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ESTÉTICAS DAS RESISTÊNCIAS E O DOCUMENTÁRIO (DOCUMENTO 03): A
MULHER DA CASA DO ARCO-ÍRIS
Gilberto Alexandre Sobrinho
Universidade Estadual de Campinas, Brasil
gilsobri@unicamp.br
RESUMO
Na Trilogia Afro-Campineira” constam três realizações em documentário, em que dirigi, roteirizei
e produzi os filmes. São três curtas-metragens focados em protagonistas de processos culturais,
religiosos e artísticos, todos defensores de manifestações de matrizes africanas e seus potentes
hibridismos, alocados na região metropolitana de Campinas-SP (RMC). Os filmes são Diário de
Exus (2015), A Dança da Amizade, Histórias de Urucungos, Puítas e Quijengues (2016) e A
Mulher da Casa do Arco-Íris (2017/2018). Desenvolvem-se, nos filmes, o que nomeio como as
estéticas das resistências”, priorizando narrativas afro-diaspóricas, num processo de criação em
que confluem estética e política. Esteticamente, o documentário faz convergir os processos de
observação, participação (entrevista), performance e “poesia”, num conjunto de imagens e sons
centrados em pessoas e espaços que se organizam comunitariamente em torno de códigos
afrocentrados. Politicamente, realçam-se o papel da cultura e da religião na afirmação e construção
identitária do povo negro, no Brasil, o que adensa a compreensão do papel da cultura na resistência
de um povo. Esse texto documenta o processo de realização do terceiro curta-metragem da trilogia,
trata-se de A Mulher da Casa do Arco-íris.
Palavras-chave: Documentário. A Mulher da Casa do Arco-íris. Trilogia Afro-campineira.
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Still de A Mulher da Casa do Arco-íris. Saída da Casa do Arco-íris, em Hortolândia - SP.
(Imagem de Coraci Ruiz)
“Eu era conserva, na época chamada laranjinha. eu me iniciei... Eu tinha um
uniforme, mas tinha que pôr branco por baixo. Eu punha meus mijeloguns... os
meus fios de contas e o ojá na cabeça, porque eu estava careca e punha meu
chapeuzinho por cima, e ia trabalhar. Eu tomei seis meses de obrigação, três meses
de migui de muzala”... porque eu sou de Angorô, então minha mãe me deu seis
meses de obrigação. E eu tinha que trabalhar... Eu tinha muita amizade com um
engraxate ali. Um dia eu ali varrendo, tomei um tamanho tapa no bumbum, que
eu caí em cima do engraxate. Esse homem disse assim: Sua feiticeira, isso, aquilo
e me xingou de outros nomes. Eu ce ele correu (...). Aí eu comecei a chorar,
fiquei o nervosa e olhei assim na igreja, e aí eu falei: Olha, minha santa Nossa
Senhora da Conceição, a senhora me viu em perigo... Se a Senhora é de verdade...
Se a Senhora representa a Iemanjá de nossa religião... naquela época não conhecia
Caiá... Eu vou entrar (referia-se a lavar o adro da igreja). Essa é a única coisa
que eu falo pra Senhora. Porque esse mistério desse preconceito tem que acabar.
Campinas foi a última que aderiu à abolição, entre aspas. E continuei varrendo.
Tinha que trabalhar.”
(Mameto Dangoroméia ou Mãe Dango)
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1. O PROCESSO DE CRIAÇÃO (APRESENTAÇÃO DO PROJETO), PRODUÇÃO
(INCLUI O ROTEIRO DE MONTAGEM) E DIFUSÃO DE A MULHER DA CASA DO
ARCORIS (2016-2018)
Objeto
Eu sou mulher, negra e do candomblé... Que moral se dá para isso? A sociedade não dá
moral mesmo...” [...]. Essas foram as palavras ditas por Eunice de Souza, ao contestar os
argumentos do bispo da cidade de Campinas, na ocasião de negociação da realização da primeira
lavagem das escadarias da Catedral Metropolitana da Cidade, em meados dos anos 1980. No trecho
citado, Eunice de Souza, uma mulher negra que trabalhava como “conserva
1
revela plena
consciência dos marcadores sociais que a inferioriza
2
. Junto ao argumento também reverbera sua
consciência a respeito da intolerância com os praticantes de religiões de matriz africana, como
Candomblé e Umbanda [...]. [Uma intolerância que se exterioriza em] “violência física, violência
verbal, violência psicológica e destruição dos terreiros etc.”. Apesar disso, o candomblé no Brasil,
ao longo de sua história, se revelou como terreno fértil para que mulheres possam exercer um
matriarcado de grande relevância, abraçando seus filhos e parentes como mães-de-santo,
proporcionando, assim, resistência, fé religiosa, visibilidade e reconhecimento ao legado afro-
brasileiro.
