ISSN 2447-746X
DOI: 10.20888/ridpher.v7i00.15167
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Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo, Campinas (SP), v. 7, p. 1-11, e021001, 2021.
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DOSSIÊ TEMÁTICO
MEMÓRIAS DE PROCESSOS DE RENOVAÇÃO PEDAGÓGICA NO BRASIL:
EDUCAÇÃO BÁSICA, FORMAÇÃO DE PROFESSORES E PESQUISA
EDUCACIONAL NA TRAJETÓRIA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Carmen Sylvia Vidigal Moraes
Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, Brasil
carmensvmoraes@gmail.com
Elizabeth dos Santos Braga
Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, Brasil
elizabeth.braga@usp.br
Roni Cleber Dias de Menezes (FE/USP)
Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, Brasil
roni@usp.br
Em cada época é preciso tentar arrancar a transmissão da tradição ao
conformismo que está na iminência de subjugá-la ... O dom de atear ao
passado a centelha da esperança pertence somente àquele historiador
que está perpassado pela convicção de que também os mortos não estão
seguros diante do inimigo, se ele for vitorioso. E esse inimigo não tem
cessado de vencer.
(Walter Benjamin, Sobre o Conceito de História, Tese VI).
A escolha de um trecho das teses de Walter Benjamin, como epígrafe, tem o propósito
de nos remeter à sua importante orientação de método de interpretação da história, orientação
que nos inspirou na organização deste dossiê.
Benjamin (1991, p. 425) critica as abordagens historiográficas positivistas que se
apoiam na concepção de um tempo “homogêneo e vazio”, um tempo cronológico e linear.
Contra a concepção quantitativa do tempo histórico como acumulação, esboça sua concepção
qualitativa, descontínua, do tempo histórico. Trata-se, segundo ele, para o historiador
“materialista” - isto é, para o historiador capaz de identificar no passado os germes de uma outra
história, capaz de levar em consideração os sofrimentos humanos acumulados e de dar uma
nova face às esperanças frustradas -, de fundar um outro conceito de tempo, “tempo de agora”
(jetztizeit), caracterizado por sua intensidade e sua brevidade.
Em lugar de apontar para uma “imagem eterna do passado ou para uma teoria do
progresso, o historiador constitui uma “experiência” (Erfahrung) com o passado. O passado
contém o presente (jetztzeit), “tempo de agora” ou “tempo atual”. Assim, para Benjamin, a
citação do passado não é necessariamente uma obrigação ou uma ilusão, mas pode ser fonte
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formidável de inspiração, uma arma cultural no combate presente (BENJAMN, 1991; LÖWY,
2005).
Segundo Benjamin,
O passado traz consigo um índice secreto que o impele à redenção. Pois não
somos tocados por um sopro do ar que envolveu nossos antepassados? Não
existem, nas vozes a que agora damos ouvidos, ecos de vozes que
emudeceram? (...) Se assim é, então existe um encontro secreto marcado entre
as gerações precedentes e a nossa. Então, alguém na terra esteve à nossa
espera. Se assim é, foi-nos concedida, como a cada geração anterior à nossa,
uma frágil força messiânica para a qual o passado dirige um apelo. Esse apelo
não poder ser rejeitado impunimente. O materialista histórico sabe disso (Tese
II) (BENJAMIN, 2005, p. 242).
Ao tempo do progresso, “feito à imagem e semelhança do espaço”, reduzido a uma linha
“absoluta, infinita”, Benjamin opõe o tempo da memória, da “rememoração orgânica”, que não
é homogêneo, mas que tem “plenos e vazios” (GUY, C., apud LÖWY, 2005, p. 131). Como
observa Dosse (1998, p. 5), é no interior mesmo desta fratura, desta descontinuidade “que nasce
uma nova consciência historiográfica sobre a base de uma problematização possível da
memória pela história e da história pela memória”.
Nas teses de Benjamin aparecem duas preocupações inerentes ao ofício do historiador,
a questão da subjetividade e da memória na construção do conhecimento histórico. Na tese
XVII, ele afirma que a rememoração tem por tarefa a construção de constelações que ligam o
presente ao passado. Essas constelações, esses momentos arrancados da continuidade histórica
vazia, são “mônadas”, ou seja, “são concentrados da totalidade histórica saturada de tensões”.
Esses momentos constituem uma chance irruptiva, revolucionária, no combate hoje ao
passado oprimido, mas também, sem dúvida, ao presente oprimido.
É assim que Benjamin passa do tempo da necessidade para o “tempo dos possíveis”,
uma concepção do processo histórico que acesso a um vertiginoso campo dos possíveis
(DOSSE, 1998, p. 5), sendo as condições objetivas essas condições de possibilidade. E o que
significaria, hoje, essa “abertura da história”?
Para M. Löwy (2005, p. 150), no plano cognitivo,
[...] ela ilumina um novo horizonte de reflexão: a busca de uma racionalidade
dialética que, quebrando o espelho liso da temporalidade uniforme, recusa as
armadilhas da ‘previsão científica’ de gênero positivista e leva em conta o
clinamen rico de novidades, o kairos cheio de oportunidades estratégicas.
