesa da laicidade da escola pública é um exemplo. Se esse princípio vinha claramente
proposto desde o Manifesto de 1932, sua defesa e sustentação, durante o longo processo que
resultou na Lei nº 4.024/61, encontrou oposição mais alerta, articulada e efetiva na conquista
de apoios políticos que, logo depois, se mostraram mais amplos e profundos que a aprovação
de uma lei para a educação nacional. Mas não convém deter-me em um dos “canteiros” mais
bem balizados do amplo canteiro desse período de profunda repercussão, a que tanto tenho me
dedicado, para não abandonar o tema aqui tratado, qual seja, a FEUSP.
O primeiro acontecimento que indico, a Campanha em Defesa da Escola Pública,
ocorreu em meio a ampla mobilização de acadêmicos e liberais, de caráter plural no sentido
filofico e potico. Embora o limitado ali, bem ao contrário, o núcleo irradiador da
Campanha era a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, envolvendo diversos departamentos,
com declarado e irrestrito apoio do jornal O Estado de S. Paulo.
De fato, foi o Estadão que publicou, em sua edição de de julho de 1959: o
“Manifesto dos Educadores Mais uma vez convocados: Manifesto ao povo e ao governo”
(AZEVEDO et alii, 1959). Republicado em diversos órgãos de imprensa e espalhado pelo
Brasil, deu início à Campanha em Defesa da Escola Pública, que tanto envolveu a USP.
Herdeiro direto de 1932, o Manifesto de 1959 contou com todos os signatários do
primeiro manifesto que se encontravam vivos, recebendo um acréscimo significativo de
adesões dentre acadêmicos e intelectuais notáveis e que mais ainda se destacariam no
decorrer das décadas vindouras. Nos últimos anos da década de 1950, o suceder de substitutivos
conflitivos entre si, propostos pelo deputado federal pela UDN Carlos Lacerda, ao projeto de
lei apresentado por Clemente Mariani em 1948, aentão engavetado no Congresso Nacional
por Gustavo Capanema, indicou importantes ameaças à escola pública (VILLALOBOS, 1969).
Dentre os 161 signatários, além dos pioneiros da Educação Nova renovarem seu
compromisso com a escola blica assentado em 1932, como mencionado, nomes como
Florestan Fernandes, Sérgio Buarque de Holanda, Nelson Werneck Sodré, Roberto Cardoso de
Oliveira, Eurípedes Simões de Paula, Antonio Cândido de Mello e Souza, Álvaro Vieira Pinto,
Fernando Henrique Cardoso, Aziz Simão, Cesar Lattes, Ruth Corrêa Leite Cardoso, Miguel
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Reale, Maria Isaura Pereira de Queiroz, Oracy Nogueira, Perseu Abramo, Darci Ribeiro, entre
outros. Especificamente do campo educacional, notadamente do Departamento de Educação da
FFCL-USP: Maria JoGarcia Werebe, Joel Martins, Carlos Corrêa Mascaro, Moisés Brejon,
Ofelia Boisson, Laerte Ramos de Carvalho, entre outros.
Como se observa, os nomes indicam a pluralidade dos signatários, fosse em termos de
áreas de atuação universitária, fosse em termos de posicionamento político. Nesse sentido, é
um efetivamente marco histórico na defesa da escola pública como direito, especialmente com
os princípios ali defendidos: gratuita, para todos e todas, única, integral, laica.
No que tange ao tema aqui desenvolvido, além do fato de Júlio Mesquita Filho ser
signatário dos dois manifestos, indicando o grau de engajamento na causa, o Estadão dedicou
grande atenção em páginas e páginas de muitas edições, não apenas na divulgação do Manifesto
de 1959, quando especialmente do que o sucedeu, qual seja, a Campanha em Defesa da Escola
Pública.