Assim, partiu-se para a execução de um projeto para a realização de um documentário sobre
aquela Eunice Souza, que passou ser nomeada e reconhecida como Mãe Dango, a memeto
Dangoromeia na língua banto, sacerdotisa que rege o “Nzo Musambu Hongolo Menha” templo
1
Conserva é também o nome dado a varredores ou limpadores de rua. A expressão dessa forma foi encontrada num
depoimento de Mãe Dango na Dissertação de Mestrado Candomblé agora é Angola, de Ivete Miranda Previtalli,
Mestrado em Ciências Socias, PUC-SP, 2006.
2
Conforme dados do IPEA. “No caso das desigualdades de gênero, as mulheres encontram-se mais concentradas,
proporcionalmente, em trabalhos informais e precários do que os homens. Das mulheres ocupadas com 16 anos ou
mais, 17% são empregadas domésticas, e, dentre estas, a grande maioria são mulheres negras que, em geral, não
desfrutam de qualquer direito trabalhista, pois não trabalham com carteira assinada e não recolhem FGTS. São também
as mulheres pretas ou pardas as mais penalizadas, destacando-se a elevada concentração destas no emprego doméstico
(22,4%) e trabalhadores sem remuneração (10,2%)”.
http://www.ipea.gov.br/igualdaderacial/images/stories/pdf/primeiraedicao.pdf.
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religioso conhecido também como a “Casa do Arco-íris -”, em deferência ao Nkici Hongolo
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, santo
de Mãe Dango, divindade banta que corresponderia a Oxumaré na cosmogonia nagô. mais de
três décadas, ela é defensora e refencia do chamado candomblé Angola, em Hortolândia, na
Região Metropolitana de Campinas. Essa prática religiosa de matriz banto, originalmente os
primeiros africanos a chegarem no Brasil, se distingue do candomblé Keto, de origem Yorubá, hoje
dominante no Brasil entre os praticantes candomblecistas. Mesmo nesse cenário, a prática do
candomblé Angola se disseminou em Campinas e região e ocupa lugar de destaque no horizonte
religioso e de resistência da cultura africana. Mãe Dango é, assim, uma das vozes mais importantes
dessa vertente e também uma reconhecida liderança comunitária, política e sua figura, nos eventos
que organiza e participa, agrega outras manifestações locais da cultura afro-brasileira.
Buscou-se, assim, construir uma narrativa audiovisual que, primeiramente, pudesse
oferecer visibilidade sobre esse tipo específico de candomblé, sobrevivente da diáspora, inscrito na
região de Campinas, que possui força religiosa, estética, cultural e política e é ainda pouco
(re)conhecido. Para isso, a recuperação dessa memória e, principalmente, o encontro entre a câmera
e Mãe Dango foi fundamental para o estabelecimento de uma partilha, via imagem, de
conhecimentos e formas de resistência da população negra de Campinas e seu entorno.
Consequentemente, imaginou-se a constituição de um ponto de vista que relacionasse essa cidade,
tradicionalmente vinculada à imigração europeia, aos negros que inscreveram e continuam a
realizar práticas culturais fundamentais para sua formação cultural.
Nos vários ciclos econômicos de Campinas (cana-de-açúcar, café, industrialização etc.), a
o de obra migrante determinou a formação da classe trabalhadora. Nesse conjunto,
primeiramente os escravos de origem africana e seguidas levas de deslocamentos internos e de
estrangeiros foram necessários para constrrem as riquezas da cidade. O interesse desse
documentário residiu em destacar aspectos particulares da cultura afro-brasileira desenvolvidos
nesse entorno urbano. Essa presença edificou um traçado cultural com manifestações culturais
originais e diversificadas como o samba de bumbo, vertente do samba rural paulista, o jongo, a
capoeira, as folias de reis etc. Em diálogo com a cultura popular, religiões de matriz africana
3
Nkices ou inquices são divindades africanas, trazidas e cultuadas pelos bantos que aqui chegaram no século XVI
do período colonial. Outras divindades trazidas por africanos e cultuadas em terreiros são os orixás e os voduns.