E, do ponto de vista político, a concepção aberta da história como práxis humana não
incita necessariamente o otimismo, considera a possibilidade da catástrofe, por um lado, e de
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grandes movimentos emancipadores, por outro. Ao longo do século, enquanto as sociedades
modernas permanecerem submetidas às relações de desigualdade e exclusão, para
Benjamim a possibilidade de novas formas de barbárie, imprevisíveis, ocorrerem. Ao mesmo
tempo, ele nos leva a restituir à utopia sua força negativa, por meio da ruptura com todo
determinismo e com todo modelo ideal de sociedade que alimente a ilusão de um fim dos
conflitos e, portanto, da história.
Benjamin nos permite pensar um projeto revolucionário com vocação emancipatória
geral capaz de responder às exigências éticas e políticas de nosso tempo, e sem suprimir o papel
decisivo das classes sociais, permite repensar a emancipação social e a supressão da dominação
do ponto de vista da multiplicidade dos sujeitos coletivos e individuais, opondo-se inteiramente
“à pseudo-universalidade ideológica que considera o status quo atual como o universal humano
acabado” (LÖWY, 2005, p. 154).
É nessa perspectiva que a pequena digressão às teses de Walter Benjamin “Sobre o
conceito de História” se justifica, pois elas vão ao encontro da nossa preocupação na
organização deste trabalho. Concordamos com Benjamin ao considerar que a abertura da
história, quer se trate do passado ou do futuro, é inseparável de uma opção ética, social e
política. Caminhamos na expectativa de que a memória, utilizada inúmeras vezes como
instrumento de manipulação, possa estar “revestida de uma perspectiva interpretativa aberta
para o futuro, fonte de reapropriação coletiva e não simples museografia do presente” (DOSSE,
1998, p. 6).
Encontramos, em Benjamin, a unidade profunda, íntima, entre a ação transformadora
no presente e a intervenção da memória em um momento determinado da história. E essa ação
subversiva-emancipadora deriva, em última análise, como na utopia de Marx de uma autêntica
comunidade humana, de uma aposta: “o engajamento dos indivíduos – ou dos grupos sociais
em uma ação que comporta o perigo, o risco do fracasso, a esperança do êxito, mas em que
jogam sua vida”. E toda aposta como essa “é motivada por valores transindividuais ... e não
pode ser submetida a uma prova científica ou a uma demonstração fatual” (LÖWY, 2005, p.
156).
Como M. Löwy observa, com pertinência, não é apenas o futuro e o presente que
permanecem abertos na interpretação benjaminiana do materialismo histórico, mas também o
passado. O que significa dizer:
a variante histórica que triunfou o era a única possível. Diante da
história dos vencedores, da celebração do fato consumado das rotas
históricas de mão única, da inevitabilidade da vitória dos que
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triunfaram, é preciso retomar essa constatação essencial: cada presente
abre uma multiplicidade de futuros possíveis (LÖWY, 2005, p. 158).
A abertura do passado significa também que os chamados “julgamentos da história” não
são definitivos ou imutáveis. O futuro pode reabrir dossiês históricos, reabilitar vítimas,
reatualizar esperanças e aspirações vencidas, redescobrir combates esquecidos ou considerados
“utópicos”, “anacrônicos”, na contracorrente do progresso”. A abertura do passado e a do
futuro estão estreitamente associadas (ibidem).
Com essas preocupações conceituais e de método, estimulados pelas comemorações dos
50 anos de existência da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, e dos 60 anos
de sua Escola de Aplicação, instituições onde atuamos como docentes e pesquisadores, e a
convite da editora da Revista Iberoamericana do Patrimônio Histórico-Educativo, Profa. Dra.
Maria Cristina Menezes, organizamos o presente dossiê.
O seu principal objetivo consiste em problematizar aspectos da história dos processos
de renovação pedagógica e de modernização institucional da educação pública brasileira,
elegendo como ponto de partida estabelecimentos exponenciais da Universidade de São Paulo
(1934) que guardam, em diferentes momentos de suas trajetórias, a começar pelas feições
adotadas e finalidades atribuídas desde suas respectivas fundações, signos marcantes dos
discursos e projetos de transformação dos atuais níveis de ensino fundamental, médio e
superior. Trata-se da Escola de Aplicação da Faculdade de Educação da Universidade de São
Paulo (EA-Feusp), surgida em 1959, e da própria Faculdade de Educação da Universidade de
São Paulo (Feusp), originária do Departamento de Educação da FFCL-USP e erigida em
unidade de ensino em 1969, todos eles relacionados ao Centro Regional de Pesquisas
Educacionais de São Paulo/CRPE-SP (1956), organizado pelo Instituto Nacional de Pesquisas
Educacionais/INEP na gestão de Anísio Teixeira (1952-1964).
Seguindo os ensinamentos do saudoso prof. Celso de Rui Biesiegel, temos a convicção
de que a identidade construída na história de uma instituição é importante na formação
intelectual e moral de seus professores, alunos e funcionários (BEISIEGEL, 2003, p. 357).
Nessa direção, nossa escolha se prende, por um lado, à instigante tarefa a que se entregaram
docentes, alunos, funcionários e pesquisadores das duas instituições por ocasião das
comemorações de criação de ambas as instituições, quando uma série de atividades,
especialmente ligadas à produção e evocação de memórias, animaram todo o ano de 2019. Por
outro, o conjunto de textos, expressando a diversidade de abordagens teóricas e políticas que
nos caracterizam, busca explorar a irrupção no cenário educacional de inovações e reformas
que redimensionaram os traços da educação no país nos últimos 60 anos, por meio do exame