Relatos, no icio dos anos 1970, em sala de aula da FEUSP, de docentes que
participaram da Campanha, demonstravam o entusiasmo que ainda sentiam em relação a um
movimento que os e as levara pelo Brasil, nos mais diversos rincões, para além do meio
acadêmico que lhes era habitual, para seguirem em direção ao trabalhador do campo, a
populações interioranas, sindicatos, grêmios estudantis e, evidentemente, no meio potico. Os
causos” que narravam traziam, muitas vezes, as dificuldades que haviam sentido quanto à
linguagem apropriada para cada meio cultural, desacostumados que estavam, muitos deles, a
expor ideias e reflexões fora do meio acadêmico. Se esse era o sentido de se tratar de uma
campanha”, de expandir a audiência, ao mesmo tempo trouxe para muitos, como relatavam, a
percepção da relevância de utilizar linguagem acessível como questão ética e como cuidado
para repercutir uma mensagem que, se era nascida no meio acadêmico como proposta, dizia
respeito para muito além dali.
A volumosa, diversificada e relevante produção de escritos vinculada à Campanha em
Defesa da Escola Pública e publicada no jornal O Estado de S. Paulo, como debate, divulgação
e formação de opinião pública, foi organizada, em uma coletânea, por Roque Spencer Maciel
de Barros, que atuava, então, no jornal, como colaborador e editorialista, ao mesmo tempo que
era, então, o professor livre docente da Cadeira de Hisria e Filosofia da Educação, da FFCL,
da qual Laerte Ramos de Carvalho era catedrático, além de igualmente colaborador do Estadão,
fatos esses já mencionados.
A mencionada coletânea (BARROS, 1960) constitui material de consulta obrigatória
para se compreender tão relevante acontecimento, que não permite simplificações. Há, entre
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outros autores, artigos de opinião de Florestan Fernandes, marcados por fundamentação
vigorosa em defesa da escola pública. Reitero, com isso, a análise da professora Carmen Silvia
Vidigal Moraes (2020), em artigo já citado, sobre a afiliação acadêmica do professor Florestan
também à área da Educação, não apenas da Sociologia. Além de ter sido assistente de Fernando
de Azevedo na Cadeira de Sociologia da Educação, antes de atuar como assistente de Roger
Bastide, na Cadeira de Sociologia, que veio a assumir quando do retorno daquele professor para
a França, o grau de envolvimento que tinha na questão educacional, embora tivesse
compromisso potico marcante, apresentava vigor e força que eram sobretudo resultados de
sua produção acadêmica no campo.
Ainda para tratar da relão da FFCL com o Estadão, plenamente assumindo a
diversidade de participantes da Campanha em Defesa da Escola Pública, o Anexo 1 apresenta
imagem de matéria divulgada em O Estado de S. Paulo no dia 6 de junho de 1961, intitulada
“Reafirmação de princípios em favor da Escola blica”, dando conta da II Convenção Estadual
de Defesa da Escola Pública, reunindo docentes de ensino superior e do secundário, além de
estudantes e outros participantes. Para demonstrar o que é aqui sustentado, ressalto que, em
meio ao rico material ali disponível para outras análises, é dado grande destaque à intervenção
oral do professor Florestan Fernandes, o primeiro a falar, complementando com a menção,
como “principais oradores”, às falas de Laerte Ramos de Carvalho e de Roque Spencer Maciel
de Barros. Concomitantemente, há uma foto que, embora escurecida pela transição entre o
arquivo escrito e o digital do jornal, ao qual tive acesso pela Internet, permite o acesso a sua
legenda: “No Sindicato dos Metalúrgicos, o professor Roque Spencer Maciel de Barros discorre
sobre o substitutivo apresentado no projeto de Diretrizes e Bases da Educação pela Comissão
Estadual de Defesa da Escola Pública” (OESP, 1961, p. 24).
Assim, essas vivências em prol da escola blica aparentemente fortaleciam a atuação
da USP por intermédio de seus e suas docentes, em diversos graus da carreira e diferentes
posicionamentos políticos, porém unidos pelos princípios que compartilhavam em relação à
escola pública. Nesse momento, os dois docentes vinculados à Cadeira de História e Filosofia
da Educação e ao Departamento de Educação da FFCL viviam o apoio que anteriormente foi
mencionado, participando da elaboração do ideário do Estadão, ao mesmo tempo que eram
respaldados politicamente em sua atuação pública.