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também se desenvolveram nas periferias da cidade. O percurso de Mãe Dango elucida, e muito,
sobre essa faceta da metpole.
Portanto, almejou-se a realização de um documentário que teve como centro a história de
vida de Mãe Dango, destacando-se suas atividades como influente Mãe de Santo. Tratando-se de
uma mulher, negra, de origem humilde e que construiu uma família religiosa numerosa e respeitada
e fez de sua “casalugar de acolhimento espiritual e uma série de atividades de cunho social, o
documentário olhou sua figura assumindo-a como uma feminista, portanto, sua influência vai além
da religião e se insere em outros setores tais como a luta pelos direitos das mulheres, o apoio às
comunidades carentes em várias frentes, principalmente na distribuição de alimentos, a defesa pela
melhoria do bairro, a educação de adultos etc. Ao lado de Mãe Corajacy
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, também Mãe de Santo
ligada ao candomblé Angola, Mãe Dango realiza anualmente, desde 1985, no Sábado de Aleluia,
a Lavagem da Escadaria da Catedral de Campinas. Evento inserido no calendário oficial da cidade,
desde 1998, e exemplo de conjugação de celebração religiosa, manifestação cultural e resistência
política pela luta contra a intolerância religiosa e o racismo, onde milhares de pessoas se aglomeram
para acompanhar a celebração da cultura banto no centro de Campinas. É, portanto, nos circuitos
dos afetos de sua casa e na expansão pública de suas demandas que acontecem anualmente na
Lavagem que o filme se norteou. Mãe Dango possui, assim, uma história pessoal e blica de muita
potencialidade para que reverbere junto aos afro-brasileiros na elevação de sua autoestima e que
essa narrativa possa tamm oferecer um ponto de vista multicultural sobre a cidade: olhá-la a
partir de uma mulher negra e bia, portadora e difusora do conhecimento do legado banto e que
se tornou símbolo da luta contra o racismo, a intolerância religiosa e o fim da pobreza.
ESTRATÉGIA DE ABORDAGEM
Primeira estratégia
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O nome de batismo de Mãe Corajacy é Antonia Lima Duarte, que nasceu na cidade de Boa Nova, na Bahia, em 15
de maio de 1943. Chegou a Campinas em 1968, se casou e teve três filhos (Íris, Ivone e Ivan). Figura em diversos
segmentos na cidade: participou da Corrida Integração, em 2002; é integrante do Programa do Micro Empreendedor
da Prefeitura; foi membro do Grupo de Trabalho de Combate à Intolerância Religiosa da Assembleia Legislativa de
São Paulo (Alesp) e é sacerdotisa da Comunidade Tradicional de Matriz Africana”. In: http://www.geledes.org.br/mae-
corajacy-e-1-mulher-de-religiao-de-origem-africana-a-receber-titulo-de-cidada-campineira/. Acessado em 12 de
agosto de 2016.
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Tendo como foco central a trajetória dessa Mãe de Santo, o documentário se norteou,
particularmente, por sua presença, e das pessoas que estão ligadas a ela, na imagem. Como será
detalhado na estrutura do filme, buscamos fugir do esquema “cabeça falante” e da visão de
especialistas acadêmicos sobre o assunto, assim, a voz do(s) sujeito(s), juntamente com a câmera,
foram os narradores do filme.
As entrevistas com Mãe Dango se deram de três formas: a) com ela realizando atividades
tais como a preparação da feijoada e nas atividades de costura, com a utilização de apenas uma
câmera (câmera na mão para a feijoada e fixa para a costura) e equipamento de som (boom), além
da direção; b) com ela em movimento, apresentando sua casa, detalhando as várias funções dos
espaços, a simbologia dos objetos, com a utilização e apenas uma câmera (câmera na mão, inquieta,
observadora , planos abertos e fechados o necessariamente sincrônicos à fala), equipamento de
som (boom) e a direção essa opção pela minimização da equipe almeja criar maior proximidade
com a entrevistada; c) entrevista com Mãe Dango acomodada em seu trono de sacerdotisa, com a
câmera fixa e uso de lapela.
Paralelo a esse investimento em falas desses sujeitos, existiu o trabalho de observação das
pessoas e dos espaços, nos eventos festivos e religiosos e na elaboração de imagens de cobertura.
Assim, os enquadramentos frontais com entrevistas diretamente para a câmera, planos gerais, de
conjunto e de detalhe que inspecionem os espaços internos e externos do terreiro, bem como
tomadas do bairro e das cidades de Hortolândia e de Campinas foram feitos e, muitos deles,
utilizados estrategicamente na construção do relato. Assim como a câmera na o, em movimento,
detalhando objetos, indumentária, gestos e outras minucias que puderam tensionar a imagem foram
também mobilizados.
Em síntese, a primeira estratégia consistiu em deixar a câmera e o gravador se levarem pelas
coreografias dos corpos no espaço e pela polifonia singular de cada situação e também criar
registros mais objetivos com entrevistas voltadas para a câmera. Assim, corpos, gestos, falas, ruídos
e uma diversidade de materiais expressivos estavam na nossa mira, justamente para criar espessura
na imagem em sintonia com a construção de paisagens visuais e sonoras.
Com essa estratégia, almejou-se criar um campo afetivo nas imagens e sons. Nesse sentido,
o primeiro campo afetivo que enformou as imagens foi aquele que se desdobrou do encontro entre
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a equipe e a comunidade de Mãe Dango. Objetivamos, com isso, construir uma relação e isso, num
segundo momento, pode reverberar na captura dos afetos que emanam das relações comunitárias
na casa.
Selecionamos, assim, alguns momentos-chave, que puderam deflagrar tais intensidades, por
se configurarem em situações em que a casa está cheia de seus filhos. São momentos de festa e de
celebrações religiosas. O cotidiano, as rotinas da casa e os silêncios e vazios também foram
considerados. Isso permitiu observar e capturar variações afetivas e fazer com que a imagem
oferecesse um campo mais prismático das relações estabelecidas em torno de Mãe Dango.
Segunda estratégia
Dos eventos diretamente ligados à Casa do Arco Íris, avançou-se para uma série de
filmagens de sons e imagens da Lavagem das Escadarias da Catedral Metropolitana de Campinas.
Aqui foram filmados, com uma câmera na mão (durante o cortejo e a lavagem) e tri(roda que
forma o círculo sagrado) e gravação de ambiência sonora, outros ritos, danças e confraternizações,
bem como, alguns aspectos do seu campo de influência. A Lavagem da Catedral é um evento anual
que reúne milhares de pessoas, pressupõe-se um conhecimento prévio de suas dinâmicas, algo que
a equipe vem desenvolvendo como pesquisa há alguns anos.
Terceira estratégia
A terceira estratégia foi composta pela coleta de imagens e sons de arquivos pessoais de
Mãe Dango. Contatos prévios com jornalistas foram feitos e iniciamos uma pesquisa para reunir
gravações de voz de Mãe Dango em distintos momentos, isso poderia oferecer variações de ponto
de vista e um registro histórico de sua presença na cidade, além do material ter um funcionamento
no trabalho com texturas de voz e criação de efeitos de sentido. Fotografias de álbuns de Mãe
Dango foram disponibilizados para a equipe, objetivando-se que fossem trabalhados na edição
final.
Assim, os arquivos de imagem (sobretudo fotografias) e som, teriam função dupla:
fortalecer a importância histórica de Mãe Dango na formação cultural da cidade de Campinas e na
região, atestando-se sua ativa militância e resistência que avaa décadas e colaborar na criação
das relações afetivas com a expressão visual e sonora, onde o registro do tempo histórico seria
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também uma porta aberta para o estabelecimento de uma vivência com a imagem. Os arquivos
seriam utilizados com dupla finalidade: a) efeitos ilustrativos para falas e, principalmente, b) para
a criação dos efeitos visuais, uma vez que há interesse em desenvolver uma narrativa mais poética.