Contudo, tempos menos propícios à ação coletiva vieram muito breve. Comparando
com o tempo de lastro que fora dado pelo Manifesto de 1932 para chegarem a uma articulação
mais forte e mais ampla em 1959, foi rápida a mudança quanto a posicionamentos e atitudes. O
jornal O Estado de S. Paulo, em sua matéria de capa de de abril de 1964 declara seu completo
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apoio ao que denominou “movimento de 31 de março”, reiterado posteriormente no “resumo
histórico” feito para acesso a seu arquivo, nos seguintes termos:
Editorialmente o jornal sempre manteve sua linha de apoio à democracia
representativa e à economia de livre-mercado. Em 1964, "O Estado" apoiou o
movimento militar que depôs o presidente João Goulart ao constatar que o
mesmo já não tinha autoridade para governar. No entanto, entendia que a
intervenção militar deveria ser transitória. Quando se evidenciava que os
radicais de extrema direita aumentavam sua influência, objetivando a
perpetuação dos militares no poder, O Estado retirou seu apoio e passou a
fazer oposição. (PONTES, s/data).
Nesse contexto, em que o Golpe civil-militar de 1964 caminhava célere para o
recrudescimento, tempos ainda mais complexos chegaram. No âmbito dos movimentos que se
realizam no interior das universidades por todo o Brasil, naqueles anos após o golpe civil-
militar, em uma crise sem precedentes, os dois docentes do Departamento de Educação da
FFCL envolvidos com o jornal, assumem posicionamentos que, se tinham sua decisão
individual como base, contaram com o apoio do Estadão para seu desempenho, assim como de
alguns quadros docentes da USP, alinhados com esse posicionamento que o era à direita,
simplesmente, mas que demonstrava aceitação dos descaminhos do golpe.
Primeiramente, foi Laerte Ramos de Carvalho que decidiu, em 1965, quando era
Diretor do Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo CRPE-SP
8
, centro
associado à FFCL, aceitar o convite para assumir a reitoria da Universidade de Brasília, em
meio a grande crise que vivia a instituição. Anísio Teixeira deixara a reitoria da universidade
que criara e, logo depois, Zeferino Vaz, ambos justificando a decisão com base nas intervenções
que a UnB havia sofrido pelo governo militar, em represália e repressão ao movimento docente
e estudantil. Quando Carvalho assume, indicado por Zeferino Vaz, segundo informam algumas
fontes, havia se alinhado ao Golpe de 1964, passa a receber críticas que, naquele momento,
seriam ineviveis. Embora o fizesse com apoio do jornal, esse suporte pouco poderia fazer nos
embates do cotidiano de uma instituição em crise, vivendo em meio a um país igualmente em
crise. Em 1967 retorna para o CRPE-SP, sendo esse espaço de dois anos ainda carente de
estudos. Os que lhe eram próximos, dizem que efetivamente considerou que haveria algo a fazer
na e pela UnB, mesmo considerando a escalada que vivia a crise potica por que passava o
Brasil, debaixo de uma ditadura que sinalizava com a intensificação do autoritarismo e da
repressão. Teria havido essa percepção por parte desse acadêmico e do grupo que liderava na
FFCL?
8
Este artigo menciona alguns temas que podem ser encontrados em artigos de outros autores neste próprio dossiê,
por isso o se faz necessário tratá-los. É o caso do CRPE-SP.
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O que se registra, contudo, é que, logo depois do retorno do professor Laerte à USP,
em julho de 1968 foi a vez de Roque Spencer Maciel de Barros aceitar um convite controverso.
Ocorre que, em relação à organização do ensino público, apesar das frustrações que a
aprovação da Lei nº 4.024/61 representou, havia ainda um argumento que destacava que, pela
primeira vez na hisria da educação brasileira, havia uma lei para tratar de todos os veis e
ramos do ensino, de modo integrado, rompendo com o que se considerava uma imensa colcha
de retalhos, com sucessivas reformas dos diferentes níveis e ramos de ensino, realizadas de
modo desorganizado, além de caracterizarem-se, com frequência, por curta duração, sendo
efêmeras e gerando descontinuidade na estruturação da educação pública. As muitos embates
sociais e políticos, havia o entendimento de que se atingira, após 460 anos de história pátria,
pelo menos a possibilidade de alcançar essa abordagem legal integrada da educação nacional.
Contudo, decorridos apenas 7 anos da promulgação da LDB, frente a pressões e
críticas diversas, notadamente de parte do movimento estudantil, com ênfase nos processos
decisórios na universidade e no próprio modo de ingresso, por meio de vestibulares
eliminatórios, e a consequente crise dos excedentes, como foi denominada (FREITAG, 1977),
o governo militar decidiu promover reforma do ensino superior, em busca de controlar a
situação.
Semelhante decisão resultou na criação, pelo Decreto nº 62.937/68, do Grupo de
Trabalho para a Reforma Universitária, a que foi atribuída a tarefa de realizar um relatório e
apresentar uma proposta em um mês. Foi o convite para integrar esse Grupo de Trabalho, então,
que Barros aceitou, em julho de 1968. Foram nomeados por Costa e Silva como integrantes do
grupo: Annio Moreira Couceiro (professor), Fernando Bastos de Ávila (padre), João Lyra
Filho (reitor), João Paulo dos Reis Velloso (ministro), Fernando Ribeiro do Val (ministro),
Roque Spencer Maciel de Barros (professor), Newton Sucupira (professor) e Valnir Chagas
(professor).
De fato, desse trabalho resultou no projeto de lei apresentado ao Congresso Nacional
pelo Executivo, no contexto da ditadura civil-militar, que deu origem à Lei 5.540, de 28 de
novembro de 1968, a Lei da Reforma Universitária, que teve duração por mais quase 30 anos,
até a promulgação da Lei nº 9394/96.
Mais uma vez estava, portanto, cindida a estrutura da educação brasileira, não apenas
em termos de sua prática, como também, e especialmente, em termos de sua estruturação legal,
em seus diferentes veis e ramos. Os acontecimentos amplamente conhecidos que a sucederam
imediatamente, marcaram de modo indelével a Reforma Universitária, em termos do
recrudescimento do autoritarismo e da repressão, quando, compondo com outros fatores,
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desembocou no período mais terrível da ditadura iniciada em 1964, e constituindo, na prática,
o que foi denominado “um golpe dentro do golpe”.
O Anexo 2 apresenta imagem da página e, a seguir, da nota específica em publicação
do jornal O Estado de S. Paulo de 11 de agosto de 1968, com a afirmação do jornal que a
Reforma Universitária seria o caminho para resolver a crise universitária e a, invocando o apoio
do povo à repressão ao movimento estudantil, “sem resvalar para o terreno das violências
exageradas e desnecessárias”.
Com relação ao jornal, quatro meses depois de mais esse apoio ao governo militar, em
13 de dezembro de 1968 o Estadão foi impedido de circular por ordem censória da ditadura
militar, como reação ao editorial "Instituições em frangalhos" escrito por Júlio de Mesquita
Filho, motivado pela edição do Ato Institucional nº 5, que instituiu definitivamente o artrio e
a violência institucional no País.
Até porque é importante lembrar que censura à imprensa foi institucionalizada ao
ponto de diversos veículos praticarem a autocensura, além da presença pessoal ininterrupta, que
se tornou usual, de censores nas redações dos jornais, muito diferentes das redações que se têm
atualmente, com a informatização das mídias em geral e também dos jornais. O Estadão e seu
irmão mais jovem, então, O Jornal da Tarde, especialmente entre os anos de 1972 e 1975,
consolidou um modo de dialogar com os leitores, alertando para o que havia sofrido em cada
edição, por meio da decisão de publicar, nos espaços em que sairiam as matérias censuradas,
os versos de Os Lusíadas, de Camões, bem como de receitas de culinária
9
.
Esse aspecto também ainda carece de estudos, qual seja, que avaliação ética e potica
teria sido feita por Carvalho e Barros com relação a sua participação em episódios promovidos
pela ditadura civil-militar, quando o próprio jornal que os apoiava acabou por ser tima do
regime?
No caso de outros participantes do Grupo de Trabalho da Reforma Universitária, por
exemplo, Newton Sucupira e Valnir Chagas, permaneceram atuando no governo militar,
implantando o sistema de pós-graduação junto à CAPES, com estruturação totalmente
vinculada à Lei 5.540/68. O reconhecimento público, no caso do primeiro, chegou a ponto
de ter seu nome associado à plataforma digital que abriga todos os dados referentes a todos os
programas de cursos de pós-graduação de todo o Brasil, a Plataforma Sucupira. No caso do
professor Laerte, veio a falecer muito cedo, antes mesmo de completar 50 anos de idade,
9
Ver, por exemplo, no Portal do Memorial da Democracia, uma página do jornal com receitas de culinária, a
respeito dessa prática do Estadão para denunciar a censura que sofria:
http://memorialdademocracia.com.br/card/noticia-censurada-da-lugar-a-camoes .