Apesar dessa pesquisa e de sua potencialidade, não se utilizou-se de tais recursos no resultado final
do filme.
ESTRUTURA
As estratégias de abordagem estavam em consonância com a afirmação de uma estrutura
assentada no conceito de mosaico. Assim, foi pela junção de peças aparentemente soltas e dispersas
que se deu a construção do perfil de Mãe Dango.
Em sua biografia, Mãe Dango pertenceu ao cristianismo, frequentou a Igreja Adventista do
Sétimo Dia, foi para a Umbanda onde conheceu a Cabocla Jurema, até hoje cultuada em sua roça
e, finalmente, encontrou o candomblé Angola, tornando-se uma das referências desse culto.
Até o seu estabelecimento no culto dos Nkices, Mãe Dango teve muitos transtornos por o
desenvolver plenamente sua espiritualidade e, com isso, sua mediunidade era considerada loucura,
e as consequências dessa compreensão foram anos de submissão a tratamentos psiqutricos a base
de choques elétricos e outras violências ao seu corpo e a sua saúde em virtude de uma grande
interdição a algo que era imanente à sua integridade como sujeito: seu pai, de origem banto, já
havia informado sobre seu destino, no entanto, com sua morte, a jovem predestinada viu-se atacada
pela incompreensão dos outros.
Essa versão de sua própria biografia é narrada publicamente por Mãe Dango e ofereceu
insumo para investimentos mais poéticos na estruturação de sua trajetória pelo cinema.
A opção por uma estrutura mosaicada foi, assim, justificada, sobretudo pela necessidade
que encontramos de realçar “as curvas” de sua vida. Longe de uma teleologia, embate,
enfrentamento, sofrimento, coragem, conhecimento, força de vontade, fé e conhecimento reunidos
para construir uma hisria que reverbera, principalmente junto às mulheres negras de várias
idades, com os piores salários, o tratamento mais desigual, a violência doméstica e as
consequências da baixa autoestima.
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Mãe Dango é uma sacerdotisa que rege seu templo e cuida de seus filhos, é também
costureira de vestimentas de candomblé, uma das principais fontes de seu sustento. Em seu
barracão (ou terreiro, ou igreja, várias denominações utilizadas pela comunidade) desenvolvem-
se, assim, as atividades sagradas, festas e reuniões sociais que se destinam a arrecadar fundos para
a manutenção e conservação da casa e ali também se dão os trabalhos pessoais e profissionais de
Mãe Dango, onde ela faz consultas por meio do jogo de búzios e costura as roupas cerimoniais de
seus filhos.
A partir dessa descrição, resolvemos fazer o seguinte recorte, para
descrever/exibir/apresentar um perfil de Mãe Dango e de sua comunidade:
1. Filmar a Casa do Arco-íris: sua estrutura interna, as imagens e os significados de
um espaço sagrado dedicado ao candomblé Angola; Mãe Dango nos guiou por seus modos,
corredores e imagens e enquanto a câmera realizou o passeio visual, o gravador capturou sua fala
sobre como se deu essa construção, os seus significados e suas histórias;
2. Acompanhar a preparação da feijoada, um dos principais eventos festivos da casa.
Com isso, além de observar todo o preparo e, principalmente, ter imagens de Mãe Dango
temperando e finalizando a feijoada, tivemos também imagens e sons da participação da
comunidade do terreiro nesse evento;
3. Filmar o evento da feijoada, em estilo direto, deixando-se levar pelas dinâmicas do
evento: as conversas, os encontros, o samba que atravessa a tarde, a confraternização, a alegria.
4. Filmar uma entrevista com Mãe Dango costurando. Fizemos um registro de suas
habilidades como costureira, capturando, pela imagem e pelo som, especificidades da costura de
uma roupa sagrada. A voz de Mãe Dango, oferecendo explicações sobre esse e outros processos
fizeram o contraponto.
5. Filmar uma cerimônia sagrada, também conhecida como festa de santo.
6. Filmar o Cerimonial festivo e religioso da Lavagem da Escadaria da Catedral. Desde
a preparação de seus filhos de santo, que saem em caravana, a descida pela rua Treze de Maio, a
lavagem das escadarias com água de rosas, as apresentações dos grupos afro-campineiros.