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sofrendo um infarto do miocárdio em agosto de 1972. Colegas da FEUSP já falecidos, que
viveram os anos de chumbo como docentes, perseguidos e mesmo presos, relatavam, ainda
naquele tempo, que o professor Laerte havia atuado no sentido de preservá-los da violência de
que o arbítrio se valia. No caso do professor Roque, havia relatos de sua atuação no sentido de
impedir que fossem prejudicados colegas, no processo de contratação ou renovação de contrato,
por quem atuava, em nome do regime militar, para fazer cortes preventivos” no interior dos
óros da Reitoria da USP.
Então, com essas reflexões, chegamos ao momento em que se cria a FEUSP como
unidade independente, desagregada da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, como
resultado de reforma estatutária e regimental que sofreu a Universidade de São Paulo, para
ajustar-se às determinações da Reforma Universitária trazida pela Lei nº 5.540/68. Que herança
levou, então, no momento de sua autonomização como unidade da USP?
UMA HERANÇA VIGOROSA E MARCAS DE CONTROVÉRSIA
Esse longo percurso de quase 50 anos, até o início da Faculdade de Educação como
unidade da USP, em janeiro de 1970, refere-se a uma herança vigorosa, composta por marcantes
momentos de luta organizada e competente em defesa da escola pública, primeiro qualificativo
que vem acompanhado de outros: gratuita, única, laica. Desde o Inquérito de 1926, que começa
a ser gestado anos antes de ser efetivado, são as presenças de Júlio Mesquita Filho, o idealizador
da iniciativa, e de Fernando de Azevedo, seu realizador, que permitem traçar esse arco histórico
em direção à FEUSP. O primeiro, como um dos grandes apoiadores da USP, a ela atribuindo o
cuidado acamico com a educação no âmbito da pesquisa e da formação docente, com a FFCL
como locus, ou de uma faculdade de educação, como fora projetada por Sampaio Dória, na
Reforma de 1920, de São Paulo (ANTUNHA, 1975). O segundo, como a figura-símbolo do
vínculo com o chão da escola, professor que era, não apenas jornalista, e com a pesquisa, por
seu empenho em compreender processos educativos e os meandros da organização escolar,
especialmente como eram tratados pelas autoridades educacionais.
A repercussão daquele documento, em especial no Manifesto de 1932, repercutiu
também na criação da FEUSP como parte constituinte de seus fundamentos, assim como
também fundamentou a Campanha em Defesa da Escola blica, interligada ao Manifesto de
1959, como procurei demonstrar. Contabilizados o tempo de amadurecimento das ideias e
debates até chegar ao Inquérito, o tempo anterior à promulgação da Lei 4024/61 somam mais
de 40 anos, que igualmente consolidam a construção acadêmica histórica da Faculdade de
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Educação. Dos outros cerca de 6 anos, sabe-se de contradições e controvérsias, como
mencionado, mas são também parte do edifício. Bem feitas as contas, 2021 é mais celebração
de centenário, que propriamente de 50 anos.
Os mais de 40 anos de herança vigorosa foram passados sem formalidades, mas de
modo efetivo, por exemplo para minha turma de estudantes do curso de Pedagogia, iniciada em
1971. Os cerca de 6 anos de contradições estavam lá também, mas sob forma de silêncio e, não
raro, mal-estar impronunciado.
A organização curricular do curso de Pedagogia era marcada no primeiro semestre por
possibilidades de convívio no campus, para assistir às aulas. Era menos uma intenção e mais
algo que se fizera inevivel pela mudança improvisada, e às pressas, de muitos cursos, que
deixaram o prédio histórico da rua Maria Annia, na Vila Buarque, para a Cidade Universitária,
no Butantã. Dos cinco dias da semana, apenas dois eram com docentes da Casa, ministrados às
segundas e sextas-feiras, a saber: Filosofia da Educação e História da Educação. Nos demais
dias, as aulas eram com docentes de outras unidades da USP: às terças-feiras, inesquecíveis, as
aulas de Sociologia Geral, com o professor José de Souza Martins, nos barracos” da
Sociologia, da recém-reformada Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas; às quartas-
feiras, aulas de Economia com o professor Wlademir Pereira, considerado um dos pioneiros da
FEA/USP, desde sua atuação como assistente do Catedrático Paul Hugon, originalmente
chamado ao Brasil pela FFCL; às quintas-feiras, aulas de Psicologia da Aprendizagem, com a
professora Edda Bomtempo, muito interessada por educação, nos barracões” do Instituto de
Psicologia. Os “barracos”, ou “barracões”, eram precárias construções de madeira, que se
apresentavam como a manifestação física do improviso resultante da mudança de sede, em
direção ao terreno no Butantã que, naquele tempo, já recebera o nome de Cidade Universitária
Armando Salles de Oliveira, em mais uma presença da história na década de 1930 e do jornal
O Estado de S. Paulo.
A mudança, dizia a estudantada veterana para a calourada, no melhor modo “boca-
ouvido”, havia acontecido para tirar o movimento estudantil do centro da cidade, da
possibilidade de literalmente parar o trânsito, de chamar atenção para manifestações e, ao
mesmo tempo, dispersar os cursos, e assim, estudantes, pela área extensa do campus no Butantã,
dificultando encontros espontâneos, de onde sempre haveria o risco de saírem oportunidades
indesejadas pelo regime, de reuniões e articulações poticas, que se encontravam proibidas pelo
AI-5 e pelo Decreto-Lei nº 477, de 1969, o correspondente “estudantildo AI-5. O CRUSP
encontrava-se inativo e ao abandono desde 1968.
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Do segundo semestre em diante, as disciplinas eram ministradas por docentes da
FEUSP, no prédio que ainda trazia, no frontispício, o nome “Centro Regional de Pesquisas
Educacionais Professor Queiroz Filho”. É que o prédio, originalmente de propriedade federal,
havia sido doado à USP, dentro de um acordo que previa ocupação progressiva e transferência
de funcionários/as (federais até então) para a USP, assim como de acervos diversos, como a
biblioteca e o centro de documentação. Tudo isso nos era ensinado sempre por alguma voz
veterana na FE, o que permitia desvendar um mundo com muitas informações, que não
chegavam de modo organizado.
Esse foi o modo também pela qual aprendi o que havia representado o AI-5 com a
cassação de professores que não chegara sequer a conhecer, mas que nos faziam falta, de quem
sentíamos saudades, mesmo que não houvéssemos tido a oportunidade de conhecer aquela
gente sábia, que seriam de tanta relevância na nossa formação. Por isso, na revanche possível,
buscávamos ler seus trabalhos. Mais ainda, alertava a veteranada, eram pessoas de quem se
deveria falar em voz baixa, prestar atenção nos ouvidos que nos escutariam, tudo para não correr
mais riscos, que o simplesmente ser estudante da USP já impunha.
Passando à estruturação por habilitações do curso de Pedagogia de então, merece um
estudo próprio, em outra ocasião. Registro apenas que, por haver escolhido a habilitação que
reunia Administração Escolar e Inspeção Escolar, cargo este que logo depois desapareceu do
quadro de especialistas do ensino, como eram chamadas essas funções técnicas, acabei
estudando também sociologia das organizações e psicologia das organizações, além de diversos
semestres de administração escolar, em diferentes aspectos. Mesmo durante a formação para as
habilitações, que ocupava parte dos quatro últimos semestres e parte das horas de estágio,
continuava muito forte, na parte comum a todas as habilitações, do currículo, como o fora ao
longo de todo o curso, a formação em História da Educação e Filosofia da Educação.