Portanto, partimos de um recorte que assume o aqui e agora como parâmetros dominantes
de imagens e sons, a essa expressão visual e sonora se agrega material de arquivo e reiteramos, o
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conjunto de vozes” agregadas à construção do relato habitam territórios diferentes. A partir desse
material bruto, almejamos lapidar o conteúdo verbal e a trilha sonora, bem como a pletora de
imagens de lugares, pessoas, objetos, gestos, coreografias, entre outros itens. E, com isso, restituir,
por meio de um olhar pessoal, assumidamente poroso, o resultado da vivência com uma história
tão profunda. O resultado esperado era/foi a construção de um filme poético e potico que
reverberasse o circuito de afetos que esses encontros geraram.
Imagem da Lavagem da Escadaria, Campinas, 2016.
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PROPOSTA DE DIREÇÃO E/OU CONCEPÇÃO AUDIOVISUAL
Osùmàrè ou Oxumaré é o orixá de todos os movimentos, de todos os ciclos, da chuva e
do arco-íris. Ele representa a mobilidade e a atividade e uma de suas funções é dirigir as
forças que geram o movimento. Oxumaré, símbolo da continuidade e da permanência, é o
senhor de tudo que é alongado e também representa a riqueza e a fortuna. Algumas vezes
é representado por uma serpente que morde a própria cauda (infinito). Rege o princípio da
multiplicidade da vida, transcurso de muitos e variados destinos. De variadas funções, diz-
se que serve a Xangô e que seria encarregado de levar as águas da chuva de volta para as
nuvens através do arco-íris. Oxumaré, o segundo filho de Nanã, irmão de Ossaim, Ewá e
Omolu, que são vinculados ao mistério da morte e do renascimento, é originário de Mahi,
no antigo Daomé, onde é conhecido como Dan. Na região de Ilé-Ifè é chamado de Ajé
Sàlugá, aquele que proporciona a riqueza aos homens.
(Raquel Trindade, Jefferson Galdino e Sandra Regina Félix)
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Tomamos como ponto de partida e como referência para a concepção visual do
documentário a figura do Nkici Hongolo, também conhecido como o Orixá Oxumaré e as imagens
diretamente relacionadas a ele - a serpente e o arcoris. É o santo de Mãe Dango, ele rege a Casa
do Arco-íris. O movimento da serpente parece sugestivo para a elaboração “mosaicada”, o linear
da construção da imagem de Mãe Dango. Por outro lado, temos essa imagem forte do arcoris que
permite um colorido intenso e vibrante, algo inerente ao universo que documentamos.
Trata-se de um documentário poético, portanto, a tradução subjetiva, livre, porosa em
imagens e sons sobre o universo de Mãe Dango. Foi essa a proposta de direção: assumir um olhar
livre que celebre essa figura.
A partir de um trabalho concentrado de visionamento e escuta do amplo material nasceu a
narrativa do filme, sendo já estabelecido uma estrutura previa de sequencias a serem filmadas e um
modo particular de olhar esse contingente. Para a organização desse material brido, direta e
indiretamente relacionado à trajeria de Mãe Dango, abrimos mão da tradicional voz over e
procedemos a um encadeamento das falas, dos cantos e das imagens, valorizando sua dimensão
plástica e sonora, o perdendo de vista a contundência do conteúdo que esse material poderá
trazer. Esses procedimentos visaram a construção de um ponto de vista sobre uma determinada
liderança religiosa e comunitária, sendo sua imagem associada ao feminismo negro, às
comunidades negras, à cultura negra, comumente marginalizada, de tal forma que essas vozes
sejam ouvidas, realçadas e valorizadas.
A questão sonora do filme foi conduzida pela forte referência dos atabaques que regem as
cerimonias da Casa do Arco-Íris. Como não se tratou de um documentário realista, mas poético,
foi destinado tratamento especial a essa referência. O trabalho artístico do Arubu Avua foi uma
referência forte, justamente pelo tratamento eletrônico que foi dado à sonoridade dos atabaques.
Arubu Avua:
Rumo Diurno: https://youtu.be/kz_SQTAkONc
Naonde: https://youtu.be/0v69UCtgfoc
Protocosmos: https://youtu.be/SIVYCYdwdYs