No cotidiano de então, sabia-se da vinculação com o Estadão por parte de alguns
docentes mais titulados e mais antigos na instituição, mas esse vínculo não chegava, como
informação, em atividades nas salas de aula. Mas havia um fato que acabava chamando a
atenção. Um dos filhos da família Mesquita ingressou no mesmo vestibular que eu, o de 1971,
mas acabou trancando o curso logo no primeiro semestre, porque servia, então, o Exército, e se
percebia que chegava cansado e sonolento para as aulas. Mas retornou pontualmente no ano
seguinte, com a turma ingressante de 1972, com mais um segundo filho da família Mesquita
que acabara de ser aprovado no vestibular. Ao mesmo tempo, para minha turma, chegou um
terceiro jovem da mesma família, transferido de outra universidade, o que podia ser feito no
segundo ano do curso, mediante edital que anunciava vagas resultantes de eventuais desistentes.
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A partir de 1972, quando o jornal passou a ser censurado diariamente, com o
mencionado uso de Camões e das receitas gastronômicas, os jovens da família Mesquita traziam
impressas, para entregar em nossas mãos, as matérias censuradas, tudo com o ex-libris do jornal,
com o que tínhamos, por assim dizer, informações privilegiadas.
Duas situações vividas, no âmbito da herança vigorosa, que me colocaram em contato
também com a porção controversa do passado feuspiano, uma no terceiro semestre do curso e
outra no quarto semestre, foram fundamentais para mim e acabaram por marcar profundamente
meus estudos e posterior vida na pesquisa e por isso sou grata.
A primeira situação ocorreu, por ser oferecida pela primeira vez na instituição uma
disciplina denominada Estrutura e Funcionamento do Ensino de e Graus na Pedagogia.
Primeira vez, porque vinha em (con)sequência à reforma do ensino vivida pela Lei nº 5.692/71,
que havia sido recentemente promulgada e trazia a nova organização escolar e a nova
terminologia. O docente responsável era o professor João Gualberto de Carvalho Meneses, que
trouxe para a turma uma série de textos sobre a história da educação brasileira, a partir da
Colônia, e permitiu conhecer assuntos a que não tínhamos acesso nos demais conteúdos,
marcado pela brasilidade.
Por me sentir interessada, acabei buscando na biblioteca um texto que o professor
havia indicado como leitura suplementar. Era, de fato, o artigo de abertura de uma publicação
mimeografada na oficina gráfica da FEUSP, de Laerte Ramos de Carvalho, que tratava de uma
proposta de periodização da história da educação brasileira e que propunha tomar a relação
Estado-Igreja como base. Era o primeiro semestre de 1972 e mal eu sabia que ali se iniciava um
interesse de estudo que perdura ainda, nos dias atuais. Foi nessa disciplina, também, que pela
primeira vez ouvi falar do Manifesto de 1932.
Vinculado a essa situação, tínhamos naquele mesmo momento o primeiro de dois
semestres da disciplina Educação Comparada. No período noturno a disciplina era ministrada
pela professora Maria Aparecida Bortoletto, que havia atuado como assistente do professor Jo
Querino Ribeiro, na FFCL, quando o mesmo era catedrático da Cadeira de Administração
Escolar e Educação Comparada. Na passagem da cátedra para o departamento, cada porção
dessa cadeira foi para um departamento distinto, seguindo o professor Querino e sua assistente,
professora Bortoletto, com a Educação Comparada, que se reuniu à Metodologia do Ensino
para formar um departamento, enquanto a Administração Escolar ficara com o professor Carlos
Corrêa Mascaro e com o professor Moisés Brejon, assistentes de Querino na Cátedra, para
liderarem o novo departamento, de Administração Escolar e Economia da Educação, o primeiro
como chefe, e o segundo como livre docente.
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Já no diurno, na turma que eu frequentava, depois da abertura do curso com uma aula
do professor Querino, então Vice-Diretor da FEUSP, quem assumiu a disciplina foi a professora
Marta Maria Chagas de Carvalho, jovem docente, que se dispôs a conversar com as estudantes
(nesse caso, as interlocutoras éramos todas mulheres) sobre a disciplina ao final do semestre,
para fazer uma avaliação do curso e dialogar sobre propostas. Sucede que desse diálogo surgiu
a proposta de, no semestre seguinte, o curso abordar comparativamente momentos da educação
brasileira. Com isso, no segundo semestre de 1972, tivemos acesso e fizemos a leitura do texto
completo do Inquérito, do Manifesto de 1932, do Manifesto de 1959, entre outros documentos,
que aprendemos a buscar, ler, analisar e apreciar.
A aula de abertura do semestre daquela disciplina, na primeira semana de agosto de
1972, foi dada pelo professor Laerte, pai da professora Marta, e então diretor da FEUSP, que
tratou do tema que tanto me interessara, ou seja, a periodização da educação brasileira a partir
da relação Estado-Igreja, abertura muito apropriada para o estudo que se seguiria. Alguns dias
depois o professor veio a falecer, o que foi uma vivência complexa para aquele momento. Vale
lembrar que, logo depois, a professora Marta Carvalho mudou de departamento dentro da
FEUSP, passando a trabalhar na área de História da Educação, como evidentemente era sua
vocação como pesquisadora e como docente, uma referência na área. A ela sou grata por essa
parte tão relevante de minha formação.
Esses relatos de momentos do curso de Pedagogia procuram mostrar como a herança,
aqui mencionada, da FEUSP era tratada de modo sério em sala de aula, tanto no que se referia
a procurar oferecer uma formação lida, desenvolvendo capacidade de pesquisa naquela fase
dos estudos. Havia espaço para o debate e para o confronto de ideias, mesmo com os professores
mais titulados e mais experientes. O artigo de Moraes (2020) que citei algumas vezes, é
excelente também para aqui trazer o papel do professor Celso Beisiegel, que dialogava com
quem estivesse interessado em compreender o mundo acadêmico da pesquisa, em especial por
sua grande experiência, naquele momento, mesmo jovem como era então, com trabalhos de
campo, sociedades científicas, congressos, e toda a dinâmica que envolve a vida acadêmica.
Apresentou-nos a autores como Wright Mills, assim como Luiz Pereira, Marialice Foracchi e
Aparecida Joly Gouveia, num programa intenso de leituras e seminários, por dois semestres
que valiam por muito mais.
Quanto ao silêncio a que me referi, sobre a parte controversa da herança da FEUSP,
era visto com as cores próprias que eram deixadas pelo arbítrio e pela repressão que fazia o
pano de fundo permanente do cotidiano universitário. Mas, ao final, era profundamente
incômodo e, compreendi depois, injusto , perceber que a FEUSP era vista muito mais por
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aqueles menos de 10 anos que antecederam sua criação e que se referia a escolhas pessoais de
alguns docentes, do que pelos 40 anos da história que haviam conformado o norte da instituição,
qual seja, a defesa da escola pública.
Sem dúvida o controverso deixara marcas institucionais a pedir mudanças, o que
passou a ocorrer paulatinamente, e ganhou força a partir de meados dos anos 1980, marcado
pela atuação coletiva organizada, no que tangia aos aspectos estruturais, e por intensa
solidariedade entre o pessoal constitdo por jovens docentes, altamente voltados para novas
abordagens sobre a educação, bem como relações interdisciplinares que poderiam ser
transformadoras. O processo da redemocratização era vivido também internamente na FEUSP.
Parte desse processo guardou relação profunda com a estrutura de poder que havia na
USP, como decorrência da reforma estatutária e regimental de 1969. Sendo vinculada à
Reforma Universitária trazida pela citada Lei nº 5.440/68, a composição dos órgãos
colegiados da Universidade era marcada por um tipo de economia interna de dar aparência de
representação igualitária, supostamente para atender as demandas de 1968 relativas à
representação paritária, mas, de fato, garantir o poder decisório nas mãos dos mais titulados.
Na prática, para tomar o exemplo da composição da Congregação da FEUSP no início dos anos
1980, a situação era tal que as/os professores assistentes, com título de mestrado
10
,
representávamos 75% do quadro docente da Faculdade. Contudo, havia apenas uma vaga para
representação da categoria na Congregação. Em 1984, colegas consultaram-me sobre a
possibilidade de candidatar-me a essa representação, pois estava próximo o fim do mandato da
professora Helena Chamlian, que fizera uma representação da categoria muito correta, digna e
efetivamente excelente. Não seria cil substituí-la, mas aceitei. Resultou que fui a única
candidata, eleita com a quase totalidade dos votos, em uma eleição que contou com quase 100%
de presença daquele eleitorado.
Estruturamos, coletivamente, um sistema de consulta que permitisse à representação
ser efetiv